Auschwitz, 70 anos depois: “só Deus sabe como sobrevivi”

Aleksander Henryk Laks, sobrevivente do Holocausto, dá o seu impressionante relato de como sobreviveu ao maior campo de concentração nazista, na exata data em que, há 70 anos, as tropas soviéticas chegavam para acabar com o extermínio em massa dos judeus já na reta final da Segunda Guerra Mundial

27 jan 2015 - 06h43
(atualizado às 17h10)

A fala é mansa, e os detalhes, estarrecedores. As mãos tremem e as palavras saem sempre de forma embargada. Há 70 anos, as tropas soviéticas avançaram para pôr fim a maior máquina da barbárie planejada por Adolf Hitler: o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia.

Aleksander Henryk Laks, então com 17 anos, não estava mais lá. Mas é um dos poucos sobreviventes. Passou ali quase um ano. Foi testemunha do maior palco do Holocausto – só ali, calcula-se que tenham morrido mais de um milhão de judeus, lembrando que seis milhões de vidas foram aniquiladas pelos nazistas.

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Aleksander, 87 anos: o relato incrível de quem sobreviveu a três campos de concentração, ao gueto de Lodz, além da Marcha da Morte
Aleksander, 87 anos: o relato incrível de quem sobreviveu a três campos de concentração, ao gueto de Lodz, além da Marcha da Morte
Foto: André Naddeo / Terra

Aos 87 anos, vivendo no Rio de Janeiro, onde reconstruiu a vida, este polonês de Lodz diz sem meias palavras: “só Deus sabe como sobrevivi”. Neste relato emocionante feito de forma exclusiva ao Terra, ele conta como perdeu os pais (Jacob e Syma Laks) e, como filho único, conviveu com a solidão diante de tantos traumas e absurdos cometidos pelo Terceiro Reich.

Sobrevivente, sim, e heroico ainda mais diante do fato de que Aleksander resistiu não só à Auschwitz: antes, ao gueto de Lodz, o segundo pior do regime nazista. Posteriormente, a outros dois campos de concentração e ainda à Marcha da Morte – quando milhares de judeus marcharam sem proteção, machucados e completamente desnutridos diante do rigoroso inverno europeu. Quando salvo, pesava 28 kgs. Aos 17 anos. Antes de morrer, o pai fez um último pedido: “Me prometa que nunca vai deixar esquecer o que fizeram conosco”. É o que ele faz hoje, dando palestras sobre sua história de vida. Confira abaixo, em primeira pessoa. 

Vida normal antes da invasão

Até os meus 11 anos tudo ocorria normalmente. Só sabíamos que na Alemanha os judeus eram perseguidos. Eu amava a minha pátria. Meu pai trabalhava como gerente de um frigorífico, e eu estudava na escola. Minha mãe era do lar. Eu fui filho único, e muito mimado. Isso durou até 1939, quando as tropas nazistas invadiram a Polônia. E meu mundo desabou.

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Aleksander no colo da mãe, Syma, e ao lado do pai, Jacob Laks: "filho único, e muito mimado"
Foto: Arquivo pessoal / reprodução

Nós estávamos orgulhosos do nosso exército que iria enfrentar os alemães, mas a Polônia não estava preparada, ninguém estava preparado. Em poucos dias os alemães entraram e vieram com muita fúria e racismo. Fomos regidos pelas leis nazistas.Fomos presos logo depois, e eles fizeram um gueto, num lugar apertado que comportava 25 mil pessoas, mas foram colocadas 165 mil pessoas. Meu mundo desabou. Eu estive quatro anos nesse gueto.

Lembro que num dia (antes de ir para o gueto) eles deixaram todas as crianças judias irem para a escola. Quando cheguei em casa, meu pai disse que no dia seguinte eu não iria à escola. Toda a escola foi levada para Dachau, o primeiro campo de extermínio. Se eu tivesse ido aquele dia, já estaria morto. Foi o primeiro campo de extermínio em massa da história da humanidade. Foram todos levados. E eu fiquei. Foi a primeira vez que me salvei. Mas seriam tantas.

Vida no gueto de Lodz

Depois disso eu fui trabalhar como metalúrgico no gueto. Lembro que vi uma criança de cinco meses morrer asfixiada porque não parava chorar. Ela chorava muito. Puseram colchões e edredons para abafar. Eu vi uma criança morrer porque chorava e porque era judia. Isso ocorreu no gueto onde a gente trabalhava. Mas seriam tantas mortes, acho que eu ainda não me dava conta.

