Alfredo Ballí, o assassino mexicano que inspirou o personagem Hannibal Lecter

Um jovem e respeitado médico da cidade de Monterrey confessou um crime hediondo em 1959. Por acaso, o escritor Thomas Harris o conheceu e saiu com uma forte impressão que o inspiraria para seus romances anos depois

1 set 2023 - 16h24
Alfredo Ballí era um médico de Monterrey quando confessou crime horrendo
Alfredo Ballí era um médico de Monterrey quando confessou crime horrendo
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

Diziam que o diabo estava solto em Monterrey.

A cidade do norte do México estava envolta em um furor social no final de 1959, após o assassinato de várias pessoas em circunstâncias horríveis.

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Dois assassinatos em particular chamaram a atenção naquela cidade que, naquela época, não estava acostumada com grandes manchetes de histórias de crimes.

Primeiro, houve o assassinato de Jesús Castillo Rangel, um jovem cujo corpo foi desmembrado e enterrado em um consultório médico no bairro de Talleres.

"Esse achado causou uma grande preocupação. E o fato de que, alguns dias depois, descobriu-se que o autor era um médico brilhante e jovem, chocou a cidade e a deixou em choque", explica o jornalista e escritor Diego Enrique Osorno, que investigou os casos.

Depois, três irmãos da família Pérez Villagómez foram massacrados enquanto voltavam do Texas de uma viagem de compras e foram atacados por um "louco" armado em uma estrada próxima à cidade, capital do Estado de Nuevo León.

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"Naquela época, a cidade estava tomada por um furor muito grande porque crimes que nunca haviam acontecido estavam ocorrendo", observa Osorno.

Esses casos de alto impacto não estavam relacionados entre si, mas inesperadamente se uniram para que o famoso escritor Thomas Harris, autor de O Silêncio dos Inocentes, criasse um dos vilões mais icônicos da literatura e do cinema do século 20: o dr. Hannibal Lecter.

O escritor se inspirou especialmente no homem por trás do assassinato de Jesús Castillo: o médico mexicano Alfredo Ballí Treviño.

Doutor Salazar

Thomas Harris era um jovem jornalista de 23 anos que morava em Waco, no Texas, onde colaborou com um jornal local e com a revista Argosy.

Nesta última publicação, ele foi convidado a viajar ao México para se encontrar com Dykes Askew Simmons, um texano que foi preso e condenado pelo assassinato dos irmãos Pérez Villagómez em 1959 e que foi considerado um "bode expiatório".

Simmons era um homem com várias marcas no rosto, incluindo lábio leporino e outras cicatrizes.

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Ele ficou confinado na prisão estadual de Topo Chico, em Nuevo León, onde foi condenado à morte (uma das últimas penas de morte proferidas no México antes de sua abolição).

O condenado certa vez tentou fugir da prisão, mas o plano não deu certo e ele foi baleado diversas vezes pelos guardas.

"Ele não sangrou até a morte porque foi salvo por um médico da prisão que era muito qualificado", explica Harris na edição do 25º aniversário de seu romance O Silêncio dos Inocentes.

Anthony Hopkins interpretou no cinema o médico Hannibal Lecter
Foto: Orion Pictures / BBC News Brasil

Na prisão, Harris conheceu um médico chamado Salazar, que o consultou enquanto estava detido.

Harris o descreveu como um homem baixo e de pele clara, com cabelos ruivos escuros, mantendo uma postura ereta que carregava consigo uma certa elegância, conforme relato do escritor em seu livro.

Durante seu tempo na prisão, ele teve longas conversas com o médico sobre Simmons e seu perfil psicológico, especulando que as experiências de bullying relacionadas à sua aparência física poderiam ter influenciado seu comportamento.

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Antes de deixar a prisão, Harris indagou ao diretor de Topo Chico sobre a identidade daquele médico perspicaz.

Ele ficou chocado ao ouvir: "O médico é um assassino".

"Como cirurgião, ele conseguiu embalar sua vítima em uma caixa surpreendentemente pequena", disse o diretor a Harris.

Na época, Alfredo Ballí (esq.) e Dykes A. Simmons eram dois prisioneiros famosos ​​em Topo Chico
Foto: Reprodução / BBC News Brasil

Era um médico considerado "louco", porém inteligente, a quem permitiam atender os prisioneiros e até realizar consultas externas para pessoas carentes, pois "com os pobres, ele perdia um pouco de sua loucura".

No texto, Harris menciona que Salazar não era o sobrenome real do médico, mas ele optou por não revelar seu nome verdadeiro para que o deixassem em paz.

Passaram décadas até que, em 2013, o escritor revelasse na reedição de seu romance que aquela viagem ao México e, especialmente, o médico condenado da prisão de Topo Chico, serviram de inspiração para o personagem Hannibal Lecter.

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O Monstro de Talleres

Ballí era um jovem médico casado que tinha seu consultório no bairro de Talleres, em Monterrey.

Lá, ele era uma figura respeitada, principalmente por sua dedicação ao atendimento de pessoas sem acesso aos programas de saúde.

Aos 28 anos, em 8 de outubro de 1959, ele teve um confronto em seu consultório com Jesús Castillo Rangel, um jovem de 20 anos com quem supostamente mantinha um relacionamento sentimental.

Durante as investigações, descobriu-se que Ballí deu um sedativo a Castillo e, mesmo com o jovem ainda vivo, usou seus instrumentos cirúrgicos para desmembrá-lo.

Em seguida, colocou seu corpo em uma caixa, mas não conseguiu esconder bem suas pistas, e o corpo foi encontrado em seu consultório.

