As 'joias da coroa' que britânicos saquearam da África e agora devolvem como empréstimo

Tesouros levados há 150 anos de Gana retornarão ao país, num empréstimo que pode servir de modelo para retornar ao país de origem, ainda que temporariamente, peças cuja posse é alvo de disputa.

26 jan 2024 - 06h53
Um chapéu cerimonial usado por cortesãos em coroações está entre os itens que serão enviados como empréstimo a Gana
Um chapéu cerimonial usado por cortesãos em coroações está entre os itens que serão enviados como empréstimo a Gana
Foto: British Museum / BBC News Brasil

O Reino Unido vai enviar a Gana algumas das "joias da coroa" do país, 150 anos após saqueá-las da corte do rei Asante.

Um cachimbo da paz de ouro está entre os 32 itens que retornarão a Gana sob acordos de empréstimo de longo prazo, revela a BBC.

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Serão 17 peças do Victoria & Albert Museum (V&A) e outras 15 do Museu Britânico.

O negociador-chefe de Gana disse esperar "um novo senso de cooperação cultural" após gerações de hostilidade.

Alguns museus nacionais no Reino Unido, como o V&A e o Museu Britânico, são proibidos por lei de devolver permanentemente itens de suas coleções que sejam alvo de contestação, e acordos de empréstimo como esse são vistos como uma forma de permitir que os objetos retornem a seus países de origem.

Alguns dos países que reivindicam artefatos disputados temem, porém, que empréstimos possam ser usados para sugerir reconhecimento de propriedade do Reino Unido.

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Tristram Hunt, diretor do V&A, disse à BBC que os itens de ouro das joias da corte são o equivalente às britânicas "joias da Coroa".

Entre os itens que estão sendo emprestados, a maioria levada durante as guerras do século 19 entre britânicos e os Asante, estão uma espada de Estado e emblemas de ouro usados por funcionários encarregados de limpar a alma do rei.

O V&A vai enviar 17 itens, entre eles um anel de ouro Asante, um distintivo de ouro usado pelos “lavadores de alma” do rei e um cachimbo cerimonial
Foto: V&A / BBC News Brasil

Hunt diz que quando os museus detêm "objetos com origens em guerra e saques em campanhas militares, temos responsabilidade com os países de origem de pensar em como podemos compartilhá-los hoje de forma mais justa".

"Não me parece que todos os nossos museus cairão se construirmos esse tipo de parceria e intercâmbio."

Hunt enfatiza, no entanto, que a nova parceria cultural "não é restituição pela porta dos fundos", o que significa que não é uma maneira de devolver a propriedade permanente a Gana.

Os contratos de empréstimo de três anos, com opção de prorrogar por mais três, não são firmados com o governo de Gana, mas sim com Otumfo Osei Tutu II, o atual rei Asante conhecido como Asantehene, que participou da Coroação do Rei Charles em 2023.

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Asantehene tem um influente papel cerimonial, embora seu reino agora seja parte da democracia moderna de Gana.

Os itens serão expostos no Museu do Palácio Manhyia em Kumasi, capital da região de Asante, para celebrar o jubileu de prata do Asantehene.

Os artefatos de ouro Asante são o símbolo maior do governo real Asante e acredita-se que sejam dotados dos espíritos dos antigos reis Asante.

Tristan Hunt diz que os museus britânicos não 'cairão' ao retornarem, sob empréstimo, itens cuja posse é contestada
Foto: BBC News Brasil

Eles têm uma importância para Gana comparável aos Bronzes de Benin, as milhares de esculturas e placas saqueadas do palácio do Reino de Benin, no atual sul da Nigéria, pela Grã-Bretanha. A Nigéria vem pedindo o retorno dos itens há décadas.

"Eles não são apenas objetos, eles também têm importância espiritual. Fazem parte da alma da nação. São pedaços de nós que estão retornando", disse à BBC Nana Oforiatta Ayim, conselheira especial do ministro da cultura de Gana.

Ela diz que o empréstimo foi "um bom ponto de partida" no aniversário do saque e "um sinal de algum tipo de cura e reconhecimento da violência que aconteceu".

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Os museus do Reino Unido possuem muitos outros itens levados de Gana, entre eles uma cabeça de troféu de ouro que está entre as peças mais famosas entre as joias Asante.

Os Asante construíram o que já foi um dos estados mais poderosos e impressionantes da África Ocidental, negociando, entre outras coisas, ouro, têxteis e pessoas escravizadas.

O reino era famoso pelo seu poder militar e riqueza. Mesmo hoje em dia, quando o Asantehene aperta mãos em cerimônias oficiais, ele pode estar com pulseiras de ouro tão pesadas que precisa da ajuda de um assessor cujo trabalho é apoiar seu braço.

Os europeus foram atraídos para o que mais tarde chamaram de Costa de Ouro pelas histórias da riqueza africana, e a Grã-Bretanha travou repetidas batalhas com os Asante no século 19.

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Em 1874, após um ataque Asante, as tropas britânicas lançaram uma "expedição punitiva", na língua colonial da época, saqueando Kumasi e tomando muitos dos tesouros do palácio.

Um modelo de harpa de ouro foi dado ao Museu Britânico no começo do século 19. Mas o colar de ouro e a espada estão entre os objetos adquiridos em saques
Foto: British Museum / BBC News Brasil

A maioria dos itens que o V&A vai retornar sob empréstimo foram comprados em um leilão em 18 de abril de 1874 nos Garrards, os joalheiros de Londres que mantêm as Jóias da Coroa do Reino Unido.