Se morria de fome, de frio, de sujeiras e de doenças. A ração era de 200 calorias. Era um quilo de pão para cinco dias, depois foi para seis, mas era um pão preto, com casca tostada, e por dentro parecida uma lama – diziam que estava misturado com serragem. Uma sopa que nem casca de batata tinha – e uma água preta que diziam que era café. Com essa dieta uma pessoa só conseguia viver 12 meses, mas eu vivi cinco anos e meio com essa dieta. Como eu sobrevivi? Não sei. Eu sobrevivi para estar aqui e alertar para que isso nunca mais aconteça com ninguém. Como eu sobrevivi? Só Deus sabe.

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O dedo aponta a própria imagem: Aleksander foi o único sobrevivente da escola onde estudava
Foto: Arquivo pessoal / reprodução

Auschwitz, e o adeus

Em 1944, a frente russa chegou mais perto da cidade. E disseram que seriamos levados para a Alemanha. E lá as condições iriam ser melhores. Fomos levados em agosto de 1944 num trem de gado e, ao invés da Alemanha, chegamos em Auschvitz. Nesse momento, fomos separados homens e mulheres, e minha mãe foi levada para a câmara de gás e queimada no crematório. Eu estava junto ao meu pai ainda, e o que eu vi na chegada, a pessoa pode viver mil anos e não vai ver. E não fiquei cego. As crianças eram arrancadas do colo das mães, espancadas por todos os lados. O tempo não contava. Podia ser uma hora, 48 horas, o tempo não contava.

Um antigo prisioneiro dizia que tínhamos chegado no inferno. Meu pai falava muito bem alemão, e perguntava se estávamos em outro planeta. A resposta foi que ali só tinha uma saída: a chaminé. Era um grande crematório. Se queimavam pessoas 24 horas por dia.

Minha mãe foi levada entre as mulheres. Arrancaram um pedaço do meu coração. Eu tinha uma esperança de encontrá-la algum dia, não queria acreditar que minha mãe morreu tão estupidamente. A troco de nada.Eu sempre estava ameaçado de morte. Uma vez um capo (judeus que colaboraram com os nazistas e tinha um pouco mais de liberdade nos campos de concentração) me levou para acabar comigo, mas apareceu outro, do nada, e pediu para ele ajuda-lo. E ele me deixou. Mais uma vez, tive sorte.

A gente ficava ao relento, não tinha trabalho. Só esperando para resolver o que iam fazer com a gente. Não se podia movimentar. Só podia correr quando eles queriam. E muitas pancadas, matavam a torto e direito. Uma parte foi tatuada e mandada para trabalho escravo em fábricas de munição, e alguns para empreiteiras. E se passava mal. 

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Quem era magro e não agradava, era mandado de volta e exterminado. Estávamos ao lado de Birkenau, onde tudo o de pior que acontecia era lá. Se chamava de Auschwitz 2. A distância era de três quilômetros entre os dois. Lá ninguém sabia se iria viver um segundo depois.

A seta aponta a imagem do sobrevivente, o único que restou da família polonesa
Foto: Arquivo pessoal / reprodução
A Marcha da Morte e a promessa

Eu fui vendido para trabalho escravo junto com o meu pai a um campo chamado Godzlozen para fazer fortificações para o exército alemão. Em seguida, fomos levados para a Marcha de Morte. A marcha foi o pior capítulo durante o Holocausto. Só ali dois milhões de pessoas morreram sem comida, bebida, cada um com uma ou duas batatas dormindo ao relento. A maioria já estava congelada durante a madrugada.

Meu pai me disse: “se não formos fuzilados, talvez você vá sobreviver. Me prometa que nunca vai deixar esquecer o que fizeram conosco”. Depois ele me disse: “meu filho, eu vou sentar porque não consigo mais andar”. E quem sentava era fuzilado. Eu não queria viver sem meu pai. Quando ele começou a fraquejar, eu ia sentar também. Não podia cair. Andávamos num grupo de cinco pessoas. O homem que estava ao meu lado. Conseguiu encostar na gente, e meu pai foi aguentando, porque não queria que eu morresse. Aconteceu um milagre de chegarmos a uma estação de trem. Tínhamos conseguido sobreviver de certa forma. Mas dali fomos para outro campo.

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Flozemberg foi o pior campo. Era o campo de morte. Sem câmara de gás. Os capos matavam as pessoas a pancadas. As pessoas andavam como num manicômio. Os mortos eram espalhados no campo e o crematório não dava vazão, e tinha pilhas de madeira e gasolina, e os corpos eram queimados ao relento. Era um cheiro de carne queimado que eu nunca vou esquecer. 

