De seu escritório em Lima, o peruano Richard Concepción Carhuancho cita um nome, por chamada de vídeo, para descrever sua atuação: Sergio Moro.
Juiz de primeira instância, Carhuancho já decretou a prisão preventiva de dois ex-presidentes de seu país. É visto ora como um herói, ora como um algoz que abusa de seu poder - dualidade que também acompanha o magistrado brasileiro, em quem diz "orgulhosamente" se inspirar.
"No nível da América Latina, Sergio Moro é um juiz emblemático, um paradigma que praticamente serve como modelo para outros juízes que lidam com organizações criminosas", diz Carhuancho, de 46 anos, à BBC Brasil, antes de contar que acompanha o trabalho do brasileiro pelo noticiário e por exposições acadêmicas. "Me inspira a filosofia de trabalho que ele tem."
As semelhanças não param por aí: os ex-presidentes Alejandro Toledo e Ollanta Humala são suspeitos de terem se beneficiado de esquemas de corrupção envolvendo a construtora brasileira Odebrecht, um dos principais alvos da operação Lava Jato, que alçou Moro a figura-chave no noticiário nacional.
Toledo é acusado de ter recebido propina durante seu mandato, entre 2001 e 2006, e se encontra foragido nos Estados Unidos. Humala, que governou o país de 2011 a 2016, e sua mulher, Nadine Heredia, são acusados de lavagem de dinheiro por conta do recebimento de caixa dois pago pela Odebrecht.
Carhuancho ordenou a prisão preventiva de Humala e Heredia, após 15 horas de audiência, no dia 13 de julho, um dia após o magistrado paranaense condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a nove anos e meio de prisão.
O juiz diz ter decidido pela prisão preventiva após levar em conta tentativas dos acusados de obstruir as investigações e diante da possibilidade de ambos fugirem do país - a exemplo do que ocorreu com Toledo - após a nomeação de Heredia para um cargo de direção na Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), comandada pelo brasileiro José Graziano da Silva.
Humala é primeiro ex-chefe de Estado a parar na prisão por causa do esquema de corrupção desvendado pela operação Lava Jato.
No Peru, como vinha ocorrendo com Moro, Carhuancho viralizou. No Twitter, a hashtag #GraciasCarhuancho ("#ObrigadaCarhuancho) teve grande circulação, ao lado de comentários elogios e até pedidos para que o juiz se lançasse à Presidência do país.
"Sempre existem pessoas que optam pelas decisões corretas, podemos voltar a acreditar nas autoridades. Autoridades como o juiz deveriam optar por ser presidentes", escreveu um internauta nos comentários de um vídeo no YouTube que mostra trechos da audiência.
No Facebook, uma imagem do juiz com os dizeres "Carhuancho Presidente! Compartilhe se apoia o valente juiz Richard Concepcion Carhuancho" foi compartilhada milhares de vezes no Facebook.
Entretanto, assim como o juiz que chegou a figurar em 2º lugar nas pesquisas de opinião sobre intenção de votos em possíveis candidatos à Presidência no Brasil, Carhuancho diz não ter interesse em uma carreira política.
"Agradeço as amostras de carinho, mas não penso na política. Nas ruas, as palavras amáveis me fazem sentir muito honrado, isso dá até mais força para continuar fazendo o meu trabalho", diz à BBC Brasil.
Críticas
As críticas de alguns juristas ou de pessoas sendo julgadas por ele ecoam as reclamações de abuso de autoridade ouvidas no Brasil.
"Esta é a confirmação do abuso de poder, ao qual faremos frente, em defesa dos nossos direitos e dos direitos de todos", escreveu Humala no Twitter, após a ordem de prisão preventiva.
Uma apelação do casal contra a decisão foi rejeitada por um tribunal peruano no início de agosto.
Para o advogado criminalista Luis Lamas Puccio, não havia provas consistentes que justificassem a prisão preventiva.
"A audiência parecia a leitura de uma sentença, uma condenação, quando o que se discutia era o perigo de fuga", afirmou ele à BBC Brasil. "Houve um exagero. Para a opinião pública, encarcerar as pessoas parece fazer Justiça".
Já Ángel Delgado, professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Peru, diz que a decisão "foi bem fundamentada, suficiente para uma decisão provisória deste tipo". "Tanto é que foi ratificada por um tribunal recentemente".
