Brasileira: nenhum acordo evita ódio na Rep. Centro-Africana

República Centro-Africana está devastada pelo conflito entre grupos cristãos e muçulmanos; milhares de deslocados internos dependem de ajuda humanitária imediata para sobreviver e comunidade internacional teme genocídio

22 mai 2014 - 20h15
(atualizado em 23/5/2014 às 13h56)

Violência, sofrimento e intolerância. É o resumo da situação vivida hoje pelas mais de quatro milhões de pessoas que vivem na República Centro-Africana, país localizado no coração do continente africano e palco de disputas entre cristãos e muçulmanos desde janeiro deste ano.

O derramamento de sangue na nação africana começa a chamar atenção da mídia mundial ao passo que tropas europeias avançam sobre o país para tentar proteger os civis de um conflito sectário profundamente marcado pelo ódio.

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“Estão todos muito vulneráveis, uma população que era para ser poupada não está sendo respeitada porque existe, dos dois lados, tanto muçulmano como cristão, um ódio grande e crescente”, explica a psicóloga brasileira do Médicos Sem Fronteiras, Vanessa Monteiro Cardoso, que trabalhou por mais de 30 dias no país, em janeiro deste ano.

“Até dezembro de 2013, essas populações interagiam de uma forma muito saudável, mas tudo mudou depois de janeiro, o desejo de revanche cresce a tal ponto que a população mais vulnerável acaba sendo tão afetada quanto qualquer outra”, acrescenta.

A relação, até então pacífica, entre membros do grupo muçulmano Seleka e das milícias cristãs Antibalaka, se agravou quando os primeiros insurgentes, que haviam tomado o poder em março de 2013, após um golpe que resultou na destituição do presidente François Bozizé, foram depostos pelos cristãos. 

<p>Miliciano Seleka faz incursão em um vila onde moradores foram atacados e uma mesquita queimada a cerca de 25 quilômetros de Bambari, em 10 de maio</p>
Miliciano Seleka faz incursão em um vila onde moradores foram atacados e uma mesquita queimada a cerca de 25 quilômetros de Bambari, em 10 de maio
Foto: Siegfried Modola / Reuters

Desde então, a população tem pagado um preço alto pelo conflito. Os centro-africanos vivem com medo diante do risco constante de ter as casas queimadas e os familiares mortos ou mutilados.

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Muitos centro-africanos buscam refúgio nos países vizinhos, como a República Democrática do Congo, Camarões e Chade, mas nem todos conseguem cruzar a fronteira e passam à categoria de deslocados internos, principalmente na capital, Bangui, onde milhares de pessoas se concentram, na tentativa de obter ajuda em meio a uma crise humanitária que só se intensifica.   

Além da escassez de alimentos – agravada pelos ataques aos comboios humanitários –, serviços básicos como educação têm sido prejudicados. Por conta do medo e dos frequentes ataques às escolas, crianças abandonam o colégio ainda pequenas. Muitas delas presenciam as instituições sendo ocupadas, saqueadas, ou incendiadas.

“Às vezes a escola nem existe mais e o professores também não, ou eles estão nos campos de deslocados internos ou em outros países porque o Estado não oferece segurança; muitas vezes os adolescentes ficam fora da escola por semanas, meses e até anos”, conta a psicóloga Vanessa.

“A Unicef construiu um espaço, no campo de deslocados internos em Bangui onde eu trabalhava, para poder proporcionar o mínimo de educação possível. Os adolescentes  têm um nível de educação diferente, mas existem alunos que frequentam o local com regularidade, uma professora e, o mais importante, um espaço aberto para educar as crianças”, complementa a colaboradora do Médicos Sem Fronteiras.

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Um quarto da população – cerca de um milhão de pessoas – teve de abandonar suas casas e quase a metade –  2,2 milhões – depende do auxílio de organizações para sobreviver.

Segundo a ONU, mais de 20 mil pessoas se encontram sitiadas e ameaçadas por milícias armadas, em diferentes regiões do país. Elas imploram às organizações de ajuda humanitária que passem a fornecer auxílio em áreas mais seguras, mesmo que fora do país.

Todos são vítimas

Durante as pouco mais de quatro semanas em que esteve na República Centro-Africana, a psicóloga Vanessa Monteiro Cardoso desenvolveu um trabalho de recrutamento e treinamento de conselheiros centro-africanos e de atendimento às vítimas do conflito. 

