Coronavírus: o diário de uma moradora de Wuhan sobre viver confinada na 'cidade-fantasma'

Guo Jing, de 29 anos, mora sozinha na cidade que é o epicentro do surto da doença na China e conta como é sua rotina desde que o confinamento começou.

30 jan 2020 - 12h42
Ilustração de mulher olhando pela janela
Ilustração de mulher olhando pela janela
Foto: BBC News Brasil

Guo Jing vive em Wuhan, cidade chinesa que é o epicentro do surto de coronavírus, epidemia que está deixando o mundo todo em alerta.

Até agora, mais de 7 mil casos foram confirmados em 16 países, e 170 mortes foram registradas, todas na China.

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Wuhan está isolada desde 23 de janeiro, em uma espécie de quarentena, como parte das medidas tomadas pelo governo chinês para tentar conter a propagação do vírus. O transporte público parou de circular, a maioria das lojas e empresas está fechada, e os moradores estão sendo aconselhados a ficar em casa.

Jing é uma assistente social de 29 anos que mora sozinha. Ela está escrevendo um diário desde que o confinamento começou — e compartilha aqui com a BBC.

Quinta-feira, 23 de janeiro — dia em que a cidade foi isolada

Eu não sabia o que fazer quando acordei e fui informada sobre o isolamento. Não sei o que isso significa, quanto tempo pode durar e tampouco como me preparar.

Há muitas notícias que causam irritação. Muitos pacientes não podem ser hospitalizados após receberem o diagnóstico [por falta de vagas]. Muitos pacientes com febre não estão sendo tratados adequadamente.

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Tem muito mais gente usando máscara cirúrgica. Alguns amigos me aconselharam a estocar suprimentos. Noodles (tipo de macarrão) e arroz estão quase em falta.

Medo do coronavírus leva à escassez de máscaras cirúrgicas na China
Foto: BBC News Brasil

Um homem estava comprando vários pacotes de sal e alguém perguntou por que ele estava comprando tanto. "E se o confinamento durar um ano inteiro?", ele respondeu.

Eu fui a uma farmácia e eles estavam limitando a entrada de clientes. Não havia mais máscaras cirúrgicas, nem álcool desinfetante.

Depois de estocar comida, ainda estou em choque. Há cada vez menos carros e pedestres nas ruas, a cidade parou de repente.

Quando a cidade vai voltar a viver?

Sexta-feira, 24 de janeiro — noite de Ano Novo silenciosa

O mundo está quieto e o silêncio é terrível. Eu moro sozinha, então só percebo que há outros seres humanos por aí por causa dos ruídos ocasionais no corredor.

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Ilustração de mulher comendo sozinha
Foto: BBC News Brasil

Tenho muito tempo para pensar em como sobreviver. Não tenho recursos, nem muitos contatos.

Um dos meus objetivos é não ficar doente, por isso tenho que me exercitar. A comida também é crucial para a sobrevivência, então preciso armazenar suprimento suficiente.

O governo não informou quanto tempo vai durar o confinamento. As pessoas estão dizendo que pode durar até maio.

A farmácia e a loja de conveniências aqui embaixo estavam fechadas hoje, mas foi reconfortante ver que os serviços de entrega de comida ainda estão funcionando.

Os noodles estão em falta nos supermercados, mas ainda é possível encontrar um pouco de arroz. Também fui ao mercado hoje. Comprei aipo, brotos de alho e ovos.

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Ao voltar para casa, lavei todas as minhas roupas e tomei um banho. A higiene pessoal é importante — acho que estou lavando as mãos de 20 a 30 vezes por dia.

Sair de casa me faz sentir que ainda estou conectada ao mundo. É muito difícil imaginar como os idosos que vivem sozinhos e as pessoas com deficiência vão passar por isso.

Eu não queria cozinhar menos do que o habitual, porque era a última noite do ano do porco — era para ser um jantar de comemoração.

Durante a refeição, eu fiz uma chamada de vídeo com meus amigos. Não havia como fugir do assunto. Algumas pessoas estão em cidades próximas a Wuhan, outras optaram por não ir para casa por causa da doença, mas há aquelas que ainda insistem em se reunir apesar do surto.

Uma amiga tossiu durante a ligação. Alguém disse brincando para ela desligar!

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Conversamos por três horas, e achei que conseguiria pegar no sono com pensamentos felizes. Mas quando fechei os olhos, as lembranças dos últimos dias vieram à tona como um flashback.

As lágrimas caíram. Me senti impotente, com raiva e triste. Também pensei na morte.

Não tenho muitos arrependimentos, porque meu trabalho tem um propósito. Mas não quero que minha vida termine.

Sábado, 25 de janeiro — sozinha no Ano Novo Chinês

Hoje é o Ano Novo Chinês. Eu nunca me interessei muito em celebrar estas datas festivas, mas agora o ano novo parece ainda mais irrelevante.

Pela manhã, vi um pouco de sangue depois de espirrar e fiquei com medo. Minha cabeça estava repleta de preocupações em relação à doença. Fiquei pensando se deveria sair ou não. Mas como não estava com febre e tinha apetite, saí.

