Corrupção e desigualdade social são desafios para África do Sul pós-Mandela

Protagonista do processo de reconciliação racial no país, Madiba foi enterrado no domingo com toda a pompa que lhe era merecida

16 dez 2013 - 08h47
(atualizado às 16h14)
<p>Flores, ursinhos de pelúcia e fotos de Mandela foram colocados em frente à casa do líder sul-africano</p>
Flores, ursinhos de pelúcia e fotos de Mandela foram colocados em frente à casa do líder sul-africano
Foto: Mauro Pimentel / Terra

Como já virou tradição, quando um grande personagem mundial morre, suas virtudes são incensadas e seus defeitos são minimizados. Com Nelson Mandela não foi diferente. Após dez dias de cerimônias fúnebres, Madiba, como é chamado entre os sul-africanos, foi enterrado neste domingo com toda a pompa que lhe era merecida. Foi o protagonista de um processo de reconciliação racial jamais visto na história e desembocou como primeiro presidente negro de seu país. É um feito e tanto para um homem que passou 27 anos atrás das grades.

Mas até que ponto o papel exercido por Mandela foi assimilado pela sociedade e qual é realmente o tamanho de seu legado? É notório que as divisões legais entre negros e brancos ruíram com o fim do regime do apartheid, desmantelado em 1992, mas oficialmente sepultado em 1994, quando Mandela assumiu a presidência. De lá para cá, o país voltou a receber investimentos estrangeiros que haviam cessado com a segregação, resultando em uma melhora substancial na qualidade de vida da população. Pelo menos nos números.

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Em um relatório recente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) destacou que o crescimento do PIB foi em média de 3,3% ao ano desde 1994, e a renda per capita ajustada pela inflação aumentou em 40%. Mais da metade da população recebe algum tipo de assistência social, e a taxa de pobreza caiu 10%. Mas esse mesmo relatório do FMI revela alguns dos problemas que assolam o país e que são visíveis nas ruas.

A África do Sul continua sendo um dos lugares mais desiguais do mundo. Os 10% mais ricos concentram em seus bolsos cerca de 60% de toda a renda. O coeficiente de Gini, uma medida padrão de desigualdade econômica, é ainda maior do que o de países sul-americanos altamente desiguais, como a Colômbia e o próprio Brasil. 

Homem segura um cartaz em que Mandela aparece no lugar de Cristo na Santa Ceia
Foto: Mauro Pimentel / Terra

A África do Sul também tem um problema de desemprego crônico. Um quarto da população está desempregada. Se você contar trabalhadores que já estão desencorajados a procurar uma ocupação, a contagem sobe para um terço. E esse número não inclui milhões de pessoas pobres, muitas em áreas rurais, que estão fora do mercado de trabalho.

Some-se a isso as denúncias de nepotismo e corrupção, intimamente ligadas ao Congresso Nacional Africano (CNA), o partido pelo qual Mandela se elegeu e que vem se perpetuando no poder desde então, e as altas taxas de criminalidade, a África do Sul continua segregando negros e brancos. Desta vez, no entanto, sob o manto do regime democrático e da liberdade econômica.

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Mas até que ponto Mandela pode ser responsabilizado pelo estado atual das coisas em seu país? Nos jornais sul-africanos, entre matérias louvando o legado antirracial e louros ao partido, poucos historiadores se atreveram a reexaminar o processo de transição que ocorreu em meados da década de 1980, quando Mandela começou a negociar com as autoridades brancas de sua cela na prisão.

Na Carta da Liberdade, datada de 1955, o CNA havia se comprometido com alguns pilares caros aos negros, como a propriedade pública dos recursos naturais e a redistribuição de terras de proprietários brancos. Mas, em troca da promessa de eleições livres, estas demandas foram colocadas de lado. Hoje, o assunto é tabu entre militantes e chefes do partido.

Ainda assim, alguns dos ex-colegas de Mandela no CNA agora acreditam que o partido, nas negociações com o governo de Frederik de Klerk, não pressionou de forma suficiente. "Naquele tempo, o equilíbrio de poder estava com o CNA e as condições eram favoráveis para uma mudança mais radical na mesa de negociações do que foi realmente feito", afirma Ronnie Kasrils, que serviu como ministro de inteligência da África do Sul de 2004 a 2008, em artigo publicado no jornal The Star. "Não era certo que o então governo, a despeito de alguns radicais de direita isolados, teria vontade ou capacidade de recorrer à repressão sangrenta diante da liderança de Mandela. Se tivéssemos mantido a nossa coragem, poderíamos ter pressionado sem fazer as concessões que fizemos. “

Mulher participa das celebrações em frente ao Union Buildings
Foto: Mauro Pimentel / Terra

É fácil analisar os fatos em retrospectiva, mas é ainda mais claro perceber que o governo do apartheid não estava em uma situação cômoda. Pressionado pela comunidade internacional e com fontes de financiamento estrangeiro secando à medida em que a segregação era mais estimulada, os brancos não tinham outra saída a não ser negociar com Mandela e o CNA. Prova disso é que a África do Sul pós-apartheid passou a receber ajuda econômica do Banco Mundial e do FMI, bem como de países como Inglaterra e Estados Unidos. Hoje, é o nono maior beneficiário de ajuda americana, recebendo cerca de US$ 750 milhões por ano.

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No ano passado, a ala jovem do CNA começou uma campanha para nacionalizar minas e bancos. Essa mesma política foi rejeitada por Mandela em 1994 e repudiada agora, com o presidente Jacob Zuma reafirmando o seu apoio ao acordo básico que Mandela fez com os brancos.

Homem segura um quatro com o rosto de Nelson Mandela durante as homenagens ao líder sul-africano
Foto: Mauro Pimentel / Terra

Essa paralisia tem inquietado muitos sul-africanos que acreditam que o país foi dominado por um governo que, ao longo dos anos, se transformou em uma panelinha ineficiente e auto-sustentável. Prova disso foram as vaias que Zuma recebeu na última terça-feira, durante a homenagem a Mandela no estádio Soccer City, em Johannesburgo. 

A postura do arcebispo Desmond Tutu, companheiro contumaz de Mandela mundo afora, também prova isso. Tutu passou a ser um dos maiores críticos do governo do CNA a tal ponto que sua presença no enterro de Mandela, ontem, só foi confirmada praticamente em cima da hora e após uma reclamação pública do religioso, que apontou sua relação com o governo como principal empecilho à sua presença.

Mandela nunca negou que era avesso ao papel de presidente. Candidatou-se porque foi o ícone de um processo pelo qual dedicou sua vida, mas a parte administrativa foi legada ao seu partido. Tanto que não empreitou a reeleição. Ele foi fiel ao CNA até o fim, abstendo-se de qualquer crítica pública mesmo sendo instado por antigos companheiros a tal. Talvez seria pedir demais de um único homem que já havia feito o milagre de unir novamente brancos e negros.

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Fonte: Terra
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