As cenas de completo caos que se multiplicam das ruas da Bolívia desde a noite de 20 de outubro, estopim para a renúncia de Evo Morales após quase 14 anos no poder, estão longe de ser novidade na história conturbada do país andino.
Enquanto muitos debatem se a saída de Evo foi ou não golpe, o fantasma da violência política volta a assombrar um país cujo palácio do governo, símbolo maior do poder executivo em La Paz, é marcado por cinzas e sangue - literalmente.
O episódio mais chocante aconteceu em 1946, quando uma multidão invadiu o palácio presidencial em busca de um homem que tentava, em vão, se esconder dentro de um armário em um escritório.
Tratava-se do então presidente do país, Gualberto Villarroel López, um ditador que assumiu o poder por meio de um golpe de Estado e cuja gestão foi marcada pela expansão de direitos trabalhistas, mas também por atos autoritários como a perseguição de opositores, a execução sumária de inimigos políticos e o fechamento de jornais críticos ao governo.
Foi depois de reprimir com violência uma greve de professores que pediam melhores salários que Villarroel López viu a truculência voltar-se contra ele - e de forma ainda mais brutal.
Dezenas de trabalhadores invadiram um arsenal de armas das forças de segurança do governo e, armados, entraram em um longo confronto com os seguranças do palácio.
Era 21 de junho de 1946, quando a horda de homens armados conseguiu invadir a sede do governo em busca de um chefe de Estado acuado e em desespero. Eles encontraram Villarroel López encolhido no móvel alojado em uma das paredes do "escritório de eficiência administrativa" do palácio.
O que aconteceu na sequência foi um brutal linchamento, narrado em detalhes pelo historiador e diplomata boliviano Roberto Querejazu Calvo no livro Llallagua: Historia de una montaña, publicado em 1977.
"O que se sabe é que ele morreu ali e seu cadáver foi jogado por uma das janelas do escritório para a rua Ayacucho, onde uma multidão se reunia na praça Murillo. Tiraram suas roupas e, quase nú, ele foi pendurado em um poste de luz."
O texto continua. "A mesma sorte tiveram o capitão Waldo Ballivián e o secretário do presidente, Luis Uría de la Oliva, mortos também dentro do palácio, além do jornalista Roberto Hinojosa, assassinado em uma rua próxima."
O episódio sangrento, no entanto, não foi um fato isolado.
"Palácio Queimado"
O nome do palácio onde Villarroel López foi assassinado - e principal sede do governo boliviano até agosto de 2018 - é Palacio Quemado.
Isso mesmo, "queimado", em tradução livre para o português.
Inaugurado em 1853, o casarão foi literalmente incendiado por opositores do então presidente Tomás Frías.
Em mais uma tentativa de derrubada do chefe de Estado, os rivais Carlos Ressini e Modesto Moscoso tentaram entrar à força no prédio. Ao notarem que não conseguiriam vencer a guarda presidencial, eles foram até a catedral vizinha e, de lá, lançaram tochas, dando início a um grande incêndio.
O telhado e o terceiro andar do palácio foram completamente destruídos pelo fogo e, a partir deste evento trágico, veio o nome que até hoje batiza a antiga sede do poder Executivo, que hoje abriga um museu.
Também dentro do Palácio Quemado, dois presidentes foram assassinados: o general Manuel Isidoro Belzu, que governou o país entre dezembro de 1848 e agosto de 1855, e Agustín Morales Hernández, presidente entre janeiro de 1871 e novembro de 1872.
Evo 'em risco'
A violência política voltou à capital boliviana. No último dia 12, já fora do governo, Evo Morales saiu do país às pressas, afirmando que se continuasse ali poderia morrer.
O México ofereceu asilo ao agora ex-presidente. Segundo o chanceler mexicano, "sua vida e integridade correm riscos".
A discussão que domina boa parte das redes sociais - e ruas da Bolívia - neste momento é se houve ou não um golpe contra o governo de Evo Morales. A resposta, no entanto, não é simples.
Em tese, a definição de golpe de Estado é a substituição de um governo de forma não democrática por iniciativa de outro agente do Estado.
Quem defende a tese de golpe neste episódio se baseia na postura do chefe das Forças Armadas bolivianas, general Williams Kaliman, que pediu publicamente que Evo Morales renunciasse em meio à crise, no último dia 10.
Neste caso, a intervenção seria um flagrante não-democrático que desestabilizaria o presidente e mobilizaria a desobediência de outras forças de segurança e de governo - o que poderia configurar golpe.
De outro lado, quem diz que não foi golpe, aponta que o fim do governo é fruto da inconstitucionalidade da própria presença de Evo Morales na presidência.
É que, para organismos internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a União Europeia, a gestão de Evo Morale manipulou o resultado das eleições presidenciais de 2019. E isso teria ocorrido depois de o presidente desobedecer o resultado de um referendo, cuja vontade popular apontou que Evo Morales não poderia concorrer à nova reeleição.
Com uma autorização judicial e à revelia expressa pela maioria na consulta popular, Evo concorreu mesmo assim. A população teria então ido às ruas para cobrar o retorno da legalidade - nesse caso contra um suposto golpe promovido pelo próprio Evo Morales.
Há ainda uma terceira via que defende a tese que há um golpe dentro do golpe. Evo teria dado um golpe ao fraudar eleições e as Forças Armadas, por sua vez, teriam promovido um segundo golpe ao pressioná-lo a renunciar.
