Hospitais em colapso. Pacientes sem vagas nas UTIs. Falta de oxigênio para quem precisa.
O cenário devastador que assola a Índia agora durante a pandemia de covid-19 foi o mesmo do Brasil de algumas semanas atrás. As cenas de dois epicentros da pandemia em momentos diferentes são chocantes.
Mas a reação do mundo às duas crises foi bastante diferente. Países como os Estados Unidos, o Reino Unido e os que integram a União Europeia se mobilizaram em peso para mandar ajuda para a Índia, isso sem contar a atenção da imprensa internacional e celebridades.
Os EUA prometeram doar US$ 100 milhões (R$ 545 milhões) em insumos, revogaram a proibição à exportação de insumos para fabricar vacinas e finalmente admitiram doar doses excedentes da vacina AstraZeneca a outros países - algo que o Brasil havia cobiçado.
Nos meses em que foi o epicentro da crise, o Brasil chegou a receber ajuda de vizinhos como Venezuela e recursos mais discretos do governo americano, mas parou por aí. Qual é a razão deste contraste?
Especialistas apontam cinco fatores que explicam essa diferença: a escala da crise na Índia e o que isso pode significar para o mundo, a importância econômica e geopolítica do país, a diferença de postura entre os líderes da Índia e do Brasil, a importância da diáspora indiana global e o timing da crise.
Escala da crise na Índia
A escalada da crise na Índia começou em abril, com o número de casos aumentando rapidamente. Mais de 222 mil pessoas já morreram vítimas da covid-19 no país de quase 1,3 bilhão de pessoas.
Proporcionalmente, morreram mais pessoas no Brasil - um país de 211 milhões de pessoas com quase 410 mil mortes. Mas uma explosão de casos em um país de 1,3 bilhão de pessoas - que chegou a bater o recorde mundial de 400 mil novos casos de covid-19 em 24 horas - não é pouca coisa.
"A Índia é o segundo país mais populoso do mundo. Estamos falando de um país onde é extremamente difícil fazer o isolamento. Uma grande parte da população vive abaixo da linha de pobreza, com dificuldade de testagem", diz à BBC News Brasil a professora associada de relações internacionais da PUC Minas Rashmi Singh, que é indiana. "A gravidade da crise, apenas por causa do tamanho da população indiana, já supera a crise brasileira."
O que acontecer na Índia, diz ela, vai se espalhar para os países do entorno, como Nepal, Bangladesh e Paquistão, além de possivelmente afetar o resto do mundo. "Quanto maior for a explosão, mais chances teremos de ver variantes. Então o mundo está preocupado, e com bastante razão."
Para Singh, os países também se preocupam porque pensam que esse pode ser só o começo da crise. Temem que o que está acontecendo na Índia possa acontecer em outros países pobres. "Estamos vendo falta de oxigênio, medicamentos. Sabemos que isso aconteceu no Norte do Brasil e em cidades como Nova York, onde o sistema ficou completamente sufocado. Exceto que o Norte do Brasil agora é toda a nação da Índia. Isso vai para além de suas fronteiras."
De fato, na Índia há escassez de vagas em UTIs, que vêm recusando novos pacientes, e de oxigênio. Médicos descrevem como as pessoas estão morrendo nas ruas. Há cremações em massa, e crematórios da capital construíram piras funerárias para dar conta da demanda.
Cilindros com oxigênio são essenciais para manter e estabilizar os pacientes com covid-19 grave — além de pacientes com outras enfermidades. Sem esse insumo básico, muitos indivíduos hospitalizados acabam morrendo. Isso tem acontecido na Índia, assim como ocorreu no Brasil.
No Amazonas, faltaram cilindros de oxigênio, fazendo com que equipes de saúde tivessem de recorrer à ventilação manual. A Secretaria de Saúde do Amazonas determinou a requisição administrativa de estoque de oxigênio de 17 empresas. A crise de oxigênio em Manaus fez o governo federal virar alvo de investigação e será um dos focos da CPI da Covid que começou nesta semana.
Outros Estados do Brasil também sofreram - a Fiocruz divulgou um documento dizendo que o país passava pela maior crise sanitária e hospitalar da história. Todos os Estados ficaram em zona de alerta crítico em relação à ocupação de leitos de UTI e, assim como na Índia, pessoas morreram por falta de leito.
