Apesar de as pesquisas de intenção de voto para as eleições americanas mostrarem há tempos que o candidato democrata Joe Biden está na frente, o presidente Jair Bolsonaro não hesitou em demonstrar seu desafeto pelo candidato e sua preferência pelo republicano Donald Trump.
Embora a admiração do presidente brasileiro por Trump não necessariamente tenha trazido vantagens reais para o Brasil no cenário internacional, o governo Bolsonaro deu preferência desde o início para a relação bilateral com o país em detrimento de outras alianças, como com a China e países latino-americanos.
A princípio, uma mudança de governo nos EUA não necessariamente traria um problema para o governo Bolsonaro, segundo analistas políticos, já que a relação dos dois países tem sido pautada por pragmatismo em todos os governos desde a redemocratização brasileira.
Recentemente, o embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster Junior, afirmou que independentemente de quem vença o Brasil vai continuar a manter boas relações com o país.
No entanto, a atitude do presidente brasileiro pode complicar esse cenário em caso de vitória de Biden. Conforme as eleições americanas foram se aproximando, Bolsonaro não apenas reforçou sua admiração por Trump como passou a emitir declarações com forte retórica contra Biden. O presidente brasileiro chegou a dizer abertamente que torcia pela vitória do republicano.
"Bolsonaro e Trump com certeza vão manter contato, e (em caso de vitória de Biden) ter um presidente brasileiro ativamente apoiando a oposição nos EUA pode complicar uma tentativa de Biden de ter uma relação pragmática com Brasil", disse Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, à BBC News Brasil.
Abaixo, entenda cinco momentos em que o presidente Jair Bolsonaro demonstrou sua preferência por Trump e seu desgosto por Biden.
'Espero comparecer à posse de Trump'
O episódio mais recente foi durante a visita de uma delegação do governo americano liderada por Robert O'Brien, conselheiro de segurança nacional, em 20 de outubro.
"Espero, se for a vontade de Deus, comparecer à posse do presidente [Trump] brevemente reeleito nos EUA. Não preciso esconder isso, é do coração", afirmou o presidente Bolsonaro.
"Não interfiro, mas é do coração. Pelo respeito, pelo trabalho e pela consideração que ele teve conosco eu manifesto dessa forma neste momento", disse.
"Desde o primeiro contato nasceu entre nós um sentimento de cooperação, de buscar o bem para seus países; de apagarmos o que tínhamos de não feito corretamente por quem nos antecedeu no tocante à devida representação que nossos países merecem."
A delegação tinha como objetivo oficial a assinatura de um pacote comercial entre os dois países, mas também fez parte de um esforço dos EUA em pressionar autoridades de países sob sua influência a criar barreiras para a empresa chinesa Huawei no mercado de 5G.
'Lamentável, Sr. Joe Biden'
Um dos momentos em que Bolsonaro usou de retórica mais forte contra Biden foi após o primeiro debate eleitoral entre o democrata e Trump, no final de setembro.
Biden disse durante o debate que, se eleito, "começaria imediatamente a organizar o hemisfério e o mundo para prover US$ 20 bilhões para a Amazônia, para o Brasil não queimar mais a Amazônia".
"(A comunidade internacional diria ao Brasil) aqui estão US$ 20 bilhões, pare de destruir a floresta. E se não parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas", afirmou Biden.
A declaração gerou uma resposta imediata e revoltada de Bolsonaro, que classificou o comentário como "lamentável", "desastroso e gratuito" e fez uma série de postagens críticas a Biden no Twitter.
"Custo entender, como chefe de Estado que reabriu plenamente a sua diplomacia com os Estados Unidos, depois de décadas de governos hostis, tão desastrosa e gratuita declaração. Lamentável, Sr. Joe Biden, sob todos os aspectos, lamentável", escreveu o presidente.
1- O candidato à presidência dos EUA, Joe Biden, disse ontem que poderia nos pagar U$ 20 bilhões para pararmos de "destruir" a Amazônia ou nos imporia sérias restrições econômicas.
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) September 30, 2020
"O que alguns ainda não entenderam é que o Brasil mudou. Hoje, seu Presidente, diferentemente da esquerda, não mais aceita subornos, criminosas demarcações ou infundadas ameaças. NOSSA SOBERANIA É INEGOCIÁVEL", escreveu o presidente.
