Jornais adulterados, entrevistas inventadas e reuniões de mentirinha.
Foi assim que o entorno do ditador português António Salazar (1889-1970) criou cenários e situações para esconder, por dois anos, que ele não mais comandava Portugal, depois de cair de uma cadeira e sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) em 1968.
Por preocupações com o estado de saúde de Salazar, o jurista Marcelo Caetano assumiu a liderança do país, materializada no cargo de presidente do Conselho de Ministros do regime.
Esse é um dos episódios da trajetória de ascensão e derrocada do ditador contados na biografia A incrível história de António Salazar, o ditador que morreu duas vezes (Todavia, 2023), do jornalista italiano Marco Ferrari.
Segundo o autor, Salazar morreu sem saber que tinha deixado o poder: sua cúpula retirava dos jornais textos que falavam de Marcelo Caetano como presidente do conselho e reuniões com personalidades importantes do país eram marcadas como se ele ainda fosse o presidente.
A partir de uma longa pesquisa e de testemunhos de presos políticos do regime, o livro de Ferrari traz não apenas curiosidades intrigantes como essa, mas também explica em detalhes os processos que culminaram na Revolução dos Cravos em 1974, que deu fim ao regime ditatorial do Estado Novo português.
É em meio às comemorações dos 49 anos da revolução que o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), viajou para Portugal esta semana. Inicialmente, havia o plano de que Lula discursasse em uma cerimônia relativa à revolução no parlamento português, segundo havia anunciado o ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, João Gomes Cravinho.
Mas a ideia foi cancelada depois que parlamentares portugueses de oposição criticaram que um líder estrangeiro assumisse tamanho protagonismo e que a escolha não tenha sido uma iniciativa do legislativo, e sim anunciada por um ministro.
Para entender a revolução, como tudo na história, é preciso entender o contexto — e, no caso de Portugal, um dos elementos mais importantes daquele cenário era a manutenção de colônias em lugares como Angola, Moçambique, Timor e Macau.
"Salazar arrastou para a sepultura o último império marítimo ocidental que Marcelo Caetano já não conseguia manter unido. O ex-ditador nunca quis libertar Portugal do seu sonho de grandeza ultramarina, levando a um conflito brutal entre a pátria-mãe e as colônias que custou milhares de mortes", explicou Ferrari em entrevista à BBC News Brasil por e-mail.
Foi com este ideal de um Portugal tradicional e grandioso que Salazar comandou a mãos de ferro o país por 36 anos (1932-1968) — uma das mais longas ditaduras do século 20.
Antes deste período do Estado Novo, Salazar foi um jovem formado em direito com honrarias e que logo se tornou professor em Coimbra. Ele também já era ativo na comunidade católica e na polítical local, mas só entraria para a política nacional em 1928, quando foi nomeado por António de Fragoso Carmona, então presidente, como ministro das Finanças.
Em 1932, Salazar assumiu como primeiro-ministro, estabelecendo um sistema político autoritário conhecido como Estado Novo.
"Ele tinha ido ao seminário e achava que Portugal tinha a missão de evangelizar o mundo novo e a África. Mas também era um provinciano, um homem do campo que detestava viajar e se locomover", conta Ferrari.
"Por isso, nunca chegou a conhecer seu imenso império. Como um homem da igreja que se dedica a Deus, ele se dedicou à sua pátria pensando que sem ele, tudo poderia ruir. E nisso estava certo."
Embora reproduzisse alguns preceitos e formas de organização do fascismo de Benito Mussolini, foi do general Francisco Franco, ditador da Espanha, de quem Portugal mais se aproximou no período.
O autor do livro lembra que houve também uma aproximação do regime salazarista dos regimes autoritários no Brasil — primeiro o Estado Novo (1937-1945) e depois a ditadura civil-militar (1964-1985).
"[O Estado Novo] Foi claramente inspirado na ditadura de Salazar em Portugal, adotando inclusive a mesma denominação."
"Nesse contexto, sobretudo na era Vargas, o Brasil funcionava como uma poderosa plataforma de propaganda pró-Salazar e sua política colonial."