Importância geopolítica, econômica e de vacinas
A Índia tem a segunda maior população do mundo, que em breve deve se tornar a primeira, e com maioria de jovens. É a sexta maior economia do mundo considerando o PIB nominal. E previsões econômicas apontam que o país se tornará a principal economia do mundo na segunda parte do século 21.
Ou seja, "é importante ter uma boa relação com o país", diz Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV em São Paulo.
Nas palavras do diplomata aposentado e professor de Relações Internacionais da ESPM, Fausto Godoy, a Índia é "um monumento de cultura e civilização", com muito poder político, econômico e soft power por causa de sua cultura e história.
Por isso, os países do "ocidente central" - como ele chama os Estados Unidos e países da Europa - "olham muito mais para a Índia do que para o Brasil". Godoy foi embaixador do Brasil no Paquistão e no Afeganistão e morou em 11 países da Ásia, incluindo duas passagens pela Índia (de 1984 a 1987 em Nova Delhi e 2009 a 2010 como cônsul geral em Mumbai).
Para os Estados Unidos, é um parceiro estratégico muito importante, observa Stuenkel, "não apenas no quesito contenção da China, mas do ponto de vista econômico".
"A Índia é um poderio econômico. Qualquer crise que acontece na Índia afeta o mundo inteiro", opina Singh.
Além disso, no contexto da pandemia, talvez o fato mais importante seja o de que a Índia é a maior produtora de vacinas do mundo - suas duas maiores fabricantes têm a capacidade de produzir 90 milhões de doses por mês. "No fim de tudo, o mundo está muito preocupado porque a Índia é um elemento crítico na cadeia de abastecimento da vacina", diz Singh. "É uma crise do mundo inteiro, que vai impactar países que já estavam recebendo vacinas."
Além da ajuda do Reino Unido e de países da União Europeia que ofereceram ventiladores e oxigênio para a Índia, os Estados Unidos também informaram que fornecerão equipamentos médicos e de proteção ao país. Também vão suspender a proibição de envio de matérias-primas ao exterior, permitindo que a Índia produza mais da vacina AstraZeneca, algo que o país reivindicava.
Além disso, diante da crise na Índia, o governo norte-americano anunciou que deve doar 60 milhões de doses da AstraZeneca a outros países, algo que o Brasil havia pedido.
"Pode ser tarde demais", diz Singh. "Já há algum tempo que o governo e organizações da sociedade civil pedem ajuda, que tem demorado muito a chegar." Para ela, não há altruísmo ou filantropia por parte dos países que estão oferecendo ajuda, só uma conclusão tardia de que é preciso haver distribuição igualitária de insumos e vacinas.
O Brasil havia feito apelos aos Estados Unidos para o envio de um estoque de vacinas excedentes. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), enviou uma carta à vice-presidente americana Kamala Harris pedindo que os americanos vendessem ao Brasil parte de seu suprimento de vacinas AstraZeneca que ainda não tinha aval para uso interno. Segundo um post do Itamaraty no Twitter no dia 21 de março, o governo brasileiro estava negociando com os EUA a importação de parte do estoque.
Desde o dia 13/3 o Governo brasileiro, através do Itamaraty e da Embaixada em Washington, em coordenação com o Ministério da Saúde, está em tratativas com o Governo dos EUA para viabilizar a importação pelo Brasil de vacinas do excedente disponível nos Estados Unidos.
— Itamaraty Brasil 🇧🇷 (@ItamaratyGovBr) March 20, 2021
A BBC News Brasil procurou o Itamaraty para saber qual havia sido o resultado das negociações. "O diálogo bilateral entre Brasil e EUA é constante e fluido. O Itamaraty está em contato com a unidade recém-criada pelo Departamento de Estado norte-americano dedicada à alocação de vacinas para parceiros internacionais dos EUA. Trabalhamos para que o Brasil possa dispor de aporte daquelas vacinas, à medida que evolua a parcela já imunizada da população norte-americana", respondeu a instituição.
No auge da crise brasileira, quem ajudou o país foi a Venezuela, enviando cilindros com de oxigênio a Manaus.
