Quem tem acompanhado o noticiário internacional nos últimos três anos já deve ter percebido que a crise na Síria apenas se agravou desde o início do levante contra a tirania do regime do ditador Bashar al-Assad, em 15 de março de 2011. Houve inúmeras mudanças dentro do que caracteriza o conflito, mas a maior delas foi a transformação de uma revolta popular não armada em uma guerra civil, mudança que não só favorecia, como também fortalecia o regime de Assad.
“A gente percebia que interessava para o próprio regime transformar o conflito em uma guerra civil, porque dentro de uma guerra civil, as normas de conduta são outras, então deixou de ser o regime reprimindo e massacrando a população civil e passou a ser um conflito onde ambos os lados vão cometer crimes, excessos e abusos”, diz a professora doutora de História Árabe e diretora do Centro de Estudos Árabes da USP, Arlene Elizabeth Clemesha.
Clemesha explica que, depois de três anos, houve uma radicalização e uma regionalização cada vez maior do conflito. Segundo ela, “a Síria passou a ser um local para onde afluem jihadistas radicais não só do Oriente Médio, como do mundo todo, são pessoas que não são sírias e que não estão interessadas no futuro da Síria, mas que estão tomando essa guerra civil como uma causa de grupos fundamentalistas e jihadistas”.
Ao contrário do que muitos pensam, nem sempre há confronto entre Exército e oposição. A forma de atuação das milícias que são contra o regime não é de afronta às forças do governo, mas sim “de entrar em locais onde o Exército sírio não está”. Contudo, quando as forças militares de Assad alcançam esses locais e um combate se inicia, os rebeldes recuam e ocupam outro lugar, fator que ajuda a explicar por que a guerra na Síria é tão móvel e difícil de ser contida.
Uma batalha móvel e de milícias
Outro agravante é o aumento do número de grupos armados, que hoje se reúnem em grandes 'guarda-chuvas' com subgrupos. De um lado, há o regime sírio e o do outro, o Comando Militar do Exército da Síria - surgido em 2011 - que agrupa grupos islâmicos moderados, grupos laicos, organizações de esquerda e populares, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS) - que se formou no Iraque muito antes da insurreição na Síria e que por muito tempo se disse filiado ao grupo terrorista Al-Qaeda - além da Frente Al-Nusra, grande 'guarda-chuva' de grupos jihadistas fundamentalistas.
“Ninguém consegue chegar à conclusão, hoje, se tem algum lado desse conflito com uma preponderância, a não ser o próprio regime, que tem, sim, uma preponderância militar, mas que não consegue vencer a batalha porque é uma batalha móvel e de milícias, não é o enfrentamento de dois exércitos. Então existe esse impasse militar”, afirma Clemesha.
A inexistência de uma representação unificada também é um problema. O Conselho Nacional Sírio (hoje Coalizão Nacional Síria) representa a oposição para o mundo exterior, mas não representa, de fato, quem está lutando, explica a diretora do Centro de Estudos Árabes da USP. “Nas conferências em Genebra II, por exemplo, a Coalizão representou o lado rebelde, mas qualquer acordo firmado por essa organização não vai ter o respaldo de quem está lutando, então é uma representação muito falha”, explica a professora.
“Está faltando uma intervenção humanitária”
Tornou-se urgente uma intervenção humanitária da Síria, mas a proposta não sai, e nem tão cedo sairá, do papel. Por oposição da Rússia, a intervenção proposta pelo Conselho de Segurança da ONU não foi aprovada. Além disso, interessa muito mais aos Estados Unidos exercer uma influência à distância do que intervir unilateralmente. “É muito difícil sair de uma guerra dessas, intervir na Síria é muito complicado. A proliferação de diferentes grupos culturais, étnicos e religiosos torna a Síria potencialmente muito mais explosiva que o Iraque”, e complementa “Quando não há interesse político na intervenção, ela não acontece”, afirma Clemesha.
População: a grande vítima
O que se tem testemunhado na Síria comprova que a população civil tem sido a principal vítima da guerra ao longo de todos esses anos. A fome, a miséria e os abusos têm sido usados como táticas de guerra contra os próprios sírios. “Não existe só a fome, mas também o estupro, a tortura e todo tipo de pressão sobre a população civil que passa a ser atingida sempre que um vilarejo ou uma cidade são tomados por grupos de oposição ao regime. Quando ali se instalam grupos de oposição, a população passa a ser alvo de uma forma de castigo coletivo; a gente está vendo um desastre humanitário de proporções criminosas”, expõe Clemesha.
Por que o levante sírio teve resultado tão diferente dos vistos na Líbia e Egito?
“A Líbia era uma guerra fácil e convinha para a França, que estava em plena época de campanha eleitoral; para o Sarkozy, interessava aparecer como um líder forte”, explica Clemesha se referindo à intervenção liderada pela França na Líbia. Além disso, “não havia na Líbia grupos de oposição com o poder que têm na Síria”, conta ela. O Estado era fraco, a população era menor e havia o interesse em uma redistribuição da exploração do petróleo.
No Egito, o Exército tem um papel histórico muito distinto do papel histórico do Exército da Síria. O Exército egípcio sempre se caracterizou por participar de guerras externas e “quando viu aquela quantidade de pessoas na rua, resolveu sacrificar Mubarak para preservar o regime”.
O Exército na Síria, por outro lado, tem um histórico de massacres dentro do próprio país, como o ocorrido na cidade de Hama, em 1982. A mando do comandante geral e irmão mais novo de Bashar al-Assad, Rifaat al-Assad, as Forças Armadas bombardearam Hama na tentativa de conter a revolta liderada pela Irmandade Muçulmana , matando entre 10 e 25 mil pessoas, a maioria civis. Ou seja, enquanto na Síria o exército reprimiu violentamente a população no início do conflitos, “no Egito, o exército se recusou a fazer esse papel para justamente não manchar a imagem da instituição que é o pilar do regime egípcio”, lembra Clemesha.
O futuro incerto da guerra
Com o fracasso das negociações de Genebra II, em janeiro e fevereiro deste ano, é impossível prever um cessar-fogo e enxergar uma trégua no horizonte. De acordo com Clemesha, além do desarmamento do regime, da proibição de envio de armas aos rebeldes e de uma intervenção humanitária, é imprescindível uma trégua que paralise a situação no terreno, para que um programa de divisão de poder - que incluem um calendário de eleições e a formulação de uma nova Constituição - possa avançar.
A destituição de Assad e a instauração de um novo governo precisam ser executadas por meio de um processo de negociação. E a explicação para isso é simples: não há uma luta apenas entre rebeldes e o regime, mas também entre os grupos da oposição. “Todos os rebeldes querem o fim do Assad, mas alguns querem a formação de um estado laico e democrático, e outros querem a refundação de um califado [forma de governo] islâmico. Os rebeldes têm diferentes projetos políticos, então, se o presidente cair amanhã, a guerra deve se intensificar”, prevê Clemesha.
Pelo mundo, governos se recusam a interferir no conflito, e não é do interesse dos países aliados, principalmente da Rússia (a única capaz de pressionar o regime de Assad), interromper o envio de armas a rebeldes, nem pressionar o governo para que entreguem suas armas. Além disso, a estrutura da ONU não deverá permitir que uma intervenção humanitária aconteça no país.
Mais de 140 mil pessoas já morreram desde o início da guerra e mais de 2 milhões se refugiaram em países vizinhos. “A população civil está pagando o preço dessa guerra; está havendo uma geração inteira perdida na Síria”, constata Clemesha. Seja qual for a solução para o conflito, ela tem de ser negociada, e rápido.