Ninguém podia imaginar que, com a derrocada do grupo terrorista Talibã e o desembarque de tropas da Otan, a violência e o abuso contra crianças, especialmente meninos, voltasse a se perpetuar no Afeganistão.
Enquanto as autoridades afegãs puderam resolver uma série de graves questões desde que restabeleceu o poder, em 2001, tradições arcaicas - para não dizer medievais - como o Bacha Bazi voltaram a ser realizadas e cultuadas. Bacha Bazi, em persa, significa pedofilia e representa uma inversão no sistema de gênero nessa nação asiática.
Enquanto a cultura afegã - especialmente a cultura rural - permanece estritamente misógina, devido, em grande parte, aos valores islâmicos, garotos se tornam objetos sexuais de poderosos homens afegãos.
Esses meninos que atuam como acompanhantes de empresários, advogados e comandantes, que lutaram ao lado da Otan contra o Talibã, quando não são comprados, são raptados e apresentados a um mundo onde têm sua honra e masculinidade despojados. Eles são obrigados a se vestir como mulheres, a usar maquiagem e a dançar para homens em festas.
A prática do Bacha Bazi é frequente no sul e no norte do Afeganistão e vinculada à etnia Tajiks no norte do país, mas se tornou comum em todo o território afegão nos últimos anos, até mesmo na capital Cabul. Não é incomum encontrar bachas fazendo suas performances em luxuosos casamentos da capital, ou CDs e DVDs sendo livremente vendidos em tendas montadas nas ruas, servindo um público que não pode pagar por um bacha. Os admiradores de tal prática também podem se satisfazer em cafés, onde bebem chá enquanto assistem às performances de meninos de até 10 anos.
A prática foi explorada por décadas no país, mas acredita-se que ela tenha atingido seu ápice na década de 1980, entre os senhores da guerra, que lutaram contra a invasão soviética e eram adeptos de atos pedófilos. Eles costumavam recrutar um ou mais meninos nas vilas por onde passavam para exercer as funções de servos domésticos e especialmente escravos sexuais. Ser dono de um bacha representava status e poder e esses valores persistem até hoje.
Não há estigma ou vergonha em possuir um garoto, pelo contrário, a prática é um símbolo de honra em uma sociedade onde o acesso à mulher é restrito, mas aos garotos é amplo.
Desde que o Talibã proibiu o Bacha Bachi - assim como o sexo antes do casamento - ao impor a lei da Sharia em todo o Afeganistão, o assunto de tornou o que é hoje: um tabu. Quem pratica o Bacha Bazi, o faz em segredo.
Contudo, com a derrota da milícia afegã, em 2001, os senhores da guerra voltaram e se firmar e implementaram a cultura do Bacha Bazi.
Os meninos que se tornam “bachas” se tornam propriedades de quem os compra ou sequestra. Aqueles que dispõem de grandes atributos físicos e são “particularmente bonitos” podem ser comprados por milhares de dólares.
Durante um ano de treinamento, eles aprendem a tocar instrumentos, cantar e, é claro, dançar. Descalços, vestidos com roupas longas, coloridas e brilhantes e enfeitados com anéis, pulseiras e sinos, eles se apresentam ao som de músicas dançantes diante de seu público.
Senhores da guerra, militares afegãos e a impunidade
Nem só de senhores de guerra é mantido o Bacha Bazi e os abusos sexuais cometidos contra meninos. Membros do governo, da polícia e até das forças armadas estão envolvidos nesses tipos de crime.
O Departamento de Estado norte-americano mencionou a prática do Bacha Bazi em seu relatório dos direitos humanos em 2010 e denunciou que militares afegãos que haviam recebido armamento e treinamento da coalizão dos Estados Unidos, abusavam sexualmente de garotos.
“Nós também recebemos relatos de abuso sexual perpetrados pela Polícia Nacional Afegã (ANP) e a polícia local afegã - uma série de relatórios resultam de meninos detidos na prisão por acusações relacionadas à segurança nacional. Eles relataram violência sexual ou ameaças de violência sexual após a prisão ou enquanto na detenção pela ANSF, particularmente pela ANP”, informou Suki Nagra, oficial sênior de Direitos Humanos para a Missão das Nações Unidas no Afeganistão, em entrevista ao Terra.
Outro motivo de preocupação são a acusações de abuso sexual por parte de milícias pró-governo - grupos armados usados pelo ANSF para combater grupos antigoverno. “Como as áreas onde esses grupos atuam, muitas vezes, não estão sob controle do governo, eles operam com impunidade. Nossa maior preocupação é, portanto, a impunidade, a falta de Estado de Direito e o aumento do uso de milícias armadas - especialmente quando as forças internacionais deixarem o Afeganistão, como parte da transição e entrega das responsabilidades de segurança às forças nacionais”, complementa Nagra.
