A idílica cidade da Finlândia na linha de frente da tensão entre Rússia e Otan

A cidade de Lappeenranta, perto da fronteira com a Rússia, exemplificou como poucos o famoso "pragmatismo" finlandês para apaziguar Moscou. Agora, como parte do país, ela almeja a entrada na aliança militar ocidental.

3 mai 2022 - 11h13
A cidade de Lappeenranta, perto da fronteira com a Rússia
A cidade de Lappeenranta, perto da fronteira com a Rússia
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Se temos medo? Não, estamos calmos e preparados."

A linguagem corporal de Kimmo Jarva confirma a tranquilidade das suas palavras. E não há tremor na voz do prefeito da cidade de Lappeenranta, no sudeste da Finlândia, quando ele expressa o desejo de que o país faça parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), mesmo com as constantes ameaças do Kremlin, que rejeita o avanço da aliança militar em áreas que considera de sua influência.

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As últimas semanas não têm sido fáceis para essa idílica cidade com pouco mais de 70 mil habitantes, banhada pelo quarto maior lago da Europa e premiada por sua limpeza e luta pelo meio ambiente.

Localizada a apenas 20 quilômetros da fronteira com a Rússia, Lappeenranta havia sido o exemplo perfeito das boas relações entre Helsinque e Moscou, marcando o famoso "pragmatismo" finlandês.

A cidade se orgulha da sua localização privilegiada e de ser porta entre o Ocidente e o Oriente, o que transformou a indústria e o comércio local, agregando características únicas à cultura da região. Mas agora, junto com o restante do país, ela busca a proteção oferecida pela Otan contra um vizinho no qual deixou de confiar.

O governo finlandês da primeira-ministra Sanna Marin acelerou seus passos rumo à afiliação à aliança militar encabeçada pelos Estados Unidos e outras potências ocidentais. A decisão é apoiada por 62% da população. Mas, para as pessoas que viveram décadas de boas relações com o vizinho do leste, essa dramática mudança de postura não será fácil.

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Lappeenranta é a segunda cidade mais visitada da Finlândia, ficando atrás somente da capital, Helsinque
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Décadas de intercâmbio

Os moradores de Lappeenranta e de outras cidades fronteiriças estão conscientes de que a mudança de atitude terá um preço.

"Devido às restrições da pandemia, perdemos um milhão de euros (mais de R$ 5 milhões) por dia porque os turistas russos não vêm mais fazer compras na nossa região. Agora, com a guerra e nossas medidas para entrar na Otan, não sabemos por quanto tempo mais durará essa situação", afirmou o prefeito Jarva à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC).

Lappeenranta testemunhou como poucas cidades da Finlândia os benefícios das boas relações com Moscou. Todos os anos, um milhão e meio de cidadãos russos cruzavam a fronteira para desfrutar da sua hospitalidade e da sua tranquila localização junto ao lago Saimaa, o maior do país.

A cidade também é um destino conhecido pelo seu comércio livre de impostos, que motivava milhares de cidadãos da Rússia a visitarem o local diariamente para encher suas malas de compras e voltar para casa. Quando a União Europeia impôs sanções à Rússia pela anexação da Crimeia, em 2014, o Kremlin respondeu proibindo importações de alimentos provenientes de países europeus. Com isso, Lappeenranta tornou-se o caminho adotado por milhões de cidadãos russos da região para comprar produtos proibidos no seu país.

O intercâmbio fez com que os negócios florescessem por décadas de um lado para o outro da fronteira. De fato, Lappeenranta fica mais perto de São Petersburgo — a segunda maior cidade da Rússia — que da capital da Finlândia, Helsinque.

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Milhões de cidadãos russos costumavam cruzar a fronteira com a Finlândia para aproveitar a venda de produtos livres de impostos
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Abrimos escritórios [turísticos] em São Petersburgo e em Vyborg [na Rússia]. Eu os visitava todos os meses. Cooperávamos entre nós e organizávamos eventos para a imprensa. Tudo era amizade e cooperação", relembra Jarva.

Mas, agora, existem apenas veículos nas passagens de fronteira. Os dois países praticamente proibiram o tráfego comercial e particular entre seus territórios. Os escritórios na Rússia que divulgavam Lappeenranta como a porta de entrada para o Ocidente foram fechados.

"Serão necessários vários anos e muitas mudanças para podermos voltar a viver isso", lamenta o prefeito.

Mudanças rápidas

A Finlândia passou décadas demonstrando um comportamento neutro com a Rússia, assumido após o fim da Segunda Guerra Mundial, como forma de garantir a paz frente a um vizinho muito mais poderoso.

Esse comportamento é popularmente conhecido como "finlandização", um conceito criado pela Finlândia para convencer a antiga União Soviética da sua neutralidade. Gerações de cidadãos e políticos acreditaram nesse conceito.