Ayer le di la buena noticia al Gobernador del estado Amazonas de Brasil 🇧🇷, que hoy sábado salen los primeros camiones cilindros con miles de litros de oxígeno, desde la planta de SIDOR, Puerto Ordaz, hacia Manaus. Le di también otra buena noticia... (sigue)
— Jorge Arreaza M (@jaarreaza) January 16, 2021
E, segundo a Embaixada americana no Brasil, o governo dos EUA doou US$ 19,7 milhões (R$ 108 milhões) para combater a covid-19 no Brasil.
Bolsonaro x Modi
Não é só o poderio político e econômico. Também importa a postura dos líderes da Índia e do Brasil.
"Nós não temos uma boa cara perante a opinião pública internacional", resume Godoy. A imagem externa do governo Bolsonaro e de "um ministro das Relações Exteriores que só fez desastre" contribuiu para um desgaste perante a opinião pública.
Em entrevista à BBC News Brasil nesta semana, o diplomata e ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente Rubens Ricupero atribuiu a diferença entre a ajuda à Índia e a ajuda ao Brasil à "rejeição do Brasil pelo mundo". "O Brasil hoje já se converteu numa espécie de 'pária' do mundo. Isso se vê agora na pandemia", afirmou. "Então, é óbvio que, na hora que o Brasil precisa, não existe da parte do mundo exterior, uma reação de solidariedade."
Na semana passada, reportagem do jornal Washington Post apontou como "a imagem internacional que [o Brasil] passou décadas cultivando - com foco ambiental, amigável, multilateral - foi minada por um presidente cujo governo insultou grande parte do mundo no momento em que o Brasil mais precisava de sua ajuda".
Para Stuenkel, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, foi "muito mais pragmático" que o Bolsonaro quando Biden venceu a eleição nos Estados Unidos. "A Índia deixou bem claro que apesar de o Modi ter sido um grande amigo do Trump, que gostaria de manter essa relação privilegiada com os EUA, enquanto o Bolsonaro demorou muito para parabenizar o Biden."
Por isso, para ele, "o Brasil complicou muito, atrapalhou muito uma possível iniciativa internacional de enviar ajuda por meio de uma postura muito radicalizada não só na pandemia, mas também no âmbito ambiental, como na retórica contra o multilateralismo".
Já na opinião da professora da PUC-MG, a personalidade de Bolsonaro pode exercer algum papel na situação, mas é "marginal". "Relações exteriores são uma composição de estratégia e interesse próprio. Pode haver antipatia em relação ao Bolsonaro no mundo, mas não acho que seja suficiente para que os países não prestassem atenção e ajudassem o Brasil se fosse de seu interesse."
De qualquer forma, diz ela, ignorar o que acontece no Brasil é um erro. "O Brasil é, sim, um dos epicentros da crise. Não tem a população que a Índia tem nem exerce um papel importante na cadeia de produção de vacinas e outros produtos, mas as variantes desenvolvidas no Brasil são extremamente problemáticas. É um sinal claro que o mundo precisa ouvir."
Diáspora indiana
Para Stuenkel e Godoy, a poderosa diáspora indiana também faz com que o mundo se volte mais à Índia do que ao Brasil. "A diáspora indiana está em vários setores, liderando grandes empresas transnacionais. Ajudam a elevar o conceito da Índia no mundo", diz Godoy.
Nos Estados Unidos, a presença indiana é "enorme, de longuíssima data, muito bem-sucedida e integrada socialmente e economicamente também", avalia Stuenkel. A diáspora faz parte da elite da sociedade americana, observa ele, com descendentes no Congresso, vários políticos relevantes e CEOs de grandes empresas. Por isso, o debate sobre a Índia ganhou um destaque nos Estados Unidos muito maior que a crise brasileira.
Timing
Por fim, Stuenkel destaca que a diferença de timing de quando o Brasil começou a virar o epicentro da pandemia em relação ao momento da crise na Índia pode ser fundamental.
Naquela época, diz ele, os Estados Unidos não tinham vacinado tanta gente. "Agora, aos poucos a decisão de enviar as vacinas para fora se torna politicamente menos arriscada. A Índia pedindo ajuda agora aos EUA é mais fácil do que era dois, três meses atrás", diz Stuenkel.
"Já há mais segurança em relação às vacinas, então o Biden pode abrir mão das vacinas da AstraZeneca sem ser acusado de se esquecer ou de não se importar com a vida dos americanos."