O governo admitiu que a violência sexual sofrida contra crianças, por membros das forças nacionais de segurança afegãs, eram objeto de investigação criminal, e um programa educacional para barrar a prática do Bacha Bazi foi estabelecido em 2013 com a assistência da polícia nacional, segundo um Relatório do Conselho de Segurança da ONU, divulgado em 15 de maio de 2014.
Tabu
As pessoas se negam a falar sobre o Bacha Bazi, inexistem dados e relatórios oficiais sobre esta prática e o governo fecha os olhos para sua existência.
O fenômeno recebe pouca atenção global e, esporadicamente, é abordado pela mídia, embora seja atestado por jornalistas, observadores de organizações internacionais e pelos próprios afegãos. A prática está vinculada também a algumas questões especialmente delicadas no país: a reputação, o prestígio, a estigma e o medo de retaliação por parte das vítimas e dos denunciantes.
Em seu relatório anual sobre os direitos humanos, a embaixada dos Estados Unidos afirmou que o Ministério do Interior registrou em 2012 cerca de 100 casos de agressão sexual contra crianças na província de Cabul, enquanto o número total de abusos cometidos em outras províncias chegou a 470. Os relatórios indicam que o abuso sexual contra crianças teve um aumento de 28% em relação ao ano anterior.
O documentário “The Dancing Boys of Afghanistan” ("Os meninos dançarinos do Afeganistão", em tradução literal) do jornalista Najibullah Quraishi e vencedor do prêmio de Documentário da Anistia Internacional UK Media Awards, mostra que embora a agressão sexual seja ilegal - sob a lei daSsharia e do código civil afegão -, as leis são raramente aplicadas contra os agressores porque os infratores são homens de poder, e policiais, não raramente, são cúmplices em crimes relacionados.
“O governo afegão deve fazer mais para proteger os meninos que são explorados através da prática do Bacha Bazi”, afirma Heather Barr, pesquisadora sênior do Observatórios dos Direitos Humanos.
“O Estado de direito é muito fraco no Afeganistão, e a Polícia Nacional muitas vezes não consegue proteger as vítimas. Para ser franca, a polícia também se afastou do grande papel que desempenha na luta contra a insurgência, e contestar o Bacha Bazi pode ser especialmente difícil para policiais, promotores e tribunais porque os homens que o praticam são muito poderosos, têm as suas próprias milícias e seus protetores dentro do governo”, completa.
Um homem que tem relações sexuais com crianças é um criminoso, conforme prevê o código penal afegão, e qualquer pessoa que facilita o abuso sexual de um menino deveria ser processada sob as leis afegãs, mas falta fiscalização, e essa falha está ligada uma questão bem maior, envolvendo os senhores da guerra.
“Após a queda do regime talibã em 2001, o novo governo afegão, a pedido dos EUA e outras potências militares estrangeiras presentes no Afeganistão, fez uma decisão consciente de se aliar com os senhores da guerra, no Afeganistão, sem levar em conta se eles tinham histórias de graves abusos dos direitos humanos. Mas, ao invés de essa medida promover a estabilidade, ela levou à ilegalidade, à vitimização das comunidades, e à sensação de total impunidade com relação aos abusos. O Bacha Bazi é apenas um dos muitos abusos praticados impunemente por homens fortes locais, cuja ascensão tem sido facilitada pela política governamental internacional e afegã” conta Barr.
Os motivos: pobreza e trabalho infantil
De acordo com um relatório da Comissão Independente dos Direitos Humanos Afegã, em que foram ouvidas 4.166 crianças em 27 províncias do país, das quais 2.377 eram meninos, a necessidade de se ter de começar a trabalhar cedo é um dos problemas mais sofridos pelas crianças. A pobreza extrema e o aumento do desemprego, assim como o alto número de crianças que não têm a figura de um pai ou familiar presente e apoiador, são alguns dos fatores que levam muitas crianças a trabalhar prematuramente. O relatório, publicado em 14 de dezembro de 2013, mostra que 51,8% das crianças trabalham para ajudar as famílias e que 45% são forçadas a trabalhar.
A pobreza extrema e a necessidade urgente de ajudar os parentes levam muitos meninos pobres a se tornar bachas. Iman, um jovem de 15 anos e bacha há quatro, entrevistado pelo jornalista Najibullah Quraishi no documentário “The Dancing boys of Afghanistan”, por exemplo, admite que se tornou “acompanhante” para dar suporte financeiro à família carente. Além do dinheiro, os meninos costumam ganhar roupas, presentes e ter todas as despesas pagas.
Mas a pobreza não é o único fator que favorece o Bacha Bazi. O patriarcalismo afegão também exerce um grande papel nesse sentido. “As famílias afegãs são muito patriarcais, o que significa que os membros da família costumam fazer o que lhes é dito pelo pai. As crianças não têm a oportunidade de se opor ou recusar qualquer ordem, incluindo a decisão de ser enviado para ser um bacha” explica Heather Barr.
O medo e a intimidação são, muitas vezes, fatores poderosos na escolha feita pelos líderes das famílias: “Os pais muitas vezes não têm escolha em face de um senhor da guerra que controla sua área e de um Estado que não pode ou não irá protegê-los”, ressalta.