O jornalista Diego Enrique Osorno explica que ajudou Harris a investigar os assassinatos de 1959 antes que o escritor americano revelasse a identidade do "doutor Salazar".

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O jornal El Norte deu a notícia do assassinato de Jesús Castillo
Foto: El Norte / BBC News Brasil

"Uma das questões que cercavam o caso de Ballí era a de um crime passional, envolvendo um relacionamento homossexual, algo considerado escandaloso naquela época e em uma cidade tão conservadora como Monterrey", explica Osorno, acrescentando que "ele chegou à prisão como o 'Monstro de Talleres', alguém sem uma sexualidade binária claramente definida".

Não demorou muito após o assassinato de Castillo para que Ballí confessasse o crime.

Ele foi condenado à prisão em Topo Chico, que naquela época era uma prisão estadual temida, onde qualquer pessoa, ao menor rumor de ser homossexual, enfrentaria dificuldades.

No entanto, Ballí não teve problemas. Pelo contrário, ele se tornou um homem respeitado durante sua estadia lá.

O médico da prisão

Atualmente, Osorno está trabalhando na produção de uma minissérie documental que será lançada em 2024, o que ampliou sua pesquisa sobre o caso.

O jornalista e escritor afirma que os anos de prisão vividos por aquele médico revelam um personagem fascinante e contraditório.

Pouco depois de ser preso, Ballí utilizou suas habilidades médicas para tratar outros detentos feridos em brigas na perigosa prisão. Em certo momento, ele até teve um consultório autorizado.

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"Ele é um médico que salvou muitas vidas na prisão. Ele não apenas atendia os pacientes internos, mas também, nos dias de visita familiar, havia filas de pessoas dos bairros pobres próximos à prisão que vinham buscar atendimento médico que o Estado não fornecia", explica Osorno.

A imagem que ele projetava era notável, considerando que havia cometido friamente um crime como o assassinato de Castillo.

"Ele se mostrava como alguém brilhante, inteligente e impecável, que não parecia um assassino", acrescenta Osorno.

Ao contrário de Lecter, o dr. Ballí não cometeu canibalismo
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Segundo o próprio Harris, quando era um jovem jornalista, ficou impressionado com a forma como o médico mexicano analisava Simmons.

"Senhor Harris, como se sentiu ao olhar para Simmons?", perguntou Ballí, pois o médico "tentava determinar se ele se encaixava na descrição feita por uma testemunha ocular".

Eles discutiram as cicatrizes de Simmons e como ele se comportava quando olhavam diretamente para ele. E se o assassinato dos irmãos Pérez Villagómez foi uma resposta de Simmons ao se sentir intimidado por sua aparência.

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"Você é jornalista, sr. Harris. Como registraria isso em seu jornal? Como lida com o medo e o tormento no jornalismo? Poderia fazer algum comentário perspicaz sobre o tormento?", perguntou Ballí a Harris.

O perfil de Lecter

Harris afirma que, graças à sua entrevista com o médico de Topo Chico, pôde identificar as características de Hannibal Lecter, que aparece pela primeira vez no livro Dragão Vermelho como um personagem secundário.

"Anos depois, enquanto tentava escrever um romance, meu detetive precisava falar com alguém que tivesse um conhecimento peculiar da mente criminosa. Perdido no labirinto do trabalho, levei meu detetive ao Hospital Estadual de Baltimore para criminosos insanos para consultar um detento", relata Harris na edição do 25º aniversário de seu romance.

"Quem vocês acham que estava na cela esperando? Não era o dr. Salazar, mas graças ao dr. Salazar, eu poderia reconhecer seu colega e companheiro, Hannibal Lecter."

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Thomas Harris revelou em sua reedição de Silêncio dos Inocentes que foi inspirado pelo médico assassino de Monterrey
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Para Osorno, a figura de Ballí se refletiu em Lecter de duas maneiras: sua aparência impecável, elegante e obsessivamente limpa dentro de uma prisão sombria e sinistra como Topo Chico.

"E, por outro lado, a habilidade de penetrar na mente dos outros e gerar questões intrigantes sobre o que motiva alguém a cometer um crime", ele considera.

"Em 1979, quando Harris escreveu seu primeiro romance, ele criou o personagem em Dragão Vermelho, e aí foi a primeira vez que ele mergulhou em suas próprias impressões como repórter. Ele ficou muito impactado com aquele encontro e introduziu o personagem de Hannibal Lecter, uma espécie de Drácula", diz.

Simmons parece ter sua própria semelhança com o personagem do filme Dragão Vermelho, que também tem lábio leporino, mas Harris não mencionou se aquele texano encarcerado em Monterrey também foi sua inspiração.

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O jornalista Diego Enrique Osorno recriou o consultório de Ballí para sua próxima minissérie sobre a história do médico
Foto: Reprodução / BBC News Brasil

A pena que Ballí estava cumprindo foi comutada após 20 anos. O médico foi libertado no final da década de 1970 e, para surpresa de alguns, retornou ao seu consultório para continuar atendendo pessoas do bairro de Talleres.

Ballí havia confessado o assassinato de Jesús Castillo, mas o motivo do ataque nunca ficou claro, assim como outros assassinatos pelos quais o médico era suspeito, mas que nunca foram comprovados.

"Sobretudo, houve um par de casos identificados, mas nunca formalmente comprovados nem reconhecidos por Alfredo Ballí. Em nossa investigação, levantamos certas questões sobre dois casos", diz Osorno, que visitou o consultório do médico após sua morte em 2009.

Mais de uma década depois, o jornalista aponta que sua pesquisa sobre aquele médico revelou "uma história sobre a fascinação pelo mal, sobre por que, no final das contas, somos atraídos por ele".

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