Apesar de Bolsonaro dizer com frequência que governos anteriores eram hostis aos EUA, a relação diplomática entre os dois países sempre foi bastante amigável nos governos pós-redemocratização.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tinha uma boa relação com o democrata Bill Clinton, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também era bastante próximo tanto do republicano George W. Bush quanto de seu sucessor, o democrata Barack Obama.
A relação da ex-presidente Dilma Rousseff com Obama ficou um pouco mais distante após revelações de que ela chegou a ser espionada pela NSA (agência nacional de segurança dos EUA), mas nunca chegou a ser hostil.
'Cobiça internacional'
Embora não tenha citado Biden nominalmente, Bolsonaro usou a cúpula da ONU sobre biodiversidade para rebater o americano sobre a Amazônia.
Na manhã seguinte ao debate e algumas horas após as críticas feitas à Biden no Twitter, Bolsonaro enviou um discurso gravado (que foi exibido durante o evento) em que falou em "cobiça internacional" pela Amazônia.
"Rechaço, de forma veemente, a cobiça internacional sobre a nossa Amazônia. E vamos defendê-la de ações e narrativas que agridam a interesses nacionais", afirmou o presidente.
"Não podemos aceitar que informações falsas e irresponsáveis sirvam de pretexto para a imposição de regras internacionais injustas, que desconsiderem as importantes conquistas ambientais que alcançamos em benefício do Brasil e do mundo", disse.
'A gente torce pelo Trump'
Bolsonaro também já usou as apresentações ao vivo que faz em sua página do Facebook para comentar as eleições americanas.
"A gente torce pelo Trump. Temos certeza que vamos potencializar e muito o nosso relacionamento", disse o presidente em 16 de agosto.
Logo em seguida disse que "o Brasil vai ter que se virar" em caso de vitória de Biden.
"Se der o outro lado, da minha parte eu vou procurar fazer algo semelhante [procurar ser próximo aos EUA]. Se eles não quiserem, paciência né? O Brasil vai ter que se virar por aqui", disse Bolsonaro.
'Ele vai ser reeleito'
No ano passado, quando a corrida eleitoral ainda não tinha começado nos Estados Unidos, Bolsonaro já falava em vitória de Trump nas eleições.
Na Assembleia Geral da ONU de 2019, a caminho de uma recepção oferecida por Trump aos outros chefes de Estado presentes no evento, Bolsonaro foi questionado sobre o impeachment que Trump sofreu na Câmara dos Representantes americana (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil).
"Ele vai ser reeleito no ano que vem", disse Bolsonaro aos jornalistas.
Trump não chegou a perder o cargo porque, embora seu impeachment tenha sido aceito na Câmara, foi rejeitado no Senado, onde os republicanos têm maioria
Qual a vantagem para Bolsonaro em criticar o candidato que vai melhor nas pesquisas?
Para o analista político Creomar de Souza, CEO da consultoria de risco político Dharma, o que explica a insistência de Bolsonaro de mostrar desafeto por Biden e admiração por Trump é o fato de as falas serem majoritariamente voltadas para seus apoiadores no Brasil.
"O posicionamento de política externa do Bolsonaro não tem como preocupação direta a política externa, mas o interesse de fazer uma plataforma eleitoral continuada", disse Creomar de Souza à BBC News Brasil.
"Ou seja, ele quer sempre engajar e resgatar o apoio de seu eleitorado. Dá para ver como ele quer agradar o seu eleitor típico ao colocar nas falas a comparação com outros momentos da história, com outros governos, citar a esquerda.
Bolsonaro já teve dificuldades por causa das diferenças com os democratas — que não se resumem à retórica do presidente. Em junho, 24 deputados do Partido Democrata fizeram uma carta dizendo que se opunham "firmemente a qualquer tipo de acordo comercial com o governo Bolsonaro" e afirmando que o presidente brasileiro "ignora o estado de direito" e coloca em perigo "o difícil progresso em direitos civis, humanos, ambientais e trabalhistas".
Por um desejo antigo dos setores empresariais dos dois países, alguns acordos comerciais acabaram saindo — foram anunciados no dia 19 de outubro.
Os filhos de Bolsonaro também já se juntaram ao pai nas críticas aos democratas. O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) publicou no Twitter um vídeo cheio de críticas aos democratas que era parte da campanha de Donald Trump.
O episódio levou ao presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos EUA, Eliot Angel, que é democrata, a dizer que "a família Bolsonaro precisa ficar fora da eleição americana".