Ela herdou o nome e a batalha da mãe.
Berta Zuñiga Cáceres, de 27 anos, lidera há dois anos a luta da população Lenca de Honduras contra empreiteiras, empresas energéticas e instituições financeiras internacionais para deter um projeto de hidrelétrica que represaria um rio considerado sagrado e essencial para a sobrevivência dessa etnia indígena.
É uma luta que já custou a vida da mãe, para quem a jovem agora busca justiça em um país denunciado pela ONG Global Witness como o mais perigoso do mundo para os defensores do meio-ambiente.
Nos últimos sete anos, 123 ativistas foram assassinados, e oito em cada dez casos continuam sem solução.
Projeto da discórdia
Berta Cáceres, a mãe, era a líder indígena, ambientalista e feminista mais proeminente de Honduras quando foi assassinada a tiros dentro de casa, em sua cidade natal de La Esperanza, no oeste do país, na noite de 3 de março de 2016.
Prestes a cumprir 45 anos, recebera um ano antes o Prêmio Goldman de Meio Ambiente, conhecido como o "Nobel dos ambientalistas", por seus esforços para impedir a construção da represa Agua Zarca no rio Gualcarque.
À frente do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh), a mestiça que se dizia orgulhosa de suas raízes lencas apoiou bloqueios de estradas, sabotagem de equipamentos e piquetes em frente à empresa hondurenha Desarrollos Energéticos S.A. (DESA), responsável pelo projeto.
Com sua presença, deu mais visibilidade à mobilização da comunidade Lenca de Rio Branco, afetada pelas obras.
As ações, somadas à pressão direta de Cáceres sobre instituições de crédito dispostas a financiar Agua Zarca, levaram a empresa chinesa Sinohydro a abandoná-lo em 2013.
Ao mesmo tempo, o clima de violência não cessou de piorar na região. Vários companheiros de Cáceres foram assassinados antes e depois dela.
Legado
Com a morte da ativista, Bertita, a filha, atendeu o chamado do Copinh e abandonou o mestrado em Estudos Latino-americanos que cursava no México para assumir a coordenação-geral da organização no lugar da mãe.
"Sabemos do risco, mas o objetivo não é deixar que o medo vença. É o que temos que fazer", diz à BBC Brasil, referindo-se a si mesma no plural.
A firmeza com que ela fala contrasta com a aparência frágil.
"Esta é uma luta pelos direitos de um povo milenar, mas é também uma luta por justiça para minha 'mami' e por reparação pessoal."
Dois de seus três irmãos - Salvador, 23 anos, e Laura, 25 anos - continuam vivendo fora do país por questões de segurança. Só a irmã mais velha, Olivia, advogada de 28 anos, vive em Honduras, onde segue carreira política.
Delicada, Bertita é mais um fruto de uma família de mulheres fortes. A avó, Austra Berta Flores, 86 anos, foi parteira e enfermeira antes de ser eleita três vezes prefeita de La Esperanza. Nos anos 80, quando a América Central fervia entre guerrilhas, golpes de Estado e ditaduras, foi também governadora de Intibucá, região à qual pertence La Esperanza, além de deputada nacional.
A família cresceu em meio a um "profundo respeito pela terra" e com a "consciência de que é necessário lutar para protegê-la", afirma a jovem.
Ela e seus irmãos participavam de incursões por comunidades lenca, a maior etnia indígena de Honduras, com cerca de 400 mil representantes, aos quais a mãe inculcava o orgulho de suas origens e explicava seus direitos.
"Mamãe queria que víssemos como eles vivem, que tivéssemos esse contato com a terra, com essa realidade."
Ameaças e assassinatos
Bertita tinha dois anos quando seus pais fundaram juntos o Copinh, em 1993.
Em suas lembranças de infância convivem imagens de montanhas e rios, reuniões familiares, cartazes coloridos, manifestações animadas e gases lacrimogêneos voando das mãos de policiais.
"Com o tempo fomos nos dando conta do perigo que envolvia as atividades de mamãe. As ameaças eram tão frequentes que acabávamos achando normal aquela vida."
Nos últimos anos, Cáceres denunciou 33 ameaças de morte ao Ministério Público hondurenho. Promessas de linchamento e de estupro, de sequestros aos filhos, de agressões contra a mãe.
Quando foi assassinada, a ativista estava teoricamente sob proteção do governo.
Bertita afirma que ainda não foi alvo de ameaças desde que assumiu o comando do Copinh.
