A peruana Noelia Llantoy tinha 17 anos, em 2001, quando soube que estava grávida. Pouco depois, no entanto, seu ginecologista informou que o bebê seria anencéfalo. Ou seja, ele iria nascer sem o cérebro ou com apenas parte dele, e morreria horas após o parto.
O médico advertiu Llantoy sobre os riscos de prosseguir com a gravidez e recomendou que ela fizesse um aborto terapêutico no hospital público Arzobispo Loayza, em Lima, onde o médico atendia.
Mas o diretor do hospital vetou o procedimento na adolescente.
A jovem deu à luz a uma menina em janeiro de 2002 e a amamentou durante quatro dias, quando ela morreu.
Dezoito anos depois, o Ministério da Justiça do Peru pediu desculpas públicas a Llantoy em nome do Estado por ter negado à jovem o direito ao aborto terapêutico.
Essa é a segunda vez na história que o ministério pede desculpas por causa de um procedimento médico.
Em dezembro de 2018, a pasta se desculpou depois que um hospital negou uma cirurgia na coluna a uma adolescente que estava grávida. A garota, identificada como L.C, tinha 13 anos e acabou ficando tetraplégica.
Protocolo do aborto terapêutico
O aborto terapêutico é legal no Peru desde 1924, ou seja, 77 anos antes de Noelia Llantoy precisar fazer o procedimento.
O artigo 119 do Código Penal peruano permite o aborto quando "a suspensão da gravidez é o único meio para salvar a vida da gestante ou para evitar um dano permanente a sua saúde".
Mas quando Llantoy pediu o procedimento, a lei ainda não estava regulamentada. Ou seja, não havia um guia legal para sua aplicação prática.
Segundo María Ysabel Cedano, diretora da organização Estudo para a Defesa dos Direitos da Mulher, o hospital considerou que o aborto de Llantoy não era terapêutico, argumentado que a jovem queria interromper a gravidez de forma preventiva porque "sabia que seu bebê nasceria com uma má formação".
Esse tipo de interrupção da gravidez, conhecida como eugênica, é ilegal no Peru. No Brasil, o aborto é crime, com pena de até três anos de prisão para a gestante. Só é possível interromper a gestação em caso de estupro, risco de vida para a mãe e feto com anencefalia.
Segundo relatórios psiquiátricos elaborados antes e depois da gravidez, seguir com a gestação e dar à luz a um bebê anencéfalo afetou gravemente a saúde de Llantoy, que foi diagnosticada com depressão.
Noelia Llantoy contou à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, que durante todo episódio se sentiu "julgada por muitas autoridades" e que recebia "comentários ruins de parte dos médicos e das autoridades".
Llantoy conta que muitos disseram que a culpa era dela por ter engravidado.
Meses depois do parto, Llantoy se mudou para Madri, na Espanha, onde tentou recomeçar a vida. "Quando me mudei, tinha a convicção de que tudo o que aconteceu era culpa minha, que eu era a única responsável", diz.
"A sociedade influenciou muito. Eu mesma era parte dessa sociedade e tinha outra forma de pensar", reconhece. "Emigrar também foi uma forma de escapar um pouco de mim mesma."
Processo
Em novembro de 2002, as organizações Estudo para a Defesa dos Direitos da Mulher e o Centro de Direitos Reprodutivos processaram o Estado peruano no Comitê de Direitos Humanos da ONU por causa do caso de Llantoy.
O processo se baseia na recusa do hospital em realizar o aborto terapêutico e nos danos psicológicos causados pelo episódio.
Três anos depois, o comitê das Nações Unidas disse em sua decisão final que o nascimento da menina anencefálica foi "uma experiência que acrescentou dor e angústia adicionais àquelas que Noelia Llantoy já havia experimentado quando foi forçada a continuar com a gravidez".
A ONU concluiu que o Estado peruano tinha "a obrigação de criar medidas para que violações semelhantes não ocorram no futuro". Também pediu uma indenização para Llantoy.
Apenas em 2014 o governo do Peru criou um guia sobre aborto terapêutico, que inclui dez causas que ameaçam a vida da mãe nas primeiras 22 semanas de gestação.
Cirurgia tardia
O caso da jovem L.C. também demorou vários anos para se resolver. Ela engravidou em 2007, quando tinha 13 anos, depois de ser vítima de estupro. Ao saber da gravidez, ela tentou se suicidar, pulando do telhado de casa.
A queda causou lesões em sua coluna, e ela precisou de uma cirurgia urgente. Mas o hospital se negou a realizar a operação porque ela estava grávida.
A mãe de L.C. pediu um aborto terapêutico, mas os médicos também negaram o procedimento. A garota teve um aborto espontâneo três meses depois, mas as lesões na coluna se tornaram irreversíveis.
Em junho de 2009, o Centro de Promoção e Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos do Peru e o Centro de Direitos Reprodutivos levaram o caso ao Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher.
Em 2011, o comitê decidiu que o Estado peruano "foi responsável por não avaliar adequadamente o risco à saúde física e mental que os eventos representaram para L.C" e que o "atraso das autoridades hospitalares em resolver as solicitações de aborto terapêutico e cirurgia deixaram consequências nefastas na saúde física e mental da jovem".
Em dezembro de 2015, o Estado peruano indenizou tanto L.C quanto Noelia Llantoy.
Insuficiências
Llantoy disse à BBC que levou muitos anos para convencer a si própria de que não tinha culpa pelos problemas que enfrentou no hospital.
A jovem considera que o pedido de desculpas do Estado foi "justo e digno".
Mas "as desculpas não valem nada se algo não for feito para que isso não siga acontecendo".
A organização peruana Centro de Promoção e Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos acredita que, apesar dos avanços legais e dos eventos públicos, "o acesso ao aborto terapêutico ainda é absolutamente restrito" no Peru.
María Ysabel Cedano, da organização Estudo para a Defesa dos Direitos da Mulher, diz que "muitos operadores de saúde colocam objeções conscientes (para rejeitar o aborto terapêutico) e não oferecem às mulheres atendimentos em outros locais".
"Não há informações oportunas sobre o acesso ao aborto terapêutico, as mulheres recorrem a serviços clandestinos, se machucam ou até se matam", diz Cedano.
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