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A psicóloga Vanessa Cardoso do Médicos Sem Fronteiras (à direita) prestou assistência às vítimas do conflito na República Centro-Africana em um campo de deslocados internos em janeiro deste ano
Foto: Arquivo pessoal

Ela pôde testemunhar, no campo de deslocados montado na capital, muitos casos de pessoas que viviam em uma situação de luto permanente em função da perda de entes queridos de formas absolutamente violentas, fosse por armas de fogo ou por facão (machete).

“Muitas crianças apareciam semanalmente nos hospitais com ferimentos graves provocados por machete; nos campos havia muitas pessoas psiquicamente traumatizadas, não apenas  pelo que sofreram diretamente, mas também pelo que viram e testemunharam”, conta a psicóloga.

“Além da perda dos familiares, havia a perda das suas casas (das vítimas) que eram ou ocupadas, ou queimadas, e o próprio deslocamento forçado que, por si só, já causava bastante estresse. Muitas pessoas sofriam de transtorno do estresse pós-traumático, elas choravam muito, dormiam muito pouco, ficavam super vigilantes e desenvolviam muitos medos. Havia também a falta de perspectiva de futuro, não se sabia quando o conflito ia terminar, nem como seria a vida em um campo de deslocados internos”.

Os centro- africanos não são as únicas vítimas desse conflito. Quem cobre essa guerra também se torna vítima dela.

A fotojornalista francesa Camille Lepage foi encontrada morta, no início deste mê,s por forças de paz que revistavam veículos de milicianos antibalaka em Bouar, região ocidental da República Centro-Africana. A jornalista, de 26 anos, fazia reportagens no país desde setembro de 2013.

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Nesta foto de 6 de outubro de 2013, a jornalista Camille Lepage sorri para um dançarino local, próximo ao estádio Bonga Bonga, na capital, Bangui
Foto: Sylvain Cherkaoui / AP

A organização Médicos Sem Fronteiras anunciou a redução temporária de suas atividades no país, após um ataque a um hospital em Nanga Boguila, que resultou na morte de 22 pessoas, incluindo três colaboradores. Hoje, opera no país apenas o serviço de emergência.

Dois funcionários da Cruz Vermelha também estiveram na mira dos insurgentes. Um membro do Comitê Internacional foi morto na cidade de Ndélé, no norte do país, em 8 de março, e um voluntário perdeu a vida na capital, Bangui, no dia seguinte.

De acordo com a ONU, nove de seus colaboradores humanitários foram mortos em ataques de milícias armadas desde setembro de 2013.

Memórias que não se apagam

Muitas vidas passam pelos campos de deslocados centro-africanos.

Vanessa, do Médicos Sem Fronteiras, guarda com carinho essas memórias. Uma em especial: a de um jovem de 15 anos que viu de perto os pais e as duas irmãs serem mortos pelos insurgentes. O adolescente conseguiu sair ileso do atentado cometido dentro da própria casa e buscou proteção no campo de deslocados internos de Bangui, onde a psicóloga trabalhava.

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Centro-africanos tentam embarcar em caminhão escoltado pela operação da União Africana (MISCA) em direção à fronteira do Chade
Foto: Siegfried Modola / Reuters

Ela se lembra, até hoje, da maneira como o adolescente chegou ao campo. “Ele foi até a tenda de saúde mental e se sentou junto de pessoas de meia idade que discutiam maneiras saudáveis de superar o luto. Ele chegou perturbado e com muita raiva, mas contou sua história. O interessante é que o grupo de “mamas” e “papas” africanos acolheu esse menino e abraçaram o sofrimento dele”.

“Eu também lembro que ele não compareceu na última sessão, que coincidia com o penúltimo dia da minha missão, e de como aquilo que me deixou surpresa, mas eu pensei que talvez ele pudesse estar jogando bola com algum adolescente do campo, que estava começando a ser estruturado. Quando eu já tinha me despedido de todo mundo, um dos conselheiros me disse que ele estava lá fora me esperando. Nosso encontro foi emocionante. Quando eu o vi ele me disse: ‘Você está indo e eu não tenho nada para te oferecer porque eu não tenho nada, mas eu vim te dar o meu sorriso de presente!’, nessa hora eu falei ‘valeu a pena’  ”.

O menino que carregava a casa nas costas

Contudo, ainda havia algo que intrigava Vanessa: a mochila azul que o adolescente não tirava das costas desde que havia chegado ao campo de deslocados. “Ele não tirava aquela mochila das costas por nada, nem para falar, nem durante os exercícios de relaxamento, então eu imaginei que ele devia ter uma boa razão para fazer isso, e aproveitei que a sessão terapêutica já tinha acabado para perguntar o motivo daquela atitude”.

