O acordo de paz para encerrar a guerra de mais de 50 anos na Colômbia - sobre o qual os colombianos vão às urnas neste domingo - parecia algo impensável para Sandra Sandoval.
A ex-guerrilheira das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) decidiu abandonar as armas 13 anos do pacto recém-celebrado entre governo e guerrilha, movida por uma gripe forte, a paranoia da deserção no grupo e a perseguição das autoridades.
"Foi complicado me entregar e pedir perdão para um inimigo que nunca teve razão", disse Sandra à BBC Brasil.
Na última segunda-feira, o governo de Juan Manuel Santos e o líder das Farc, Timoleón Jiménez, conhecido como "Timochenko", assinaram um cessar-fogo para acabar com o conflito que deixou 260 mil mortes, 7 milhões de deslocados e cerca de 50 mil desaparecidos.
Após quatro anos de negociações em Havana, Cuba, e três fracassos de governos anteriores, os dois lados estabeleceram as bases para iniciar o processo de paz - que precisará ser confirmado no plebiscito nacional deste domingo.
Segundo as pesquisas, o "sim" lidera. Para que o acordo seja ratificado, o governo necessita do apoio de pelo menos 13% dos eleitores registrados da Colômbia, ou cerca de 4,5 milhões de pessoas.
As Farc inclusive afirmaram no sábado que vão indenizar materialmente as vítimas do conflito, no âmbito do acordo.
Mas a resistência dos grupos conservadores, liderada pelo ex-presidente Álvaro Uribe, divide a sociedade colombiana. Para eles, o acordo favorece as Farc e prevê sentenças "muito reduzidas" para ex-guerrilheiros que cometeram crimes graves. Eles também criticam a anistia para crimes considerados mais leves e a autorização para que ex-membros das Farc sejam eleitos.
Os apoiadores do acordo reforçam que a guerra já causou muitos estragos e que o voto pelo "sim" é um passo em direção à construção da paz.
"Chegou a hora de colocar um fim nessa guerra e continuar nossa luta sem armas", opina Sandra, que pretende ingressar na política para "lutar por direitos de ex-combatentes".
'Limbo'
Quando se entregou às autoridades colombianas, em 2003, Sandra não tinha a intenção de deixar o grupo.
Ela havia pedido autorização às Farc para "deixar a selva temporariamente para tratar uma gripe mal curada". Aproveitou a licença temporária para visitar sua filha, fruto da relação que teve com um guerrilheiro quando ainda servia como miliciana na cidade.
Sua saída prolongada da selva causou desconfiança em parte de membros do grupo, que começaram a persegui-la. Ao mesmo tempo, ela estava sendo caçada pelas autoridades.
"Fiquei num limbo jurídico, sem saber o que fazer", relembra Sandra. Na época, a política do então presidente Álvaro Uribe para o conflito era a saída militar, e não negociada. As alternativas à luta armada eram a rendição ou a morte.
"Sem saída", ela se entregou às autoridades e se incorporou ao programa de reintegração social estabelecido pelo governo colombiano para incentivar as deserções.
Carta às Farc
O primeiro contato de Sandra com a guerrilha ocorreu aos 11 anos de idade, quando decidiu escrever uma carta para um comandante das Farc, solicitando ingresso voluntário.
Fazer parte das fileiras das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, o maior grupo rebelde do país, era uma forma de "fugir da realidade que estava vivendo", relembra Sandra, hoje com 36 anos.
De origem camponesa, ela cresceu numa comunidade indígena no departamento de Cauca, território com grande incidência guerrilheira.
Criada pelos avós, teve uma infância marcada por pobreza e trabalho duro. Mas o que levou a jovem a deixar sua casa foi a violência sexual que sofreu desde pequena. "Os abusos vieram de quatro ou cinco pessoas muito próximas à minha família", relata Sandra.
"Começou quando eu era muito pequena e foi até meus 11 anos, quando tomei a decisão de me defender."
Não demorou muito até que sua carta fosse respondida por um comandante das Farc. "Ele disse que eu era muito jovem, teria que esperar."
Enquanto esperava, Sandra tornou-se ativista e passou a defender o direito e o acesso ao território de sua comunidade indígena. Em protestos e assembleias, conta a ex-guerrilheira, aprendeu sobre a política e a história da Colômbia.
