A indiana Bilkis Bano passou 15 anos com medo, mudando constantemente de endereço e buscando justiça para um crime atroz: ela foi vítima de um estupro coletivo e viu 14 membros de sua família serem assassinados, em um motim que alvejou muçulmanos no oeste da Índia.
Na última semana, ela respirou aliviada: o Tribunal Superior de Mumbai confirmou as sentenças de 11 homens que foram condenados pelo estupro e pelos assassinatos. A Justiça também condenou cinco policiais e dois médicos, por destruir provas dos crimes.
"Acho que recebi justiça. Estou feliz", ela contou à BBC. "O governo estadual e a polícia foram cúmplices no crime, porque os acusados tiveram total liberdade para estuprar e pilhar".
O ataque a Bilkis e sua família foi um dos mais terríveis crimes que ocorreram durante o motim de 2002 - que começou depois que um ônibus incendiado deixou 60 peregrinos hindus mortos, no Estado indiano de Gujarat.
Hindus enfurecidos culparam muçulmanos pelo incêndio, dando início a ataques e destruição de propriedades de vizinhos desse grupo religioso.
Por três dias, os manifestantes agiram sem interferência da polícia ou do governo estadual. Mais de mil pessoas foram mortas, a maioria delas muçulmanas.
O primeiro-ministro Narendra Modi, então ministro-chefe de Gujarat, foi criticado por não agir para prevenir a matança.
Ele nega qualquer infração à lei e não se desculpou pelo levante. Um júri da Corte Suprema também se recusou a processá-lo em 2013, justificando não haver provas suficientes.
Mas até hoje ele é alvo de críticas, e muitos o apontam como responsável pelas mortes ocorridas sob sua gestão.
Ao longo dos últimos anos, os tribunais condenaram dezenas de pessoas pelo envolvimento nos protestos. Em 2012, um ex-ministro e assistente de Modi foi sentenciado a 28 anos de prisão, mas muitos casos individuais ainda esperam por justiça.
'Fugimos com a roupa do corpo'
Quinze anos depois, Bilkis Bano ainda tenta evitar as lágrimas ao lembrar-se do horror daqueles dias.
Ela visitava seus pais, que viviam em um vilarejo chamado Randhikpur. Ela tinha 19 anos, já era mãe de uma menina de 3 anos e estava grávida do segundo filho.
"Eu estava na cozinha, fazendo o almoço, quando minha tia e seus filhos vieram correndo. Eles disseram que as casas estavam sendo incendiadas e que tínhamos que sair imediatamente", conta.
"Fugimos apenas com as roupas do corpo, não tivemos nem tempo de colocar sapatos".
Em questão de minutos, todas as casas de muçulmanos na vizinhança foram esvaziadas. As cerca de 50 famílias que viviam lá tinham fugido em busca de abrigo.
Bilkis estava junto a 16 pessoas, que incluíam sua filha de 3 anos, sua mãe, a prima grávida, seus irmãos mais novos, sobrinhas e sobrinhos, e dois homens adultos.
"Procuramos primeiro o chefe do conselho do vilarejo, um hindu, para pedir proteção. Mas fomos forçados a sair quando o motim ameaçou matá-lo também se ele abrigasse muçulmanos".
Pelos dias seguintes, o grupo peregrinou de vila em vila, buscando abrigo em mesquitas ou sobrevivendo da bondade de vizinhos hindus.
No entanto, na manhã de 3 de março de 2002, quando o grupo se dirigia para um vilarejo próximo, homens em dois jipes interromperam sua viagem. Seus agressores eram seus vizinhos no vilarejo - 12 homens que ela via diariamente desde criança.
"Eles nos atacaram com espadas e varas. Um deles tirou minha filha do meu colo e a jogou no chão, batendo a cabeça dela em uma pedra".
Bilkis Bano sofreu cortes em nas mãos e nas pernas.
Eles rasgaram suas roupas e vários deles a estupraram. Ela implorou, em vão, para que parassem e disse que estava grávida de cinco meses.
Sua prima, que havia dado à luz uma menina dois dias antes, foi estuprada e assassinada. A recém-nascida também foi morta.
Bilkis sobreviveu porque desmaiou e foi dada como morta pelos agressores. Dois meninos - de 7 e 4 anos - foram os demais sobreviventes do massacre.
Críticas à polícia
Quando recuperou a consciência, ela cobriu seu corpo com uma saia ensanguentada, subiu uma colina e se escondeu em uma caverna durante um dia inteiro.
"No dia seguinte, com sede, desci rumo a uma aldeia para buscar água. Os moradores inicialmente suspeitaram de mim e se aproximaram com varas, mas então me ajudaram e me deram roupas".
Ela avistou uma viatura policial que a encaminhou à delegacia, onde ela narrou o martírio.
"Sou analfabeta, então pedi a um policial para ler a denúncia que eles tinham escrito, mas eles se recusaram a fazer isso. Eles apenas marcaram a impressão do meu dedo polegar e escreveram o que quiseram. Eu conhecia todos os meus agressores e dei o nome de todos eles. Mas a polícia não escreveu seus nomes", explica.
No dia seguinte, ela foi encaminhada a um acampamento montado em Godhra para os desabrigados pelos protestos. Foi onde seu marido a encontrou, 15 dias depois, e onde viveram pelos meses seguintes. Ela deu à luz uma menina.
Desde então, Bilkis luta por justiça e diz ter sido perseguida e intimidada por autoridades e policiais. Ela e seu marido, Yakub Rasool, se mudaram mais de dez vezes, para locais dentro e fora de Gujarat, com seus cinco filhos.
"Ainda não podemos ir para casa porque temos medo. A polícia e o governo estadual têm ajudado nossos agressores. Quando estamos em Gujarat, ainda cobrimos nossos rostos, nunca damos nosso endereço", contou Rasool.
Mas o casal diz que a decisão judicial trouxe um sentimento de encerramento.
"Quero que eles (condenados) passem o resto da vida na prisão. Espero que um dia percebam a dimensão de seus crimes, como eles mataram crianças pequenas e estupraram mulheres. Não estou interessada em vingança. Só quero que entendam o que fizeram."