“Foi quando ele me disse que tinha faltado a sessão para voltar à casa dele. Ele sempre voltava lá e trazia pequenos 'pedaços' da casa que eram colocados na mochila.  Ele carregava a mochila nas costas porque aquilo o protegia e o fazia se sentir apoiado e estruturado; tirar a mochila era como fazer com que destruíssem sua casa novamente, era como ter de deixar novamente sua casa”.

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Como combater os insurgentes?

Diante do superior número de combatentes em relação à quantidade de membros de forças de segurança do país, o envio de tropas à República Centro-Africana se tornou algo imprescindível, na concepção de alguns países europeus e da própria ONU.

Em abril deste ano, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que autoriza o estabelecimento de uma missão de paz de 11.800 soldados e policiais, na República Centro-Africana. O país já conta com a missão da União Africana (Misca) reforçada por 2 mil soldados franceses. Estima-se que o terreno ganhe um reforço de 12 mil homens enviados pela ONU em setembro.

Soldado francês da missão europeia na República Centro-Africana faz patrulha em uma rua da capital, Bangui, em 8 de maio
Foto: Emmanuel Braun / Reuters

“A ONU decidiu criar essa missão para desarmar os insurgentes, estabelecer a ordem no país – principalmente na capital que está tomada pelos rebeles –, proteger a população civil e fornecer assistência humanitária”, explica Giancarlo Summa, diretor do Centro de Informação da ONU para o Brasil.

Treze países da União Europeia prometeram transferir para a República Centro-Africana um total de 850 homens que terão o objetivo de “repor a ordem pública” e “assegurar a estabilidade da região”.

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A participação de Portugal na missão europeia, com início previsto para o último 20 de maio, foi adiada por tempo indeterminado.

República Centro-Africana: uma nova Ruanda?

A comunidade internacional teme que a República Centro-Africana seja palco de um genocídio tal qual visto em Ruanda, no início da década de 1990 e que resultou no massacre de cerca de 800 mil pessoas por extremistas étnicos hutus.

Desde que o governo Seleka foi derrubado, um dos países mais pobres do continente africano, tem sido varrido pela onda de violência étnica e religiosa.

O diretor de Operações do escritório das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários, John Ging, em entrevista ao portal da ONU, chamou atenção para o fato de a religião estar sendo explorada para segregar ainda mais as comunidades. Segundo ele, os civis estão sendo “radicalizados e manipulados pelas milícias que lhes fazem acreditar que a segregação é a solução para a crise”.

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Giancarlo Summa concorda com tal teoria.

“Sem dúvida, há uma preocupação real que o conflito na República Centro-Africana se torne um conflito semelhante com o vivido em Ruanda, principalmente porque conflitos étnicos vêm se multiplicando na África. Se a comunidade internacional não intervier, existe a possibilidade de um massacre; o fanatismo religioso é uma poderosa arma de guerra que vem conquistando imensos corações ”, ressalta. 

Sanções podem ter impacto no conflito?

Os Estados Unidos decidiram, na primeira semana de maio, impor sanções contra o ex-presidente da República Centro-Africana François Bozizé, e mais quatro lideranças políticas, consideradas responsáveis pelos crimes cometidos no país.

Entre elas, estão o dirigente e o líder da coalização Seleka, que exerceu o cargo de presidente após o golpe de 2012, Noureddine Adam e Michel Djotodia, respectivamente; o representante das milícias Antibalaka, Levy Yakete, e o líder da Frente Democrática do Povo Centro-Africano (FDPC) e fundador da Seleka, Abdoulaye Miskine.

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Fazem parte das sanções, a proibição de viagens e o bloqueio de ativos econômicos das lideranças fora do país.

Mas será que elas poderão, de fato, representar uma saída para o confronto? Será que o envio de tropas estrangeiras podem ajudar a poupar a vida de muitos centro-africanos?

Quem viu e viveu o conflito acredita que não. “Eu queria ser positiva, mas eu não vou ser. Eu não acredito que esse conflito será resolvido tão cedo, principalmente pelo ódio. Como você acaba com isso? O ódio é passado de geração para geração e não há nenhum acordo internacional que dê conta de aplacar isso" conclui Vanessa.

Foto: Arte Terra

Fonte: Terra
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