O pai de Helena Monteiro da Costa foi trazido de Angola para o Brasil como escravo no século 19. No ano que vem, Helena, de 99 anos, espera poder participar de um cruzeiro inédito que fará a viagem inversa para a terra natal de seu pai.
"Meu pai era escravo e ele obedecia... tudo o que mandavam ele fazer, ele fazia", disse Helena em sua casa em Santos, cidade onde o pai foi parar depois da viagem brutal pelo Atlântico.
Do século 16 ao 19, o Brasil recebeu cerca de 5 milhões de africanos escravizados, mais do que qualquer outro país. A maioria foi transportada à força, em condições desumanas, de Angola, no oeste da África, a bordo de navios portugueses.
Os organizadores de "A Grande Travessia" estão buscando fretar um navio de cruzeiro para partir de Santos e fazer escala no Rio de Janeiro e em Salvador antes de seguir para Luanda, capital de Angola.
Dagoberto José Fonseca, de 63 anos, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é o idealizador do cruzeiro, que está planejado para o período de 1 a 21 de dezembro de 2025.
"Nós queremos retomar as rotas marítimas do passado no presente e construir um outro futuro em relação a essas rotas marítimas, para que a gente entenda que Angola é aquele lugar do mundo que mais pessoas (escravizadas) vieram e construíram esse Brasil que nós temos hoje", disse ele.
Fonseca tem conversado com autoridades angolanas e brasileiras, que apoiam a iniciativa, e com empresas de cruzeiros. Será necessário apoio financeiro para fretar o navio de cruzeiro.
Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, afirmou que o projeto está alinhado com o programa governamental "Rotas Negras", que promove o turismo que valoriza a história e a cultura afro-brasileira.
HERANÇA
O projeto prevê o convite a cerca de 2.000 passageiros, incluindo estudantes, acadêmicos, empresários, descendentes dos escravizados e líderes de religiões afro-brasileiras.
As atividades planejadas a bordo incluem workshops, mesas-redondas, oportunidades de networking e homenagens aos mais de 2,5 milhões de pessoas que perderam suas vidas na extenuante "Passagem do Meio".
"Olha, a expectativa (dessa viagem) é conhecer meu passado", disse Maria Francisca do Careno, uma das acadêmicas negras que participará do cruzeiro, afirmando esperar que a viagem forneça respostas às perguntas que ela tem sobre sua herança.
Afonso Vita, um especialista angolano em turismo de herança escravagista, disse que o cruzeiro ajudará seu país a confrontar o passado e acusou o antigo colonizador Portugal de tentar evitar o assunto.
"O país que nos colonizou, Portugal, nunca teve qualquer interesse em ver essa história, que mancha sua imagem, discutida publicamente", declarou Vita.
Neste ano, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, disse que seu país era responsável pelos crimes cometidos durante a escravidão transatlântica e a era colonial, e sugeriu a necessidade de reparações. Mas o governo português rejeitou iniciar qualquer processo de reparação.
Tanto Vita quanto Fonseca pediram que o governo português se envolva no projeto do cruzeiro.
O Ministério da Economia de Portugal, que supervisiona o turismo, não respondeu imediatamente a um pedido de comentário.
Os organizadores veem o cruzeiro como parte de um movimento mais amplo que luta por reparações pela escravidão transatlântica e pelo colonialismo europeu.
O debate sobre se deve haver reparações para tratar de erros históricos e seus legados é de longa data e continua altamente divisivo, mas o apoio às reparações vem ganhando força em todo o mundo.