Nesta terça-feira, 26, quando começar o julgamento do ginecologista Eduardo Vela, de 85 anos, milhares de vítimas de uma rede clandestina de adoções vai estar esperando por respostas. O médico é acusado de ter ajudado a roubar um bebê ainda nos anos 1960 na Espanha.
Vela é o primeiro a enfrentar a Justiça pelo escândalo que abala o país. Segundo grupos de vítimas, o roubo de bebês era uma prática secreta que tirou aproximadamente 300 mil crianças das próprias mães biológicas para serem vendidas, principalmente, durante a ditadura militar de Francisco Franco.
Logo depois da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), Franco assumiu o comando do país e crianças começaram a ser retiradas de famílias identificadas como republicanas pelo regime autoritário. Elas eram entregues a pessoas que, aos olhos do governo, "mereciam mais" os bebês.
Muito pouco ainda se sabe, no entanto, sobre o tráfico de bebês, que continuou mesmo depois da morte de Franco, em 1975, e ganhou ares de escândalo quando dois homens vieram a público, em 2011, contar a própria história.
Antonio Barroso e Juan Luis Moreno revelaram ter sido comprados pelos respectivos pais. Quem os havia vendido foi um padre em Zaragoza.
Barroso fundou a Associação Nacional das Vítimas de Adoção Irregular (Anadir, na sigla em espanhol). Ele estima que 15% das adoções feitas na Espanha entre 1965 e 1990 tenham sido de crianças que foram retiradas das famílias biológicas sem consentimento.
Pelo menos um desses casos teria contado com o envolvimento direto do médico Eduardo Vela. O ginecologista é acusado de ter retirado Inés Madrigal da família biológica em 1969; ela, por sua vez, acredita que a mãe foi intimidada ou enganada.
"Foi dito à minha mãe (de criação) que a mãe biológica era uma mulher casada que não podia ficar comigo. Ela teve um caso quando o marido estava fora", conta Inés Madrigal.
Vela admitiu ter assinado uma certidão de nascimento atestando que os pais adotivos de Inés Madrigal eram os pais biológicos. Ele disse ao juiz, ainda na fase da investigação, que na condição de diretor da clínica San Ramón, em Madri, assinava documentos sem ler.
Um exame de DNA indicou que Inés não é filha dos Madrigal.
Antes de morrer, em 2016, a mãe de Inés revelou aos investigadores que o médico Eduardo Vela havia lhe dado o bebê como um "presente", depois que um padre jesuíta a apresentou ao ginecologista porque ela e o marido não podiam ter filhos.
O médico e o advogado dele se recusaram a comentar esse depoimento.
Um escândalo ainda em curso
Em 2008, o juiz Baltasar Garzón estimou que 30 mil crianças tinham sido roubadas de famílias consideradas "politicamente suspeitas" pelo ditador Franco.
Cerca de 3 mil casos foram denunciados, mas promotores arquivaram quase todas as investigações.
Em 2013, María Gómez Valbuena, uma freira de 87 anos, foi denunciada pelos crimes de sequestro e falsificação de documentos, mas morreu antes de ir a julgamento.
Quatro anos mais tarde, o comitê de petições e abaixo-assinados do Parlamento Europeu formalizou um pedido para que a Espanha fosse mais ágil em atender às vítimas, que queriam uma procuradoria especial para investigar os casos e a criação de um banco de DNA.
A Igreja Católica está sob pressão para abrir os arquivos das adoções feitas durante o Franquismo.
Eduardo Vela já tinha sido investigado brevemente pela polícia em 1981, quando uma revista chamada Interviú publicou entrevistas com mulheres que afirmavam ter sido enganadas depois do parto na clínica San Ramón.
Segundo os relatos, as mulheres eram enganadas na clínica e ouviam que as crianças haviam morrido e sido enterradas imediatamente.
Vela deixou a clínica no ano seguinte, e a investigação policial não foi a lugar algum. O caso foi arquivado.
Mais recentemente, no entanto, vítimas começaram a entrar em contato umas com as outras pela internet. E, desde 2010, a imprensa espanhola tem publicado histórias sobre o caso.
O capítulo de uma história que parecia ter chegado ao fim foi reaberto. Além do julgamento em Madri, Vela é alvo de outra investigação que apura o desaparecimento de outro bebê na clínica em 1971.
Fuencisla Gómez e o marido dela, Fernando Álvarez, agora se arrependem amargamente de terem aceitado à época a versão de que a filha recém-nascida tinha morrido, sem sequer ver o corpo. A exumação de alguns desses bebês indicou a presença de crianças diferentes e até de ossadas de adultos nos caixões.
'Este não é meu filho'
As suspeitas não se limitam apenas a Eduardo Vela e suas duas décadas no comando da clínica San Ramón. Outras maternidades e outras pessoas também são suspeitas de participar da rede de roubo e venda de recém-nascidos.
Agustina Fuentes e Eusebio Caballero afirmam que nunca viram o filho depois de terem sido informados que a criança morreu três dias depois de um parto complicado no hospital La Milagrosa, também em Madri, em 1981.
"Estava olhando ele na incubadora, pelo vidro, todos os dias", diz o pai. "Ele não tinha nenhum tubo. Então, no terceiro dia eles disseram que ele tinha morrido havia uma hora e meia", recorda Eusebio Caballero. Ele lembra que precisou brigar para ver o corpo.
Quando finalmente lhe mostraram um corpo, Caballero disse: "Este não é meu filho. Eu passei os últimos três dias olhando para ele."
O casal descobriu que não havia registro do nascimento da criança no cartório. Eles denunciaram a suspeita de que o filho havia sido roubado, mas procuradores arquivaram a investigação.
Cerca de 3.000 casos semelhantes foram relatados na última década, mas apenas alguns resultaram em investigações completas, já que os tribunais alegam faltar provas devido ao tempo que se passou desde que os supostos roubos aconteceram.
Inés Madrigal quer que o julgamento do caso dela motive autoridades a reabrir investigações. No entanto, ela própria não se mostra muito otimista com o resultado que pode vir da Corte.
"Eu sei que Eduardo Vela não vai me dizer o que eu quero saber, que é de onde eu venho."