À BBC Brasil, Carhuancho diz ter sido "muito tolerante" com as críticas, e ressalta ter consciência de que "estamos em um sistema democrático".
O peruano se diz admirador, também, da atuação do juiz italiano Giovanni Falcone, que conduziu um enorme processo contra membros da máfia siciliana nas décadas de 80 e 90 baseado nas delações de mafiosos arrependidos - e que foi assassinado em 1992. Essas delações levaram à operação Mãos Limpas na Itália, que trouxe à tona um esquema de corrupção envolvendo políticos, partidos, governo e empresários e que é constantemente citada como grande inspiração da Lava Jato.
"Alguns questionam que não há provas contundentes para decisões tão importantes como a prisão preventiva" defende Carhuancho. "Uma organização obviamente não vai ter registro público, pessoa jurídica, nem vamos encontrar fichas de afiliação de pessoas envolvidas. Essas organizações trabalham à margem da lei, de forma clandestina."
"É impossível reunir todas as evidências, pois elas são eliminadas. Desta forma, é preciso trabalhar com indícios. Mundialmente temos exemplos históricos desta orientação, como a condenação de Al Capone e a Operação Mãos Limpas."
Política
No Peru, as investigações a partir das revelações da Lava Jato que investigam a relação entre empresas e políticos receberam o nome oficial de "operación Autolavado", uma tradução literal de Lava Jato. Mas, diante do foco na empreiteira brasileira, ficou conhecido mesmo como "Caso Odebrecht".
Delações de Marcelo Odebrecht, então presidente da Odebrecht, colhidas pela Lava Jato e encaminhadas à Justiça peruana, e do representante da Odebrecht no Peru Jorge Barata, feitas à procuradoria peruana, são as principais fontes das acusações.
Na semana passada, Carhuancho encaminhou aos EUA um novo pedido pela extradição de Alejandro Toledo.
Segundo investigações do Departamento de Justiça dos EUA, que rastreou movimentação de contas da Odebrecht no exterior, a empresa fez pagamentos ilegais a oficiais peruanos no valor aproximado de US$ 29 milhões entre 2005 e 2014 — período que engloba os governos de Toledo, Alan García e Humala.
Há suspeitas de que empreiteiras brasileiras fizeram pagamentos irregulares a todos estes ex-presidentes. Eles negam as acusações e afirmam serem vítimas de perseguição política. O atual presidente, Pedro Pablo Kuczynski, e a candidata presidencial derrotada em 2016 Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori, também estão sendo investigados. Alberto Fujimori, que governou o país de 1990 a 2000, foi condenado em 2009 a pena de 25 anos de prisão por violações de direitos humanos.
Especialistas peruanos consultados pela BBC Brasil estão divididos quanto aos argumentos de que a Justiça estaria sendo seletiva nas investigações e seguindo critérios políticos.
Puccio diz que as decisões têm beneficiado os que detêm mais força política no momento. Humala, por exemplo, estaria enfraquecido, o que não seria o caso de Fujimori e do atual presidente, Pedro Pablo Kuczynski.
Delgado, por sua vez, acredita pouco no peso de posições ideológicas, uma vez que as investigações estão recaindo sobre vários governos diferentes.
"Os governos implicados são de correntes distintas, da direita e da esquerda."
Em nota, a Odebrecht afirmou que "A Odebrecht Peru vem cooperando com as autoridades desse país para o avanço de investigações em curso".
Segurança
Juiz desde 2006, Carhuancho, sua mulher e seus dois filhos são acompanhados diariamente por seguranças há alguns anos, desde que ele passou a julgar esquemas de corrupção no Departamento (Estado) peruano de Ancash.
Entre os processos que julgou, esteve um que levou à prisão preventiva do ex-governador de Ancash, César Álvarez Aguilar, em 2014. Aguilar permanece preso e é acusado de ter recebido propina da Odebrecht.
Carhuancho diz que ter informações de que "o perigo para mim e para minha família aumentou". "É uma circunstância difícil, minha esposa até já pediu para eu parar, mas o mais importante é cumprir o meu dever."
"Entendo que o Estado peruano me deu uma grande responsabilidade de estar à frente destes processos. Isso me obriga a conduzi-los com a maior imparcialidade, escrúpulo, respeitando o devido procedimento", acrescenta.