As famílias desabrigadas por ataques de Israel no Líbano: 'qual é a culpa das nossas crianças?'

BBC visita escola em Beirute onde mais de 2 mil pessoas estão alojadas após fugirem de locais sob bombardeio israelense.

29 set 2024 - 21h47
Uma jovem mulher está sentada com as mãos no colo, parecendo pensativa.
Uma jovem mulher está sentada com as mãos no colo, parecendo pensativa.
Foto: BBC News Brasil

Aqui no Líbano há medo e ansiedade sobre o que está por vir depois do enorme ataque aéreo israelense de sexta-feira (27/9) que matou o líder do Hezbollah e outros membros proeminentes do grupo militante.

Passamos os últimos dias falando com as muitas famílias desalojadas nas escolas que acomodam pessoas que fugiram de suas casas.

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O número de pessoas dormindo no chão em um pátio construído de forma simples que visitamos aumentou para 2 mil, de acordo com o gerente da escola.

Uma família em particular, que cuida de dois filhos com deficiência, falou conosco sobre sua luta para acalmar as crianças depois do que elas passaram.

A avó Um embala e acalma seu neto, que ela descreveu como aterrorizado pelos ataques aéreos.
Foto: BBC News Brasil

'Eu simplesmente peguei meus netos e corri'

A avó Um Ahmad diz que um prédio ao lado de sua casa foi gravemente atingido pelo ataque aéreo de Israel e ela e sua família sobreviveram "magicamente".

"Não sei como fugimos. Eu apenas peguei meus netos e corri. Uma parte da nossa casa estava em chamas."

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Eles pularam no carro e seu marido conseguiu dirigir enquanto mais prédios estavam sendo bombardeados em sua rua, ela diz.

Eles olharam para trás e viram que sua casa também estava nivelada ao chão. "Pelo menos nos certificamos de que não teríamos uma casa para onde voltar", diz Um Ahmed enquanto tenta não cair em lágrimas.

"Eu não quero chorar. Não há mais nada para chorar. Perdemos tudo, mas graças a Deus sobrevivemos."

Os dois netos de Um Ahmed têm deficiências e problemas de saúde mental.

Ela parece frustrada e com raiva: "Estou triste pelas crianças de Gaza, mas qual é a culpa das nossas crianças?"

Enquanto conversamos, ouvimos um grande estrondo quando as equipes de emergência estão descarregando alguns suprimentos do lado de fora no corredor.

Seu neto mais novo começa a chorar.

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Colchões são descarregados de um caminhão no pátio da escola
Foto: BBC News Brasil

"Veja como a criança está assustada. A cada som alto, cada porta batendo, ela começa a chorar e gritar."

Ela diz que seus netos não conseguem mais dormir à noite, então ela e seu marido também não conseguem. "Não só meus netos, todas as crianças aqui estão reagindo a qualquer som alto. Elas acham que é um ataque aéreo."

Elas fugiram de uma pequena vila perto de Tiro, no sul do Líbano. Seu refúgio é uma sala de aula na escola que agora se transformou em um abrigo para centenas de pessoas do sul do Líbano que fugiram para Beirute.

A roupa está espalhada pela sala, pendurada no quadro, na paredes e nas janelas.

Alguns colchões estão dispostos no chão. Cadeiras de sala de aula se tornaram móveis para a família de Um Ahmad. Há algumas panelas e frigideiras na mesa do professor.

Enquanto estou sentada com Um, seu marido Barakat se junta a nós. Ele culpa os políticos por esta guerra sem mencionar nada sobre o Hezbollah.

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A família de Um Ahmad dorme em colchões no chão enquanto penduram roupas pela sala de aula
Foto: BBC News Brasil

"Escute, eu sei que precisávamos apoiar o povo de Gaza, mas essa não era a nossa guerra. Claro que queremos proteger nossa terra, mas por nós, pelos libaneses, devemos lutar por nós mesmos."

Como muitas outras famílias aqui, esta não é a primeira vez que eles foram deslocados. Em 2006 e 1982, eles também perderam suas casas. Esta é a terceira vez.

Barakat diz que ele e sua família estão exaustos e não querem guerra. "Não queremos que crianças israelenses morram, nem que nossos próprios filhos morram. Devemos viver em paz."

