Argentina: Governo questiona reputação de promotor morto

18 mar 2015 - 21h11
(atualizado às 21h11)

Marcia Carmo

(AP)
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Foto: BBC Mundo / Copyright

De Buenos Aires para a BBC Brasil

Dois meses após a morte de Alberto Nisman, de 51 anos, os argentinos são bombardeados todos os dias por supostas revelações sobre hábitos e a vida pessoal do promotor que investigava o atentado contra um centro judaico que matou 85 pessoas em 1994.

Nisman morreu em janeiro deste ano em circunstâncias misteriosas dentro de seu apartamento na capital do país, Buenos Aires. Segundo a versão oficial, ele se suicidou. Mas parte da opinião pública acredita que o promotor foi assassinado.

A imprensa local já afirmou que Nisman gostava de frequentar discotecas no bairro de Palermo, que teria viajado com uma jovem aspirante a modelo a uma praia do México, que teria sido visto na companhia constante de outra modelo, e que teria uma conta bancária questionável no exterior.

Críticos do governo afirmam que as revelações fazem parte de uma campanha para manchar a reputação do promotor em meio à polêmica sobre sua morte.

Nesta quarta-feira, o jornal Página 12 publicou que o único envolvido na investigação sobre a morte de Nisman, o técnico de informática Diego Lagomarsino, informou à Justiça, por escrito, que o promotor costumava ficar com metade do seu salário.

Lagomarsino trabalhava com Nisman na investigação do atentado à entidade judaica AMIA (Associação Mutual Israelense Argentina) e seu salário era supostamente pago por Nisman com recursos públicos destinados aos trabalhos para desvendar o ataque realizado em 1994.

Horas depois, o chefe de Gabinete da Presidência, Aníbal Fernández, disse à imprensa local que "Nisman era um sem-vergonha que saía com 'minas' (jovens) e que pagava 'nhoques' como Lagomarsino (termo usado para designar quem recebe dinheiro público e não trabalha)".

Ele afirmou ainda que "o Estado destinava recursos" para a unidade especial criada para que Nisman investigasse o chamado caso AMIA, mas que o promotor "debochou" das 85 vítimas fatais do atentado.

'Matar o morto'

Parte da opinião pública acusa governo de estar por trás de morte de promotor; ele teria cometido suicídio, segundo versão oficial

Lagomarsino disse à imprensa que emprestou a arma do crime ao promotor no sábado, dia 17 de janeiro. Nisman teria pedido a arma como forma de se proteger de possíveis ameaças, de acordo com ele.

"E tenho uma informação que não posso revelar agora porque pode manchar a imagem do promotor e essa informação não tem nada a ver com a morte dele", disse o técnico na ocasião.

Após a declaração de Fernández, o filósofo Santiago Kovadloff afirmou nas redes sociais que "o governo quer matar o morto", fazendo alusão às sucessivas revelações sobre a intimidade de Nisman.

Em seu discurso de abertura do ano legislativo no Congresso Nacional, no início do mês, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, disse que "não sabia qual era o verdadeiro Nisman". "Com qual Nisman eu fico?", indagou.

Segundo ela, primeiro o promotor apoiou a decisão do governo de levar aos âmbitos internacionais a investigação do atentado e depois acusou o goveno de "acobertar" iranianos que estariam envolvidos no ataque.

O promotor denunciou, quatro dias antes de ter sido encontrado morto, que Argentina e Irã fizeram um acordo que previa a venda de grãos aos iranianos em troca de que o governo argentino "acobertasse" acusados pelo atentado e do "apoio ao plano nuclear iraniano".

A presidente desmentiu as denúncias. Nos últimos dias, o governo publicou anúncios nos jornais internacionais para informar que um juiz entendeu que a denúncia de Nisman contra a presidente era "infundada".

Divergências

Na imprensa local, a abordagem do caso difere de acordo com o veículo de comunicação. Na rádio Mitre, um dos comentaristas disse: "Estão destruindo a imagem de Nisman".

No canal de TV TN, o apresentador do programa policial Câmara do Crime afirmou que "estão manchando a memória da vítima e sem motivos. Só se estão querendo desviar a investigação sobre a morte deste homem".

Na emissora CN23, também nesta terça, o tom foi diferente. "Hoje, dois meses após a morte do promotor Nisman, foi realizada uma pequena manifestação, com menos de 100 pessoas, em homenagem a ele em frente ao Palácio de Tribunais, no centro da cidade".

No dia 18 de fevereiro, um mês após a morte de Nisman, milhares de pessoas realizaram a chamada "Marcha do Silêncio" exigindo saber a verdade sobre o que aconteceu com o promotor.

Segundo a Polícia Federal, 50 mil pessoas compareceram ao ato. Já a Polícia Metropolitana, ligada à Prefeitura de Buenos Aires ─ governada por um opositor do governo ─, informou que 400 mil manifestantes participaram da manifestação.

Também há divergências importantes sobre os detalhes do caso. A investigação apontada pela imprensa como oficial acredita na hipótese de suicídio, mas um trabalho paralelo de investigadores em conjunto com a ex-mulher de Nisman, a juíza Sandra Arroyo Salgado, afirma que ele teria sido assassinado de joelhos.

O assunto continua sendo tema em rodas de conversa de Buenos Aires. "A presidente chegou a sugerir num discurso que Nisman e Lagomarsino poderiam ter um caso, quando ela falou na relação íntima dos dois. Coitado do promotor", disse um assessor de um dos principais grupos empresariais da Argentina, sob condição de anonimato.

Nesta quarta-feira, em uma entrevista a jornalistas estrangeiros, o sindicalista Gerónimo Venegas, da oposição, criticou os comentários do governo sobre Nisman. "Morto não fala e isso é covardia. Sem-vergonha é o Aníbal Fernández. E fica claro que o governo quer desgastar a imagem do promotor. Por quê? Não sei, mas é estranho", afirmou.

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