Lá tinha muito disenteria, e meu pai pegou. Tinha um bloco, uma latrina, e eu vi pessoas correndo ali e estava lá meu pai, ensanguentado entre fezes e sujeiras. Lembro que ele chegou a falar meu nome. Mas não me reconheceu mais. Ele foi queimado numa pira. Ele tinha 45 anos. Uma pessoa boa, temente a Deus, respeitado antes da guerra. Inteligente e tinha tudo para viver. E foi morto aos 45 anos e morto só porque era judeu.

A solidão e a partida para os EUA

Eu não tinha tempo para pensar em nada. Eu estava sozinho. Veio uma ordem de que nenhum prisioneiro poderia cair vivo com os aliados. Eu fui levado para perto da Suíça para ser afogado. Fomos bombardeados. Muitos morreram. Mas eu não. Por quê? Só Deus sabe.

Eu fui libertado numa cidade chamada Immengen Betutlinen, na Alemanha mesmo. Eu estava morrendo num vagão. Alguém chegou perto de mim (soldado francês), não sei até hoje quem foi. E me trouxe um caneco com leite. Eu bebi e ao invés de morrer, comecei a me sentir melhor. Eu pesava 28 quilos e tinha 17 anos.

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Fui libertado pelos franceses, que não faziam questão de cuidar de nós, é bom que se diga. Eles davam não mais do que duas sopas de batata. Tínhamos que mendigar comida em volta da cidade, em fazendas, para poder sobreviver.

Depois de um tempo, começamos a ganhar músculos, peso, e saí de perto dos franceses e fui para a zona de ocupação americana, e lá tinha um campo de refugiados chamado Zeinsheim. Sempre sozinho. Fiquei dois anos ali. E de lá fui para os Estados Unidos. Lá eu me senti livre mesmo em Nova Iorque. Vivia no Bronx. Me senti livre depois de seis anos.

Quando nós saímos do gueto dizendo que nós iriamos para a Alemanha, antes meu pai disse que tinha uma irmã no Rio de Janeiro, no Brasil. E se formos separados, o lugar de encontro seria no Rio de Janeiro, na casa da minha tia. Escrevi uma carta dos Estados Unidos, e uma carta por um acaso para o comitê judaico. A casa dos meus tios. Eles já tinham abandonado a Polônia. Dos que ficaram no meu país, eu sou o único sobrevivente de uma família de 65 pessoas.

Enfim, a liberdade: no navio rumo aos EUA. "Em Nova Iorque me senti livre pela primeira vez em seis anos"
Foto: Arquivo pessoal / reprodução

A paixão pelo Brasil e a eterna dor

Eles me mandaram passagem, cheguei ao Rio de Janeiro e foi amor a primeira vista. Me apaixonei pelo Rio, pelo povo e não voltei mais. O ano era 1948.

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Voltei 60 anos depois. Quando eu saí de lá, jurei que não pisaria mais na Polônia e na Alemanha. Mas eu voltei. Visitei a cidade onde nasci, só deu para chorar. Visitei Auschwitz, tudo. Isso foi em 2004. Em 2005, eu fui à Marcha da Vida – um grupo de escolas já que nós fizemos a marcha da morte, agora a da vida. Vão pessoas para ver o que aconteceu. E depois vão a Israel para ver onde os judeus podem viver livres. Agora, eu vou todo ano para a Alemanha. Em Flozenburg, onde meu pai foi assassinado num dia de encontro de ex-prisioneiros.

Não dá para pensar na minha vida de outra maneira. Sou consciente do que vivi. Isso não sai da minha mente nenhum segundo. Não fiz terapia nada. Eu sou um dos poucos que conseguiram refazer sua vida e reconstruir. Eu casei, tenho dois filhos, um é doutor e professor em psiquiatria, o outro trabalha em informática. Tenho três netos. Eu sou presidente da Associação de Sobreviventes do Holocausto do Rio de Janeiro.

Eu agora faço palestras. Minha vida se resume e não com o intuito de fazer de coitado de mim. O intuito é alertar que isso nunca mais pode ser repetido. Onde eu posso falar, eu falo. Escrevi dois livros (“Sobrevivente: As memórias de um brasileiro que escapou de Auschwitz” e “Mengele me condenou a viver”). Não pode acontecer mais com ninguém. Dedico minha vida a isso.

Fonte: Terra
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