Embora os presidentes do Brasil e da Rússia, Jair Bolsonaro e Vladimir Putin, exibam ao mundo uma admiração mútua e afinidade nos modos de governar, há também profundas diferenças em suas jogadas no tabuleiro internacional.
Especialistas em relações internacionais entrevistados pela BBC News Brasil apontam como algumas dessas diferenças: os laços de proximidade da Rússia com Cuba, Venezuela e China, países aos quais Bolsonaro reserva críticas pesadas; e também a postura colaborativa de Moscou com o multilateralismo e organismos internacionais como as Nações Unidas (ONU), outro alvo do presidente brasileiro.
Mas no encontro entre Bolsonaro e Putin, planejado para esta quarta-feira (16/02), ambos deverão demonstrar harmonia e deixar percalços para fora. Afinal, a agenda é potencialmente positiva em um cenário crítico para os dois.
"Essa é uma viagem de mise-en-scène (algo como encenação, em tradução livre). É uma conveniência para o candidato à presidência (Bolsonaro) que está isolado de todos os demais países do Ocidente e que não tem interlocução na América Latina, com exceção do Uruguai, Colômbia e Paraguai. Sem contar as falas e posturas de Bolsonaro em relação ao governo Joe Biden, nos Estados Unidos. Para ele que está isolado, aparecer do lado de um grande estadista ajuda a elevar sua estatura", analisa Marcos Cordeiro Pires, professor e pesquisador de relações internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
"Por outro lado, na perspectiva do Putin, no momento em que ele está testando os limites da institucionalidade internacional, aparecer com outro presidente, de um país grande como o Brasil, é também conveniente. Putin está tensionando e também está sob tensão", acrescenta o pesquisador, referindo-se à crise da Ucrânia, em que potências ocidentais alertam para o risco de invasão da Rússia ao seu país vizinho.
Professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o cientista político Guilherme Casarões aponta ainda outros ganhos que a viagem à Rússia pode representar para Bolsonaro, ainda mais em ano eleitoral.
"Ele vai passar uma mensagem para a sua base eleitoral de que ele tem credibilidade política lá fora. Isso é uma forma de se contrapor as evidências, que certamente serão usadas na campanha eleitoral contra o Bolsonaro, de que ele proporcionou o maior isolamento internacional do Brasil na história. O principal candidato nas eleições desse ano, o Lula, tem um legado diplomático muito consistente para defender", diz Casarões, considerando que pesquisas eleitorais têm mostrado a liderança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro e segundo turno.
Para o cientista político, a viagem atende também a "grupos de interesse organizados que estão sustentando a candidatura de Bolsonaro": o agronegócio e os militares, setores que podem ser beneficiados com negociações comerciais e o desenvolvimento tecnológico envolvendo os russos.
Apesar dos frutos que os presidentes do Brasil e da Rússia podem colher do encontro, a política externa de seus países têm raízes bastante diferentes.
China, Cuba e Venezuela
O professor Marcos Cordeiro Pires diz que tem grande projeção política mas pouca relevância real no bilateralismo Brasil-Rússia a aproximação entre Bolsonaro e Putin de um ultraconservadorismo internacional, algo representado por seus respectivos gurus, Olavo de Carvalho (que morreu em janeiro) e Alexandr Dugin. Pires aponta também para semelhanças entre os dois presidentes em temas como os direitos de homossexuais e na intolerância a dissidentes políticos.
Para o pesquisador, importa mais o posicionamento efetivo — e divergente — da Rússia e do Brasil no cenário internacional.
"Qual é a posição do governo brasileiro com relação a intervenções estrangeiras, como por exemplo ocorreu na Síria? Ou ao conflito no Irã? Você vai ver que o governo brasileiro se alinha ao bloco ocidental com os americanos, enquanto a Síria e o próprio Irã estão caminhando para um outro eixo mais próximo à Rússia", aponta Pires.
"O Brasil se alinha com os americanos, não é mais uma força em favor da multipolaridade como fora antes de 2018. Hoje, o Brasil é uma força do alinhamento praticamente automático (com os EUA)."
Para o especialista, embora Bolsonaro tenha manifestado contrariedade ao atual presidente americano, o democrata Joe Biden, a diplomacia e a defesa brasileira continuam essencialmente alinhadas com os Estados Unidos.
Enquanto isso, a hegemonia americana tem sido há décadas um dos principais alvos da atuação externa da Rússia — e este é um laço que une Moscou a Pequim, segundo lembra Guilherme Casarões, para quem é possível dizer que os dois países são aliados. A China é também o maior parceiro comercial da Rússia.
"A Rússia e China têm vários pontos de convergência, a começar pelo fato de que se opõem à hegemonia norte-americana no mundo. Mas é claro que existem pontos de tensão, principalmente com relação às questões geopolíticas mais urgentes. Por exemplo, a Rússia tem uma posição muito mais assertiva no Oriente Médio do que a China, que tem muito menos interesse de criar situações de intervenção internacional. A Rússia é muito mais belicista nesse sentido, e também tem uma preocupação enorme com o crescimento da presença chinesa na Ásia Central", diz o professor da FGV.