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Governo da primeira-ministra Sanna Marin dá passos rápidos para o ingresso da Finlândia na Otan, com apoio da maioria da população, segundo pesquisas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O ingresso na Otan nunca havia recebido mais de 30% de aprovação entre os finlandeses. Até que, algumas semanas após a invasão da Ucrânia pela Rússia, a opinião pública sofreu uma reviravolta completa. A aprovação dobrou para 62% — a mais alta da história da pesquisa. E o número de opositores à entrada da Finlândia na Otan caiu de 40% em 2021 para apenas 16% atualmente.

"Olhando para as pesquisas, também não parece que a população das cidades fronteiriças (como Lappeenranta) esteja muito assustada", analisa Charly Salonius-Pasternak, pesquisador do Instituto Finlandês de Assuntos Internacionais. "Aqui, a maioria não acredita que a Rússia deixaria de atacar se a Finlândia for gentil o suficiente. Se a Rússia decidir atacar, ela o fará de qualquer forma, como na Ucrânia. Acredita-se que o que costumava servir não funciona mais."

O prefeito de Lappeenranta afirma que "depois da guerra, nossa cidade mudou de opinião rapidamente. Acreditamos que a decisão de entrar na Otan seja correta."

Ecos do passado

Os dois países são separados por 1,3 mil km de fronteira, mas a Rússia é 50 vezes maior e sua população, 26 vezes a da Finlândia.

Durante séculos, a sombra das aspirações expansionistas russas projetou-se sobre o território finlandês, que foi invadido em várias ocasiões. A própria fortaleza de Lappeenranta foi construída pelos russos em 1775, após uma sangrenta batalha na qual morreram centenas de finlandeses.

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No início da Segunda Guerra Mundial, os dois países travaram uma guerra relativamente rápida, na qual a Finlândia conseguiu deter os avanços da União Soviética, mas não sem a perda de parte do seu território. Extensas regiões da Carélia — onde fica Lappeenranta — foram ocupadas pelos soviéticos durante o conflito. A cidade sofreu fortes bombardeios.

Durante a chamada Guerra de Inverno (1939-1940), diversas cidades finlandesas sofreram bombardeios das forças soviéticas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Especialistas como Salonius-Pasternak acreditam que essa dupla relação de cooperação e rivalidade é algo "esperado" entre vizinhos fronteiriços. "As mesmas pessoas que vendem produtos aos turistas russos em uma semana poderão fazer treinamento militar na semana seguinte, sabendo que, se forem convocados, é porque a Rússia está atacando. Sempre foi assim", segundo ele.

Olhar para o futuro

Autoridades russas transformaram as advertências em ameaças, devido aos avanços da Finlândia e da Suécia (outro de seus vizinhos próximos) para ingressar na Otan — um risco que os finlandeses parecem estar dispostos a assumir e dizem estar prontos para isso.

"Estamos preparados para enfrentar ciberataques e difusão de notícias falsas, mas não acredito que estejamos com medo da guerra ou de algum tipo de problema. Temos refúgios e estamos prontos para qualquer tipo de ataque. Estamos acostumados a viver nesta região e somos mais pragmáticos que muitos outros países da Europa", afirma Jarva.

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Pragmatismo é exatamente uma das palavras mais repetidas pelas autoridades de Lappeenranta sobre o que pode acontecer no futuro. Eles esperam que o caminho tomado pelo seu país não cause mal-entendidos. Afinal, seu descontentamento é com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e com os responsáveis pela guerra — não com os cidadãos russos.

Conscientes do golpe econômico e cultural que os novos caminhos da Finlândia podem trazer, as autoridades de Lappeenranta decidiram concentrar-se no futuro da cidade
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Somos uma cidade popular, a segunda mais visitada da Finlândia, depois de Helsinque. E devemos isso principalmente ao turismo russo", afirma Markku Heinonen, gestor de projetos da cidade.

"Muitos cidadãos russos continuam viajando para outros países da Europa e para os Estados Unidos, que fazem parte da Otan. Por isso, espero que esse problema venha a ser resolvido. Somos vizinhos e precisamos nos acostumar a essa nova forma de convivência", acrescenta ele.

"Temos também indústrias e outras fontes de renda. Temos uma universidade importante. Não vivemos apenas do turismo", conclui Päivi Pietiläinen, chefe de relações internacionais do município.

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Cidadãos de mais de 80 nacionalidades convivem em Lappeenranta, incluindo uma considerável população de idioma russo. Para o prefeito Jarva, "isso (as tensões) não é culpa deles. Queremos cuidar deles para que vivam em paz por aqui. Mas (...) acreditamos que levará décadas para que se volte à normalidade."

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