Crianças e adultos sentam-se na sala de aula enquanto um membro idoso da família dorme em um colchão deitado no chão
Foto: BBC News Brasil

Pergunto se ele acha que haverá paz. "Acho que não. Netanyahu não quer paz. Agora está muito claro e essa guerra vai ser muito mais difícil do que 2006 [quando Israel e o Hezbollah entraram em guerra], com certeza."

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"Assim como choramos pelas crianças em Gaza, choramos por nossos próprios filhos também. Assim como os israelenses choram e têm medo por seus filhos, nós também choramos", diz Um.

Mensagens do exército israelense

Kamal Mouhsen e sua família sentam-se no pátio da escola que agora é sua casa.
Foto: BBC News Brasil

Conheço outra família.

"Tivemos apenas um aviso em cima da hora. Recebemos uma mensagem enviada pelo exército israelense para nossos telefones, pedindo para sairmos de casa", me conta Kamal Mouhsen, de 65 anos.

Ele foi uma das muitas pessoas que receberam essa mensagem por volta do meio-dia de sábado. Ele diz que "30 a 40 minutos" depois houve uma série de ataques aéreos em seu bairro.

"Não conseguimos pegar nada. Eu apenas peguei a chave do meu carro e fui embora com minha família."

Ele está vestindo uma camiseta e shorts. "Tudo o que temos agora é o que você vê que estamos vestindo."

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Ele está sentado com sua filha, um neto e dois de seus vizinhos no pátio da escola em que se refugiaram.

"Não há espaço disponível aqui. Está cheio de pessoas que fugiram do sul."

Eles tiveram que dormir ao ar livre na primeira noite. Mas hoje eles descobriram que seus parentes que fugiram do sul também estão aqui, então eles conseguiram se espremer em um quarto com eles.

"Estamos agora em 16 pessoas vivendo em um quarto", diz Nada, filha de Kamal.

"Na guerra de 2006, também viemos para cá."

Nada acredita que esta guerra será mais difícil. "Eles [israelenses] mataram o líder do Hezbollah. Isso por si só mostra que desta vez é diferente."

Medo de drones

Pessoas olham para o céu após ouvir o som de um drone israelense
Foto: BBC News Brasil

Enquanto conversamos, ouvimos o zumbido forte de um drone israelense. Podemos vê-lo voando baixo, circulando repetidamente.

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E então, alguns minutos depois, ouvimos estrondos ao fundo.

Israel acaba de realizar ataques aéreos em Dahieh - não muito longe da escola.

Nada diz que a família está tentando se preparar mentalmente e preparar seus filhos para aceitar que pode não haver nenhum lar para onde retornar.

Somos então informados de que os banheiros da escola ficaram sem água pela manhã e a equipe conserta o que pode.

Chegam refeições para as famílias deslocadas
Foto: BBC News Brasil

A ajuda começa a chegar

Um caminhão para e os trabalhadores começam a descarregar colchões da parte de trás. Pelo menos algumas pessoas não dormirão em concreto duro esta noite.

Mas o gerente do complexo me diz que não tem ideia de quanto tempo a escola pode ajudar e acomodar tantas pessoas.

Muitos voluntários estão vindo para cá - trazendo itens essenciais para aqueles que ficaram desabrigados.

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Famílias também estão chegando de outras partes do Líbano ou apenas de outras áreas de Beirute.

Eles estão trazendo algumas roupas e comida.

Mas o gerente me diz que não é o suficiente para todas as pessoas aqui - especialmente porque mais continuam chegando, não apenas de Beirute, mas de outras partes do Líbano que estão sendo alvos de Israel.

Fuga pela Síria

Para outros, deixar o país atravessando a Síria devastada pela guerra pareceu uma opção melhor do que esperar sobreviver aos ataques aéreos israelenses.

Sara Tohmaz, uma jornalista libanesa de 34 anos, fugiu de sua casa nos subúrbios ao sul de Beirute com sua mãe e dois irmãos na sexta-feira retrasada.

Ela disse à BBC News Arabic que se sente aliviada por eles terem tomado a decisão de deixar o país antes que Israel assassinasse o líder do Hezbollah.

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A família levou quase dez horas para chegar à Jordânia pela Síria de carro.

"Acho que temos sorte de ter um lugar para ficar na Jordânia, onde os parentes da minha mãe estão."

"Não sabemos o que vai acontecer a seguir, e não sabemos quando voltaremos."

"Sei de outros parentes que agora não conseguem sair, e alguns levaram cerca de 24 horas para conseguir fugir do Líbano pela Síria".

Reportagem adicional por Ethar Shalaby, BBC News Arabic

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