Na crise da Ucrânia, enquanto Estados Unidos e países da Europa Ocidental criticavam os russos e pediam que Putin recuasse, os presidentes da Rússia e da China divulgaram um comunicado conjunto pedindo o fim da expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Mas poucos países são mais alvos de críticas por parte do presidente Bolsonaro do que Cuba, que por sua vez tem uma longa relação com a Rússia. O ex-militar brasileiro é um crítico do regime comunista que comanda o país. Em seus discursos, ele sempre levanta a bandeira do combate à uma suposta ameaça comunista caso a direita perca o poder no Brasil.
Logo que chegou ao poder, em 2019, o governo Bolsonaro reformulou o programa Mais Médicos, que previa o emprego de médicos de diversos países, mas principalmente cubanos, em áreas carentes do Brasil. Mais recentemente, Bolsonaro veio a público para criticar as autoridades cubanas durante protestos anti-regime, em 2021. Na época, Bolsonaro demonstrou apoio aos manifestantes.
"Sabe o que eles tiveram ontem? Borrachada, pancada e prisão. E tem gente aqui no Brasil que apoia quem apoia Cuba, quem apoia Venezuela", disse.
Putin, por outro lado, mantém laços cordiais com os cubanos, numa postura que lembra, em alguma medida, a histórica relação entre Cuba e a ex-União Soviética.
Pouco depois da Revolução Cubana, em 1959, Cuba passou a adotar o comunismo. A partir daí, as relações entre os dois países se estreitaram. Os soviéticos sempre viram Cuba como um ponto estratégico no contexto da Guerra Fria, uma vez que o país fica a pouco mais de 100 quilômetros da costa norte-americana. O país chegou a abrigar mísseis russos que, quando descobertos pelos americanos, deram origem à famosa Crise dos Mísseis, que quase levou o mundo a um conflito nuclear.
Além do componente militar, cubanos e russos estabeleceram laços de cooperação em diferentes áreas, da medicina aos esportes.
Com o colapso da União Soviética, no início dos anos 1990, as relações passaram por um período turbulento, mas os dois nunca romperam totalmente seus laços. A chegada de Putin no poder, em 1999, marcou uma retomada nessas relações, sempre marcadas pelo componente estratégico em função da proximidade do país com os Estados Unidos.
A Rússia continua como um dos principais parceiros comerciais de Cuba e um dos maiores críticos do embargo econômico imposto pelos Estados Unidos ao país. Nos últimos anos, a Rússia enviou ajuda humanitária para Cuba enfrentar a pandemia de covid-19.
Em meio ao aumento das tensões na fronteira entre Rússia e Ucrânia, Sergei Ryiabkov, que chefiou uma delegação russa durante um encontro com os americanos sobre o assunto, disse que se as negociações com os americanos fracassassem, ele não poderia "nem confirmar e nem excluir" o envio de tropas russas para Cuba ou Venezuela. No dia 24 de janeiro, enquanto a crise russo-ucraniana aumentava, Putin e o presidente de Cuba, Miguel Diaz Canal Bermudes, tiveram uma conversa por telefone, em mais uma demonstração de proximidade entre os dois.
O cenário em relação à Venezuela é parecido com o cubano. Bolsonaro frequentemente usa o país comandado pelo ditador Nicolás Maduro como exemplo (ruim) do que aconteceria com o Brasil caso a esquerda tomasse o poder.
A Venezuela enfrenta uma grave crise econômica e social que fez com que milhões de pessoas deixassem o país em direção a nações vizinhas como o Brasil e a Colômbia. Bolsonaro culpa o sistema bolivariano implantado no país durante os governos de Hugo Chávez e que teve prosseguimento na gestão de Maduro.
Logo no início de seu mandato, Bolsonaro reconheceu o líder opositor Juan Guaidó como presidente da Venezuela, acirrando ainda mais as tensões com o país vizinho. Em 2020, o governo tentou expulsar diplomatas do governo venezuelano leais a Maduro, mas a iniciativa foi impedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
À época, Bolsonaro mantinha uma política internacional alinhada com a do então presidente norte-americano Donald Trump.
Putin, por outro lado, adota uma postura totalmente diferente da do colega brasileiro. A Rússia é um importante parceiro comercial da Venezuela e mantém laços estratégicos com o país. Os russos são alguns dos principais fornecedores de equipamentos bélicos para as forças militares venezuelanas, que receberam nos últimos anos caças supersônicos e tanques de guerra.
Além disso, o país também vende grandes quantidades de outras armas, como fuzis. A presença de equipamento militar russo em um país dentro da América Latina é vista com preocupação tanto por autoridades norte-americanas como brasileiras.
Em janeiro de 2019, durante protestos contra o regime que acabaram em confrontos, o presidente Putin demonstrou apoio a Maduro e conversaram por telefone. Um comunicado divulgado pelo Kremlin diz que Putin "enfatizou que a interferência externa destrutiva é uma grande violação das normas fundamentais do direito internacional".