"Houve também relações diretas entre a PIDE [polícia política portuguesa], substituída em 1969 pela Direção-Geral de Segurança, e o Departamento Brasileiro de Ordem Política e Social, ativo de 1924 a 1983. Marcelo Caetano estreitou laços com a ditadura brasileira durante sua visita oficial em 1972."
Revolução nascida entre militares
O Brasil viveu ainda outro tipo de reflexo da ditadura portuguesa: Ferrari lembra que as décadas de autoritarismo fizeram milhares de portugueses se exilarem em países como o nosso, a França e a Itália, inclusive jovens que decidiram escapar do serviço militar obrigatório.
"O governo viu-se obrigado a ampliar o serviço militar obrigatório para quatro anos. Muitos jovens foram para o exilio para não morrer na África", diz, referindo-se à alta demanda por soldados devido a tantos conflitos nas colônias.
"Os que foram obrigados a alistar-se a contragosto vieram de uma vida universitária em que aprenderam os princípios antifascistas e também eram contaminados pelo forte sopro de protesto que prevalecia no resto da Europa", destaca o jornalista.
"Assim, Portugal colocou o seu exército nas mãos de um número crescente de adversários. Com 220 mil efetivos, o Exército acabou se tornando o ponto de convergência política dos problemas do país. Diante da crescente derrota na Guiné, considerada o Vietnã português, no final de 1973 um grupo de oficiais redigiu um documento criticando a ação militar. A partir daí nasceu o Movimento das Forças Armadas que organizou a Revolução dos Cravos."
Ou seja, a Revolução dos Cravos não foi um movimento predominantemente civil em sua origem.
"Não foi uma revolução popular porque 40 anos de ditadura mataram todos os dissidentes e enviaram todos os líderes políticos para a prisão ou para o exterior. Os capitães do Movimento das Forças Armadas eram jovens conscientes do incipiente fim do salazarismo."
O dia da revolução em si não foi sangrento: o golpe militar foi seguido por manifestações favoráveis da sociedade civil, abrindo caminho para a democracia. Ela foi batizada como uma revolução "dos cravos" pois, segundo a explicação predominante, a população distribuía cravos vermelhos a militares dissidentes, que por sua vez colocavam as flores em suas armas.
Rapidamente, entre 1974 e 1975, as colônias portuguesas de Guiné-Bissau, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola conquistaram sua independência. Portugal também se retirou do Timor Português, hoje Timor Leste, que depois foi invadido pela Indonésia.
Já o território de Macau foi entregue à China apenas em 1999, encerrando definitivamente o período imperialista colonial de Portugal.
Em 1982, um governo civil foi formalmente estabelecido em Portugal.
O jornalista italiano autor de A incrível história de António Salazar, o ditador que morreu duas vezes conta que começou a se interessar por Portugal ao conhecer um exilado português vivendo na Itália.
"Tive a sorte de chegar a Lisboa pouco depois da Revolução dos Cravos, num ambiente que oscilava entre o entusiasmo e a surpresa, a alegria e a inquietação, típica das democracias recém-nascidas. Mas para além de efervescência, parecia que uma sombra inquietante reinava sobre Lisboa, a de António Salazar."
Essa viagem virou um livro, Alla rivoluzione sulla due cavalli, e também um filme de mesmo nome. As obras acompanham a jornada do italiano e de um amigo até Portugal assim que se soube da revolução.
Ferrari aponta para mudanças mais profundas que começaram após aquela data.
"O dia 25 de abril marca o início da liberdade mas também a entrada de Portugal na Europa, país que esteve isolado durante o salazarismo, também devido à presença da barreira franquista [a presença e aliança com Franco]. Esses valores são essenciais para compreender Portugal hoje, um país que não abdica da sua alma progressista, um país que casa com a modernidade sem renunciar à tradição."
Entretanto, as marcas do passado ditatorial não foram totalmente tratadas, segundo o jornalista.
"Houve julgamentos, mas eles diziam respeito principalmente aos agentes da PIDE, a polícia política. Alguns ministros [do regime] ou altos executivos terminaram seus dias no Brasil em completo anonimato, assim como o último representante do regime, Marcelo Caetano, que exilou-se no Rio de Janeiro, onde foi protegido pela ditadura e onde morreu em 1980", relata.