Aos 17 anos, quando "finalmente" foi recrutada pelas Farc, o desejo de entrar para a guerrilha continuava forte, mas suas razões haviam mudado. Agora, desejava combater para "mudar a realidade do país".
"Eu achava que a pobreza que eu vivia era a única que existia", diz Sandra. "Mas foi nas montanhas da Colômbia que eu presenciei a real miséria que existe no meu país."
Somos todos vítimas'
Sua entrada oficial na guerrilha ocorreu em 1997. Iniciou como miliciana, conta, e após dois anos foi transferida para a selva. Nas Farc, Sandra recebeu uma formação política de inspiração marxista, aprendeu sobre igualdade de gênero e chegou a se tornar comandante.
Sandra conheceu seu atual companheiro, Jhon Jairo Romero, em Bogotá, seis anos após desmobilizar-se. Na época, trabalhava como gestora de projetos sociais e tinha como desafio reconciliar pessoas deslocadas pelo conflito, ex-guerrilheiros, ex-paramilitares e vítimas da guerra.
O primeiro contato do casal aconteceu em uma reunião comunitária. Sandra diz ter encontrado na história de Jhon semelhanças com a sua própria trajetória.
Assim como Sandra, Jhon cresceu num território rural dominado por guerrilhas e teve uma infância na pobreza. A única diferença entre os dois, diz Sandra, é que ele optou por uma juventude longe das armas.
Aos 15 anos, Jhon e seu irmão fugiram para Bogotá para se proteger das Farc, que os perseguia com intenção de recrutá-los. Eles não imaginavam, porém, que a vida na capital seria outro tipo de batalha.
"Chegaram aqui sem comida, moradia nem emprego e tiveram que começar sua vida do zero", conta Sandra. Atualmente, o casal vive numa casa precária de três cômodos na periferia de Bogotá, juntamente com suas duas filhas - além das duas filhas mais velhas de Sandra, que são frutos de sua relação anterior.
"A sociedade não entende que somos todos vítimas", diz Sandra. "Meu companheiro foi deslocado por causa das Farc e eu estou deslocada porque lutei para mudar a realidade de meu país", conta a ex-guerrilheira, que optou por não retornar ao seu território de origem por questão de segurança.
A aprovação do acordo de paz no plebiscito de domingo, diz ela, aumentaria suas chances de revisitar sua cidade natal.
Sociedade dividida
O governo de Juan Manuel Santos alertou que não existe um plano B nem a possibilidade de renegociação com as Farc caso o "não" vença nas urnas. Mas a vitória do "sim" não significa que a paz será restabelecida na Colômbia da noite para o dia. O conflito marcou muitas vidas e deixou grandes sequelas na sociedade.
Para muitos colombianos, a possibilidade de um acordo de paz, ironicamente, traz memórias sombrias do passado. Durante negociações na década de 1980, membros da guerrilha se uniram ao partido político União Patriótica (UP) e milhares deles foram assassinados por grupos paramilitares de extrema direita.
Em um de seus discursos recentes, Santos chegou a admitir publicamente o papel do governo nos assassinatos, reconhecendo que não foram tomadas medidas necessárias para prevenir o que muitos consideram um "genocídio político".
Já as sequelas causadas pelas Farc incluem sequestro de milhares de pessoas, extorsão e tráfico de drogas - meios que o grupo utilizou para financiar suas cinco décadas de conflito.
Esses atos, que direta ou indiretamente tocaram muitas famílias, deixam colombianos divididos em importantes questões relacionadas ao acordo de paz. A reintegração de rebeldes à sociedade é uma delas.
Enquanto parte da população está otimista e acredita que o retorno dos guerrilheiros à vida civil trará mais benefícios do que problemas, muitos ainda estão preocupados com a ideia de viver em meio a ex-combatentes.
Se o acordo for ratificado, aproximadamente 7 mil membros da Farc deverão entregar suas armas à ONU ao longo dos próximos seis meses.
"É importante que a sociedade se comprometa a não estigmatizá-los ou rejeitá-los", afirma Joshua Mitrotti, diretor da Agência Colombiana para Reintegração (ACR), entidade encarregada de assistir os desmobilizados no retorno a sociedade civil.
"Essa não é uma história de bons ou maus, e sim uma história complexa que nós colombianos vivemos", opina Mitrotti.