Em uma nova demonstração de proximidade, Maduro e Putin voltaram a conversar por telefone em plena crise russo-ucraniana. No comunicado divulgado pelo Kremlin, Putin voltou a defender a soberania da Venezuela: "Vladimir Putin expressou seu inabalável suporte às autoridades venezuelanas para fortalecer a soberania do país e assegurar seu desenvolvimento socioeconômico".
Moscou: defesa do multilateralismo
O comunicado vai ao encontro de uma tradicional postura russa, segundo aponta Guilherme Casarões.
"A Rússia defende o multilateralismo, mas tem uma questão muito sensível, que é a da soberania. Ela não abre mão do direito soberano dos países de resolver seus próprios problemas — algo parecido com a China, ambas são muito pró-soberania nesse sentido", afirma Casarões, doutor e mestre em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em relações internacionais pela Universidade de Campinas (Unicamp).
O multilateralismo, uma orientação pela cooperação entre vários países, é, segundo os especialistas, demonstrada pela atuação russa na ONU e em outros fóruns internacionais.
"A posição da Rússia histórica foi pró-multilateral. Ela foi uma das fundadoras da ONU, sempre teve uma atuação relativamente propositiva na ONU e em outros blocos multilaterais. Até mais construtiva que os EUA nos últimos tempos", diz Casarões.
"Você não vai ouvir nenhum discurso da diplomacia, da chancelaria russa, falando mal da ONU, que a ONU não serve para nada, que deveria desaparecer. Coisas que a gente ouve da boca de presidentes republicanos dos EUA e que ouvimos diversas vezes de diversas formas no governo Bolsonaro: do Ernesto Araújo (ex-ministro de Relações Exteriores) ao próprio presidente."
Marcos Cordeiro Pires aponta também para as diferentes posturas da Rússia e do Brasil em relação aos BRICS, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, como indicam suas iniciais; e na própria Organização Mundial do Comércio (OMC).
Segundo o especialista, os BRICS são hoje uma instituição bloqueada pelos presidentes do Brasil e da Índia, enquanto ainda tem o entusiasmo da Rússia.
Ele lembra de um tuíte de janeiro de 2021 escrito pelo então secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, fazendo piada da situação: "Lembram dos BRICS? Bom, graças a @jairbolsonaro e @narendramodi, tanto o B quanto o I avaliam que o C e o R são ameaças aos seus povos".
Remember BRICS? Well, thanks to @jairbolsonaro and @narendramodi the B and the I both get that the C and the R are threats to their people. pic.twitter.com/JwL8E0uJte
— Secretary Pompeo (@SecPompeo) January 19, 2021
Pires diz que, na OMC, e também em encontros do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), o governo Bolsonaro tem representado um abandono do bloco de países que pleiteiam maior poder de barganha para os países em desenvolvimento, postura por sua vez defendida pela Rússia.
"Até 2018, o Brasil tinha um papel ativo na OMC, inclusive (representado pelo) o próprio presidente, o Roberto Azevêdo. Quando entra 2019 (início do governo Bolsonaro), o próprio Brasil ajuda a esvaziar a OMC justamente no momento em que os países em desenvolvimento tentam avançar a pauta. O Brasil se alinha ao governo Trump (EUA) no sentido de bloquear avanços e abre mão do status de nação em desenvolvimento, supostamente para alcançar alguma vantagem no ingresso à OCDE", recorda o professor da Unesp, mestre e doutor em história econômica pela USP.
Azevêdo deixou a direção-geral da OMC em 2020.
Janelas para a Rússia no Brasil e na América Latina
Guilherme Casarões aponta que, ao perder espaço geopolítico para a China e ao ser pressionada pela expansão da Otan, a Rússia tem buscado outras áreas de influência como o Oriente Médio e a América Latina.
"A Rússia se aproximou do MAS (Movimento ao Socialismo, da Bolívia), tem uma relação próspera com Andrés Manuel López Obrador no México e com Alberto Fernández na Argentina — foi inclusive uma das principais patrocinadoras de um eventual ingresso da Argentina nos BRICS. O Brasil, dentro desse contexto, é um país importante do ponto de vista geopolítico para que a Rússia possa firmar a sua posição", afirma o cientista político.
Para o especialista, ao encontrar Bolsonaro, Putin está pensando mais na relação a médio prazo com o Brasil do que com o atual presidente brasileiro — afinal, este não cultiva relações com países latino-americanos dos quais Moscou está se aproximando.
"O Putin está preocupado com o médio prazo, com o próximo governo. Se for o governo Lula, que é o mais provável, vai ter muito mais proximidade com Venezuela, Bolívia, Argentina, Cuba do que o atual. E vai ser estratégico para a Rússia triangular essas relações", avalia Casarões, para quem Brasil e Rússia cultivaram bons laços nos mandatos de todos os presidentes brasileiros recentes, desde pelo menos Fernando Henrique Cardoso.
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