"Ameaças diretamente contra mim não. Mas somos alvo de uma campanha de criminalização do Copinh, de descrédito pessoal."
Acusações
Bertita Zuñiga se prepara agora para dar o maior passo em sua busca por justiça para a mãe.
Neste mês, apresenta na Holanda uma denúncia contra o Banco de Desenvolvimento desse país (FMO), ao que acusa de conivência no assassinato de Cáceres.
A instituição foi um dos principais investidores no projeto Agua Zarca, ao qual destinou 7 milhões de dólares, metade do previsto inicialmente, antes de suspender sua participação, à raiz da repercussão internacional ao redor da morte da ativista.
A queixa contra o FMO se apoia nas conclusões do Grupo Assessor Internacional de Pessoas Especialistas (Gaipe), criado a pedido da família Cáceres para realizar uma investigação independente do caso.
"Concluímos que o FMO tinha conhecimento das ameaças e dos ataques de DESA contra Berta e contra o povo lenca e não fez nada. Ao contrário, continuou financiando o projeto. Por isso, é corresponsável pelo crime", explicou à BBC News Brasil o advogado guatemalteco Miguel Ángel Urbina Martínez, membro do Gaipe.
Em comunicado enviado à BBC News Brasil, o FMO afirma que está "totalmente comprometido com o respeito dos direitos humanos em todos os projetos" dos quais participa. No caso de Agua Zarca, a entidade "encomendou uma missão de especialistas independentes, agindo de acordo com suas descobertas para reduzir as tensões da comunidade e saiu do projeto", diz. "O FMO reconhece o direito a um processo legal e confia que os tribunais (holandeses) confirmarão que o FMO agiu de boa fé."
O banco também "reitera seu chamado às autoridades hondurenhas para que levem à justiça os responsáveis" pelo assassinato de Berta Cáceres, ao que se refere como um "crime terrível".
A equipe do Gaipe, formada também por dois advogados americanos e outros dois colombianos, entrevistou testemunhas e acusados e analisou os documentos do caso em posse do Ministério Público, entre eles registros telefônicos, emails e outras mensagens entre executivos do FMO e de DESA.
A companhia energética, por sua parte, é acusada pelo Gaipe de haver organizado o assassinato.
Dois anos depois do crime, nove pessoas estão presas, entre elas ex-militares hondurenhos, um ex-chefe de segurança de DESA e o presidente executivo da empresa, Roberto David Castro Mejía, detido em março sob acusação de haver organizado a logística do crime e proporcionado recursos.
Procurada pela BBC Brasil, a Hidroelétrica Agua Zarca, gestionada por DESA, afirmou que "a pessoa autorizada a dar declarações sobre o caso está ocupada atendendo outras funções urgentes".
Na época, DESA publicou um comunicado classificando de "injusta" a prisão de Castro, que, "como todos os membros (da empresa), está totalmente desvinculado do infeliz episódio que terminou com a vida da senhora Berta Cáceres".
"A empresa rechaça totalmente esta decisão, que resulta de pressões internacionais e campanhas de desprestígio de diversas ONGs contra a empresa."
Pressão internacional
A filha de Berta Cáceres, por sua vez, se diz convencida de que as detenções só ocorreram devido à pressão internacional sobre o governo hondurenho.
"A justiça, em um dos países com as maiores taxas de impunidade do mundo. Não vai chegar por vontade de um Estado que criminalizou e perseguiu minha 'mami'. Sabemos que se não mantemos a pressão internacional o caso pode ficar impune", acredita.
É com esse objetivo que ela visita esta semana algumas das principais capitais europeias. Em Bruxelas, Zuñiga se reuniu com representantes do Serviço de Ação Exterior da União Europeia e com deputados da UE, antes de seguir viagem à Haia, Berlim e Madrid, decidida a não deixar a morte de sua mãe cair no esquecimento.
A família exige que a justiça hondurenha se interesse também pelos autores intelectuais do crime.
"Não hesitamos em fazer o que for necessário para obter justiça e a garantia de não repetição para as comunidades indígenas. Não queremos resultados vagos. Queremos acabar com a estrutura que permitiu esse crime e que continua ativa, ameaçando a comunidade lenca que se resiste ao projeto Agua Zarca", afirma Zuñiga com uma determinação que faz brilhar seus pequenos olhos marrons.
Esse é o projeto de sua vida? Ela se encolhe e sorri com candor: "Acho que sim. É o projeto de muita gente".