A vitória do democrata Joe Biden deve aumentar "ainda mais" o isolamento do Brasil no cenário internacional, com pouco ou nenhum espaço de manobra para uma "relação harmoniosa" com os Estados Unidos, diz à BBC News Brasil Roberto Abdenur, ex-embaixador brasileiro em Washington.
"O Brasil está mais isolado do que nunca. E está claro a essa altura que a diplomacia brasileira não será capaz de promover as mudanças de postura que agora se tornam essenciais nessa atmosfera política internacional com a eleição de Biden, porque nossa política externa, baseada em fantasias, visões conspiratórias, maniqueísmos, rejeição ao multilateralismo, está firmemente enraizada na ideologia de extrema direta do Bolsonarismo", diz.
"Não vejo como o Brasil possa se mover de maneira a tornar mais palatáveis, mais facilmente administráveis as várias dificuldades que surgem com o novo governo americano", acrescenta.
Abdenur ressalva contudo que, apesar de acreditar que as relações serão difíceis, os Estados Unidos não podem "dar as costas ao Brasil".
"Não acho que Biden vai atacar Bolsonaro de imediato. O Brasil tem seu peso. Apesar de tudo, continua sendo uma das maiores economias do mundo, o segundo país mais populoso das Américas e uma democracia", afirma.
Segundo ele, os EUA terão interesse em buscar algum apoio do Brasil no contexto da confrontação estratégia com a China, que continuará com Biden, "embora de maneira mais hábil, mais equilibrada, mais serena".
"O Brasil não é um país ao qual os EUA podem dar as costas, até porque Biden atribui muita importância à questão ambiental", explica ele, lembrando que uma das prioridades de Biden é mitigar as mudanças climáticas, segundo seu plano de governo e, nesse sentido, a Amazônia "tem papel fundamental".
Ainda assim, Abdenur — que foi embaixador do Brasil em Washington de 2004 a 2007, durante o mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas se aposentou após divergências com o governo petista — diz ser cético quanto à possibilidade de uma relação "harmoniosa, tranquila e produtiva com os Estados Unidos".
"Um requisito essencial de qualquer política externa é não ser movida por considerações e preferências ideológicas e menos ainda por idiossincrasias pessoais de seus líderes como é o caso da relação de admiração, submissão e subserviência que Bolsonaro estabeleceu com Trump", diz.
'Incapaz de alterações'
Atualmente conselheiro do CEBRI (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), Abdenur diz acreditar que, com a vitória de Biden, a extrema direita tende a "perder gás".
Em sua opinião, como a base da política externa brasileira reflete muitos desses valores, por meio, por exemplo, de ataques à ONU e ao multilateralismo, o Brasil tende a ficar ainda mais isolado.
"Olhando para o Itamaraty, para a Presidência da República, não considero que este governo seja capaz de fazer as alterações em curso necessárias para administrar bem suas relações com os EUA, com a Europa, com nossos vizinhos e com a China", acrescenta.
'Submisso e subserviente'
Segundo Abdenur, "o primeiro grande equívoco de Jair Bolsonaro e de seu chanceler, Ernesto Araújo" foi fazer um "alinhamento praticamente incondicional e automático com os EUA de Trump" sem "grandes ganhos".
"Foi um erro estratégico gravíssimo. O problema é que isso foi feito na base de pendurar a relação Brasil-EUA na pessoa de Trump. O que deveria ser manejado como uma relação objetiva de Estado a Estado passou a ser uma espécie de aliança pessoal de cunho altamente ideológico entre Bolsonaro e Trump", diz.
"Se fizermos um balanço do que o Brasil ganhou e o que os EUA ganharam nesses dois anos da aliança pessoal Bolsonaro-Trump, veremos que não houve grandes ganhos sensacionais. Houve algumas coisas interessantes, como o apoio dos EUA à entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a consideração do Brasil como um parceiro extra-territorial da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e recentemente a assinatura de pequenos arranjos para facilitação do comércio, mas sem perspectivas de um acordo de livre comércio."
