"Olá, prezado Javier Milei. (Aqui é) Jair Bolsonaro. Temos muita coisa em comum. A começar que nós queremos o bem dos nossos países. Nós defendemos a família, a propriedade privada, o livre mercado, a liberdade de expressão, o legítimo direito à defesa e queremos sim ser grandes à altura do nosso território e da nossa população."
Foi enfatizando semelhanças que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) divulgou um vídeo demonstrando apoio ao deputado argentino Javier Milei, que saiu vitorioso nas eleições primárias da Argentina, realizadas no domingo (13/8).
Milei se apresenta como um libertário, e seu grupo, o La Libertad Avanza ("A Liberdade Avança", em tradução livre) liderou a corrida presidencial com mais de 30% dos votos.
As eleições presidenciais na Argentina acontecem em outubro e Milei aparece, agora, como um dos favoritos à vitória.
O resultado surpreendeu boa parte dos analistas políticos do país e de fora da Argentina, uma vez que as pesquisas de intenção de voto apontavam que ele teria em torno de 20% dos votos.
Milei vem chamando atenção por suas propostas consideradas por muitos como radicais.
Sua comparação com Bolsonaro vem sendo feita desde que ele despontou no cenário político argentino, em 2021, quando se elegeu deputado.
Na época, em entrevista ao jornal O Globo, ele mesmo mencionou a comparação.
"É quase natural meu alinhamento com Trump e Bolsonaro", em referência ao também ex-presidente Donald Trump, dos Estados Unidos.
Mas enquanto todas as atenções parecem voltadas para as semelhanças entre Bolsonaro e Milei, especialistas em política argentina ouvidos pela BBC News Brasil apontaram quais seriam as quatro principais diferenças entre os dois políticos.
Segundo eles, as quatro principais diferenças entre os dois são: carreiras distintas, posição em relação aos militares, apoio do eleitorado evangélico e o conservadorismo.
Carreiras distintas
A diferença mais óbvia apontada pelos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil se dá pelas trajetórias diferentes de Milei e Bolsonaro.
Milei é formado em Economia pela Universidade de Belgrano, na Argentina, e tem dois mestrados na área. Ele atuou em consultorias, bancos e grupos de políticas econômicas, segundo um perfil disponível no site do Fórum Econômico Mundial.
Bolsonaro, por sua vez, tem sua origem no universo militar brasileiro. Ele se formou como oficial do Exército na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) na década de 1970. Ele foi militar da ativa até 1988, quando entrou para a reserva.
Para além da diferença nas suas formações, Milei e Bolsonaro têm uma trajetória distinta em relação às suas atuações políticas.
Apesar de ter vencido as eleições presidenciais de 2018 se apresentando como um candidato "fora do sistema", Bolsonaro já atuava como parlamentar desde 1988, quando foi eleito para um cargo político (vereador, à época) pela primeira vez.
Desde então, ele se manteve como parlamentar até vencer o então candidato à Presidência Fernando Haddad, no segundo turno das eleições de 2018.
Javier Milei, por sua vez, só entrou para o universo político em 2021, quando foi eleito deputado de primeiro mandato.
Rafael Rezende é doutor em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e estuda, há anos, a política argentina. Para ele, as trajetórias na política de Milei e Bolsonaro são uma das principais diferenças entre os dois.
"Apesar de os dois terem esse discurso anti-sistema, a realidade é que Bolsonaro foi parlamentar durante décadas. O Milei, por sua vez, apesar de ter trabalhado para alguns políticos, ele jamais foi um representante político eleito até 2021. Ele, de fato, é alguém que pode se vender como uma força que vem de fora do que ele chama de 'casta política'", disse o pesquisador.
Relação com militares
Outro ponto destacado pelos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil é a relação de Milei e Bolsonaro com os militares de seus países.
Apesar de ambos se colocarem como candidatos contrários a ideologias de esquerda, Milei e Bolsonaro adotam posições distintas em relação aos militares, inclusive, em relação à atuação deles durante as ditaduras que comandaram Brasil e Argentina.
Bolsonaro, que se formou na AMAN durante a ditadura militar que comandou o Brasil entre 1964 e 1985, faz constantes defesas do período e chegou a homenagear um coronel acusado de tortura, Carlos Alberto Brilhante Ustra, durante a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef (PT), em 2016.
Em seu governo, vários militares assumiram cargos importantes como o general Walter Braga Netto, que ocupou a chefia da Casa Civil e foi seu candidato a vice-presidente em 2022.
Além dele, outros generais foram alçados a postos-chave como o general Eduardo Pazuello, que comandou o Ministério da Saúde entre 2020 e 2021, período que compreendeu o auge da pandemia de Covid-19.
Milei, por sua vez, adota uma posição mais crítica em relação aos militares e, segundo especialistas, não demonstra uma proximidade significativa em relação a eles.