Dolorosa herança
Uma grande porcentagem da população masculina afegã convive com profundas cicatrizes, fruto dos abusos cometidos durante a infância. Aos 18 anos, os bachas se libertam de seus donos e dos abusos, podendo se casar e reivindicar seu “status de homem”, mas dificilmente superam o estigma de ter sido escravos sexuais.
Outros se tornam, ao longo de suas vidas como bacha, aprendizes de seus companheiros e, quando se libertam, acabam recrutando seus próprios garotos e, assim, perpetuando o ciclo do abuso.
Por outro lado, àqueles que não têm a sorte de se casar ou a oportunidade de virar recrutador de garotos, resta apenas uma opção: a prostituição. E para suportar vida semelhante, muitos recorrem ao álcool e às drogas. Quem é violado ou abusado no Afeganistão não tem espaço na sociedade.
Uma criança que é sexualmente abusada e não conta com a “proteção” de um dono pode acabar na cadeia ou em abrigos. Mais de 3% das crianças ouvidas pela Comissão Independente dos Direitos Humanos do Afeganistão estão sendo mantidos em orfanatos; 63% deste grupo recebe atendimento 24 horas; 29% têm autorização apenas para dormir nos orfanatos; o resto é mantido nos abrigos apenas durante o dia.
A superlotação, a curta permanência e a precariedade das instalações médicas são alguns dos problemas prevalentes nestas orfanatos. “Existem alguns abrigos para crianças que podem ser um recurso para alguns meninos, mas eles são escassos e vulneráveis – podem fechar a qualquer momento, diante da diminuição do financiamento realizado por doadores. E ainda que não fechem, eles não fornecem uma solução a longo prazo para os meninos”, explica a pesquisadora do Observatório dos Direitos Humanos.
“Mulheres são para dar filhos, meninos são para dar prazer”
Por mais incrível que possa parecer, a prática do Bacha Bazi também tem um impacto negativo nos direitos das mulheres afegãs. A teoria de que “mulheres são para dar filhos crianças e meninos para darprazer” é aceita e existe de forma latente entre a população homossexual afegã.
Outros, por causa da tradição, que é passada de geração em geração, e do ciclo vicioso criado pelo Bacha Bazi, perdem o interesse e a atração por mulheres. Embora os costumes sociais e religiosos afegãos prevejam que o homem deve se casar com uma mulher, os matrimônios costumam, em sua maioria, ser carentes de amor e afeto, e tratados como um negócio.
Além disso, a continuação da prática do Bacha Bazi perpetua a visão tradicional de que as mulheres são cidadãs de segunda classe, ou pessoas inferiores, utensílios domésticos destinados para a criação dos filhos e do trabalho servil.
“Mulheres e meninas levam uma vida muito restrita no Afeganistão. Elas vestem roupas que escondem quase todo o corpo, geralmente são proibidas de viajar sem um acompanhante masculino, frequentam escolas voltadas apenas para o público feminino, e são as vezes, até mesmo proibidas de sair de casa. O sexo antes do casamento entre homens e mulheres, ou meninas e meninos, é completamente inaceitável socialmente, e o namoro é praticamente inexistente. Mulheres e meninas podem enfrentar castigos pesados por terem qualquer contato com os homens (mesmo que por telefone ou internet), que não sejam membros da sua família. Neste ambiente, o sexo com outro homem ou um menino é muito mais acessível para os homens do que sexo com uma mulher ou menina”, esclarece Heather.
A saída
Autoridades afegãs foram criticadas em relatórios das Nações Unidas pela sua incapacidade de proteger os direitos das crianças. Embora os líderes afegãos tenham formalmente proibido essas práticas em resposta às críticas da ONU, eles têm se mostrado igualmente incapazes de fazer com que as leis sejam cumpridas e respeitadas.
A esperança é que, futuramente, o Afeganistão consiga estabelecer um equilíbrio entre os ideais do Talibã, que condena veementemente a pedofilia, e as crenças da atual administração, que vem tentando por fim ao tratamento desumano imposto as mulheres.
De acordo com Barr, a Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão (AIHRC) anunciou ainda em 2013 que estava realizando um projeto especial de investigação e combate do Bacha Bazi, o que foi visto como um passo corajoso e importante para incentivar uma discussão aberta sobre o tema e um esforço real por parte do governo afegão para deter a prática. Contudo, além de não divulgar quaisquer conclusões sobre este trabalho até o momento, a Comissão passou a sofrer ataques do governo do presidente afegão, Hamid Karzai.
“Um novo presidente vai tomar posse no Afeganistão nos próximos meses, e esperamos muito que ele seja solidário com o trabalho do AIHRC, e que tome medidas sérias para melhorar a resposta policial às mulheres e crianças vítimas de abuso e exploração, incluindo Bacha Bazi. Contudo, dada a fragilidade da situação no Afeganistão hoje, é difícil ser otimista”.