Prefeita coberta de tinta
De toda forma, este não seria o primeiro golpe na história do país, descrito por analistas como um dos mais instáveis de toda a América Latina.
Apesar da dificuldade em se chegar a um consenso na definição de golpes em diferentes contextos históricos e sociais, diversos veículos de imprensa chegam a falar em mais de 190 golpes de Estado na história do país, desde 1825, ano da independência boliviana.
Drama
A história que vem sendo escrita agora traz novos episódios dramáticos.
Um dos episódios mais impressionantes aconteceu com Patrícia Arce Guzmán, prefeita de Vinto, uma cidade de 60 mil habitantes próxima a Cochabamba, e filiada ao Movimento ao Socialismo (MAS), partido do ex-presidente Evo Morales.
Em 6 de novembro, em meio às manifestações contra o resultado das eleições, Guzmán decidiu enviar ônibus e caminhões para transportar camponeses apoiadores de Evo, em uma tentativa de fazer frente àqueles que ocupavam as ruas contra o então presidente.
A resposta extrapolou todos os limites democráticos: a sede da prefeitura foi incendiada por manifestantes e Patricia Arce Guzmán foi cercada por uma multidão de homens, na maioria com os rostos cobertos por máscaras.
Eles cortaram o cabelo da prefeita com tesouras e cobriram seu corpo com tinta vermelha. Cercada pela multidão enfurecida, ela foi obrigada a caminhar descalça enquanto recebia as mais duras ofensas.
"Assassina de merda", gritavam os homens.
Horas depois, ela foi resgatada pela polícia. Cercada de câmeras de TVs locais e celulares de curiosos, a prefeita disse:
"Se quiserem me matar, me matem. Não vou me calar". As imagens viralizaram nas redes sociais.
Mortos, feridos e ataques a jornalistas
No último dia 12, o procurador-geral do país, Juan Lanchipa Ponce, anunciou que 7 pessoas morreram em meio às manifestações - dois na capital La Paz, dois em Santa Cruz de La Sierra e três em Cochambamba.
A maioria das mortes aconteceu por tiros de armas de fogo - outros casos incluíram enforcamento e golpes seguidos de traumatismo craniano.
Já os feridos ultrapassam 100, segundo dados divulgados pela imprensa boliviana. A violência contra jornalistas também escalou.
Em 9 de novembro, veículos de comunicação estatal do país como a Bolivia Television e as rádios Patria Nueva e Confederacion Sindical Unica de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB) foram invadidos e depredados.
Em uma cena que rodou o mundo, o jornalista José Aramayo, diretor do jornal Prensa Rural, foi amarrado a uma árvore com fios elétricos e ficou horas preso no meio da movimentada avenida Saavedra, no bairro de Miraflores, em La Paz.
No fim de outubro, a violência contra membros da imprensa já gerava preocupação e a Associação Nacional da Imprensa boliviana (ANP), que reúne donos de veículos de comunicação, divulgou nota pedindo ajuda.
"Exigimos de governantes, autoridades públicas e privadas, dirigentes políticos e sociais e ao conjunto da população que respeitem, garantam e facilitem o trabalho dos meios de comunicação e jornalistas na Bolívia, que nas últimas horas começaram a sofrer ameaças, ataques vexatórios e até agressões físicas".
Segundo Evo Morales, uma de suas casas, em Cochamamba, teria sido saqueada após o anúncio da renúncia.
Vandalismo pró-Evo
Até a queda de Evo Morales, segundo relatos de observadores e da imprensa local, a violência vinha principalmente de um núcleo agressivo de opositores do então presidente.
Depois da renúncia, foram os apoiadores do ex-líder boliviano que assumiram esse protagonismo com atos de vandalismo registrados em várias partes do país.
Em El Alto, uma cidade pobre que literalmente fica na parte alta de La Paz, ônibus foram queimados em protesto ao movimento que levou à renúncia do presidente.
Parte da população desceu para a capital e promoveu saques e destruição em guaritas policiais e prédios públicos aos gritos de "guerra civil".
O futuro em meio ao caos político na Bolívia ainda é incerto
Além de Evo Morales e seu vice, Álvaro Garcia Linera, também renunciaram os chefes do Senado e da Câmara dos Deputados, o presidente do Tribunal Eleitoral, o Advogado-Geral da União, pelo menos quatro governadores, seis ministros e diversos parlamentares ligados ao partido MAS.
A senadora da oposição Jeanine Áñez assumiu a presidência interina nesta terça-feira, apesar de apoiadores do líder boliviano acusarem falta de quórum na sessão que alçou a parlamentar ao posto.
"Na ausência do presidente e do vice-presidente, como presidente do Senado, assumo imediatamente como presidente do Estado", disse Añez em uma sessão relâmpago que durou alguns minutos.
No primeiro discurso após assumir o cargo, a senadora afirmou que convocará novas eleições o mais rapidamente possível.
Até lá, no entanto, a tensão não deve arrefecer. Junto à ascensão da ex-senadora à Presidência, uma série de controversos tuítes apagados por Añez voltaram à tona.
Em um deles, em 2013, ela descreve as celebrações de ano novo da população indígena como "satânicas" e diz que "ninguém pode substituir Deus". Em publicações antigas, ela também questionou se indígenas eram de fato povos tradicionais pelo fato de estarem usando tênis.