Usei duas máscaras, apesar de as pessoas dizerem que é inútil e desnecessário. Fico receosa com falsificações e máscaras de baixa qualidade, então usar uma máscara dupla me faz sentir mais protegida.

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Ainda estava muito silencioso.

Uma floricultura estava aberta, e o dono havia colocado alguns crisântemos (frequentemente usados em funerais) à porta. Mas não sei dizer se isso significa alguma coisa.

No supermercado, as prateleiras de verduras e legumes estavam vazias, e quase todos os bolinhos e noodles estavam esgotados. Havia apenas algumas pessoas na fila.

Ilustração de mulher fazendo exercício
Foto: BBC News Brasil

Eu continuo tendo esse impulso de comprar grandes quantidades de comida a cada visita ao mercado. Comprei mais 2,5 kg de arroz, apesar de ter 7 kg de arroz em casa. Também não pude deixar de comprar batata-doce, salsichas, feijão vermelho, feijão verde, milho e ovos em conserva.

Eu nem gosto de ovo em conserva! Vou dar para os amigos, depois que o bloqueio for suspenso.

Tenho comida suficiente para um mês, e essa compra compulsiva parece loucura. Mas, sob estas circunstâncias, como eu posso me culpar?

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Fui dar uma caminhada pela margem do rio. Duas lanchonetes estavam abertas e algumas pessoas estavam passeando com seus cachorros. Vi que outras também estavam dando uma volta — acho que também não queriam se sentir presas.

Eu nunca tinha andado por essa rota antes. Parecia que meu mundo havia se expandido um pouco.

Domingo, 26 de janeiro — fazer sua voz ser ouvida

Não é apenas a cidade que está confinada — a voz das pessoas também.

No primeiro dia do isolamento, eu não conseguia escrever sobre isso nas redes sociais (por causa da censura). Não conseguia escrever nem no WeChat (rede social chinesa). A censura na internet existe há muito tempo na China, mas agora parece ainda mais cruel.

Quando sua vida é virada de cabeça para baixo, é um desafio reconstruir sua rotina diária. Continuo me exercitando pela manhã, usando um aplicativo, mas não consigo me concentrar porque minha cabeça está ocupada.

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Moradores de Wuhan foram filmados cantando e gritando palavras de incentivo de suas janelas
Foto: Kharn Lambert, Weibo / BBC News Brasil

Saí de casa hoje novamente e tentei contar quantas pessoas eu encontrei na rua — vi oito durante minha caminhada até uma loja de noodles, a cerca de 500m da minha casa.

Eu não queria voltar para casa. Tive vontade de explorar mais. Faz apenas dois meses que me mudei para Wuhan. Não tenho muitos amigos aqui e não conheço muito bem a cidade.

Acho que vi cerca de 100 pessoas na rua hoje. Tenho de continuar a me fazer ouvir e me libertar das correntes. Tomara que todos mantenham a esperança. Amigos, espero que possamos nos encontrar e conversar no futuro.

Por volta das 20h, ouvi pessoas gritando palavras de incentivo, como "Vai, Wuhan!", de suas janelas. O canto coletivo é uma forma de elevar os ânimos.

Terça-feira, 28 de janeiro — finalmente, a luz do sol

O pânico criou uma barreira entre as pessoas.

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Em muitas cidades, os moradores são obrigados a usar máscaras em espaços públicos. À primeira vista, a medida é para controlar o surto de pneumonia. Mas, na verdade, pode levar ao abuso de poder.

Ilustração de mulher passando por alguém passeando com cachorro
Foto: BBC News Brasil

Alguns cidadãos sem máscara foram expulsos de transportes públicos. Não sabemos por que não estavam usando máscara. Talvez não tenham conseguido comprar, ou não soubessem do aviso.

Não importa o motivo, seus direitos de ir e vir não devem ser cerceados.

Em vídeos que circulam na internet, alguns indivíduos aparecem lacrando as portas de pessoas que se autoimpuseram uma quarentena. Moradores da província de Hubei (onde fica Wuhan) foram expulsos de suas casas e ficaram sem ter para onde ir.

Mas, ao mesmo tempo, há quem esteja oferecendo hospedagem.

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Hoje, finalmente, há luz do sol — meu humor também melhorou. Vi mais gente no meu condomínio e havia alguns agentes comunitários. Eles pareciam estar checando a temperatura de quem circulava.

Não é fácil construir confiança e vínculos em uma situação de confinamento. A cidade está abatida por este peso.

No meio de tudo isso, não consigo evitar ficar na defensiva.

Minha ansiedade em relação à sobrevivência foi se dissipando lentamente. Andar pela cidade não terá sentido se eu não fizer nenhum contato com as pessoas daqui.

A participação social é uma necessidade importante. Todo mundo tem de encontrar um papel na sociedade para dar sentido à vida.

Nesta cidade solitária, preciso encontrar meu papel.

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Guo Jing também publicou partes de seu diário no WeChat. Ela conversou com a jornalista da BBC Grace Tsoi.

As ilustrações são de Davies Surya.

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