"O Brasil cedeu imensamente", completa.
Abdenur lembra que já houve outros momentos na história em que o Brasil se alinhou aos Estados Unidos, mas "preservando espaços de atuação própria e às vezes em confronto".
"A aliança de Vargas durante a 2ª Guerra Mundial propiciou um grande ganho para o Brasil: a construção financiada pelos EUA e com tecnologia americana da primeira usina siderúrgica brasileira em Volta Redonda, o que permitiu avanços consideráveis, praticamente o marco inicial de um acelerado processo de industrialização brasileiro", recorda.
"Mais adiante, na primeira década da ditadura militar, o Brasil se alinhou aos EUA, no contexto Guerra Fria na luta contra o comunismo. Naquela época, o Itamaraty convenceu os militares da validade, da continuidade da postura até então muito ativa de liderança que o Brasil sustentava na época no chamado diálogo norte-sul entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos em busca de reforma, de uma nova ordem internacional, mais equitativa, mais justa, mais capaz de dar prosperidade", acrescenta.
"Foram, assim, alinhamentos que deram resultados positivos, mas alinhamentos que não tolheram a capacidade do Brasil de defender seus próprios interesses na área do desarmamento, do comércio, das finanças internacionais e da tecnologia", observa.
Mas, na visão de Abdenur, o alinhamento promovido por Bolsonaro é de "subordinação e subserviência".
"Subordinação porque coloca o Brasil numa posição de inferioridade. Bolsonaro se proclamou desde o primeiro momento como fã de Trump, adotando posturas submissas em relação aos EUA. Subserviência porque representa um linha de ação que atende aos interesses dos EUA e não necessariamente aos do Brasil", assinala.
Ele lembra que o Brasil "abriu mão do que possivelmente seria uma candidatura vitoriosa brasileira à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) pra favorecer um candidato americano promovido pelo Trump".
"Foi uma violação de uma tradição (não escrita) de 60 anos da existência do Banco Interamericano de Desenvolvimento de que ele fosse liderado por um latino-americano".
Assessor de Trump para a América Latina, Mauricio Claver-Carone se tornou, em setembro, o primeiro líder do organismo de origem norte-americana. Ele comandará a instituição por cinco anos.
E, durante a corrida presidencial à Casa Branca, Bolsonaro cometeu "novos erros", acrescenta Abdenur.
"Bolsonaro declarou abertamente preferência por Trump; seus filhos, que têm um papel importante em seu governo foram ainda mais enfáticos nisso, e agora estão endossando os ataques do Trump à legitimidade do processo eleitoral. São erros muito graves", diz.
'Ato de hostilidade'
Abdenur diz ainda que o "silêncio do Brasil" em não felicitar o presidente eleito americano é um "ato de hostilidade", que dificulta ainda mais as relações entre os dois países.
Até o fechamento desta reportagem, o Brasil, na contramão da maioria dos países do mundo, ainda não havia parabenizado Biden pela vitória.
"Me preocupa muito porque estou vendo materializar-se um gravíssimo erro que é o presidente brasileiro não reconhecer a vitória do Biden. Aparentemente o que o governo brasileiro vai fazer é esperar ou pelo fim da litigação absurda que o Trump está promovendo ou pelo calendário muito dilatado dos processos de formalização dos resultados das eleições americanas (a posse do novo presidente tem que acontecer no dia 20 de janeiro, ao meio-dia)".
"Então estamos correndo o risco de ficarmos isolados mais ainda por cerca de dois meses sem um diálogo com as novas forças que desde já começam a atuar nos EUA".
"Este silêncio do Bolsonaro é um ato de hostilidade contra Biden. É uma continuação absurda da solidariedade dele política, ideológica e pessoal com Trump", critica.
"Até Israel, Hungria e Polônia, países ideologicamente prestigiados, adorados, admirados pelo governo Bolsonaro apressaram-se em felicitar Biden. O Brasil fica isolado até de seus parceiros ideológicos na extrema direita", conclui.