Entre os objetos estão três itens pesados de ouro fundido conhecidos como emblemas de lavadoras de alma (Akrafokonmu). Eles eram usados no pescoço por funcionários de alto escalão na corte que eram responsáveis por limpar a alma do rei.

Angus Patterson, curador sênior do V&A, disse que, no século 19, levar esses itens "não era apenas sobre adquirir riqueza, embora isso faça parte. Também se trata de remover os símbolos do governo ou os símbolos da autoridade. É um ato muito político".

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O Museu Britânico também está retornando sob empréstimo um total de 15 itens, alguns deles levados durante um conflito posterior, em 1895-96, como uma espada de estado conhecida como Mpomponsuo.

Há também um chapéu cerimonial, conhecido como Denkyemke, com ornamentos em ouro. Ele era usado por cortesãos seniores em coroações e outros grandes eventos.

Há ainda um modelo de harpa de ouro fundido (Sankuo), que não foi levada como saque, para destacar a conexão de quase 200 anos com os Asantehenes.

O sankuo foi dado ao escritor e diplomata britânico Thomas Bowdich em 1817, que disse ser um presente do Asantehene ao museu para demonstrar a riqueza e o status da nação Asante.

'Corta a política'

Você pode emprestar objetos para um país que diz que você os roubou?

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É uma solução para as restrições legais do Reino Unido, mas que podem não ser aceitas por países que dizem que querem corrigir um erro histórico.

A questão das Esculturas do Partenon, ou Mármores Elgin, como são chamados no Reino Unido, é o exemplo mais conhecido.

Há muito tempo a Grécia exige o retorno das esculturas clássicas, em exibição permanente no Museu Britânico. O presidente dos curadores do museu, George Osborne, disse recentemente que estava procurando um "caminho prático, pragmático e racional adiante" e estava explorando uma parceria que, em essência, coloca a questão de quem realmente é o dono das esculturas de lado.

O acordo com o Asantehene é outra versão disso; um compromisso que funciona para o rei Asante e é possível na lei britânica.

Assim como a Nigéria dificilmente aceitaria um empréstimo dos Bronzes do Benin, teria sido difícil para o governo de Gana topar um acordo do tipo.

Mas Hunt diz que os acordos entre o V&A, o Museu Britânico e o Museu do Palácio Manhyia "cortam a política. Não resolve o problema, mas dá início à conversa".

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O rei Charles 3º e o Asantehene, Otumfuo Osei Tutu II, no Palácio de Buckingham em 2023
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Oforiatta Ayim, conselheira do ministro da cultura de Gana, disse que "claro" que as pessoas ficarão irritadas com a ideia de um empréstimo. E que esperam que itens sejam eventualmente devolvidos de forma permanente a Gana.

"Sabemos que os objetos foram roubados em circunstâncias violentas, sabemos que os itens pertencem ao povo Asante", disse ela.

O governo britânico tem uma postura de "reter e explicar" para instituições estatais, o que significa que objetos cuja posse é contestada são mantidos e o contexto é explicado.

Os partidos Conservador e Trabalhista da Inglaterra não sinalizaram qualquer interesse em mudar a legislação atual.

A Lei do Museu Britânico de 1963 e a Lei do Patrimônio Nacional de 1983 impedem que os curadores de museus em algumas instituições de alto nível "desadquiram" itens de suas coleções.

Hunt defende uma mudança na lei. Ele gostaria que houvesse "mais liberdade para os museus, mas depois uma espécie de suporte, um comitê junto ao qual teríamos que recorrer caso quiséssemos restituir itens".

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Alguns levantaram preocupações de que isso significaria que os museus britânicos perderiam alguns de seus itens mais valiosos no futuro. Ou, como a ex-secretária de cultura Michelle Donelan me disse em relação ao retorno das Esculturas do Partenon, que "abriria as portas para a questão de todo o conteúdo de nossos museus".

Mas Hunt diz que a propriedade de muito pouco da coleção de 2,8 milhões de itens do V&A é contestada.

Hunt diz que apenas uma fração da coleção do V&A, como os objetos acima, tem a posse contestada
Foto: BBC News Brasil

Outro medo existente é que os itens contestados que são emprestados nunca sejam devolvidos.

Algo rechaçado pelo principal negociador de Gana, Ivor Agyeman-Duah. "Você se atém aos acordos que você possui, não vai contra eles", disse ele.

Há outros belos itens de ouro Asante no Reino Unido. A Coleção Wallace inclui a cabeça de troféu, que está entre os tesouros mais famosos Asante. O item também foi levado pelas forças britânicas e comprado no leilão de 1874.

A Coleção Real também contém objetos, incluindo outra cabeça de troféu de ouro na forma de uma máscara. Esse tipo de item representava inimigos derrotados; os troféus eram anexados por um aro a espadas cerimoniais nas joias do estado.

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Estarão em em exibição em Gana no futuro? Agyeman-Duah está dando um passo de cada vez.

Como a Grã-Bretanha está cada vez mais confrontando o legado cultural de seu passado colonial, esse tipo de acordo pode ser uma maneira diplomática e prática de abordar o passado e criar melhores relacionamentos no futuro — se ambos os lados puderem aceitar os termos.

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