"Uma grande diferença entre Milei e o Bolsonaro é a relação com os militares. Bolsonaro teve o apoio aberto deles, enquanto Milei não é visto como um candidato dos militares. Milei, por exemplo, jamais disse que haverá participação de militares em seu governo", afirma Rafael Rezende.
O professor de Política da América Latina na Universidade de Buenos Aires Ariel Goldstein explica que essa diferença se dá, possivelmente, por conta da forma como os militares são vistos no Brasil e na Argentina.
"No Brasil, apesar da transição democrática, os militares ainda têm bastante aprovação junto à população. No Brasil, não houve julgamento dos crimes cometidos pelos militares durante a ditadura. Na Argentina houve e há uma rejeição grande em relação a eles no país", diz Goldstein.
Em entrevistas como a que foi dada ao jornal O Globo em 2021, Milei condena a prática de tortura atribuída aos militares durante a ditadura militar que comandou o país entre o 1976 e 1983.
Questionado sobre o assunto, ele condenou a tortura.
"Eu não defendo torturadores. Como liberal acredito no respeito irrestrito do direito de vida de todo ser humano. Estou contra os abusos que foram cometidos pelo Estado, e também contra os atos cometidos pelos terroristas", disse.
Rafael Rezende pontua, no entanto, que apesar de distanciar ativamente dos militares, Milei tem como sua candidata a vice uma política que é vista como representante dos militares na política argentina.
Seu nome é Victoria Villarruel, que é neta de um tenente-coronel do Exército argentino. O pesquisador diz que Villarruel é conhecida por questionar fatos históricos relacionados à ditadura militar argentina.
"Ela costuma colocar em dúvida o número de pessoas mortas pelos militares, numa espécie de questionamento sobre o legado da ditadura no país", explica Rafael Rezende.
Relação com o eleitorado evangélico
Uma outra diferença significativa apontada pelos especialistas entre Milei e Bolsonaro é a forma como eles se relacionam com o eleitorado evangélico.
No Brasil, Bolsonaro se notabilizou por contar com um forte apoio dessa faixa do eleitorado tanto em 2018 quanto em 2022. Ao longo dos últimos anos, ele obteve o apoio explícito das principais lideranças do mundo evangélico como os pastores Silas Malafaia, da Igreja Assembleia de Deus, e André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha.
Milei, segundo os especialistas, não apenas não conta com esse apoio como não se coloca, ainda, como um candidato próximo aos evangélicos.
"O Milei não tem o apoio do evangélico da mesma forma como o Bolsonaro tinha. Ele não tem o apoio de pastores e de suas igrejas como o ex-presidente brasileito teve nas suas duas eleições", disse Ariel Goldstein.
Rafael Rezende explica que uma parte dessa diferença pode se dar pela diferença demográfica entre Brasil e Argentina.
Enquanto no Brasil, pesquisas como o Datafolha indicaram, em 2020, que pelo menos 31% dos brasileiros são evangélicos, na Argentina, os dados indicam um percentual muito menor.
Em janeiro de 2020, uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Investigações Técnicas e Científicas, vinculada ao governo argentino, apontou que o percentual de evangélicos no país era de 15,3%, praticamente a metade do encontrado no Brasil.
"O Milei, em momentos algum, quis fazer esse movimento para se aproximar (do eleitorado evangélico) porque dentro do cálculo eleitoral dele não vale a pena. Na Argentina, há poucos evangélicos e ele percebeu que este não seria um cálculo político positivo", disse Rezende.
Conservadorismo
Na avaliação dos especialistas, a proximidade dos dois com o espectro político conservador também aparece como uma diferença entre Milei e Bolsonaro, apesar de essa percepção ser menos clara que nos demais tópicos.
Bolsonaro, historicamente, se posicionou como um político conservador. Ele faz críticas pautas identitárias como as defendidas pela comunidade LGTBQIA+, diz defender a família tradicional cristã, é contra o aborto e a descriminalização das drogas.
Assim como Bolsonaro, Milei também é crítico à descriminalização do aborto (ocorrida na Argentina em 2020) e à chamada ideologia de gênero. Os dois também defendem mais facilidade para a compra e porte de armas em seus países.
No entanto, Milei já deu diversas declarações afirmando que não se considera um conservador. Em 2016, ao responder a um comentário no Twitter que o classificava como conservador, ele rebateu.
"Desculpe… eu não sou conservador…deveria ser claro ao menos que sou um minarquista", disse. Minarquismo é uma escola filosófica que defende a existência de um Estado mínimo, porém eficiente. Milei também se classifica como um "anarcocapitalista".
A postura de Milei em relação às drogas, pelo menos no discursivo, é diferente da de Bolsonaro. Enquanto o brasileiro se posiciona totalmente contra o consumo de drogas e à descriminalização delas, Milei adota um discurso de maior tolerância em relação ao assunto.
Em uma entrevista ao programa da TV argentina "Dos Voces" (Duas vozes, na tradução pra o português) em 2021, Milei disse que, como libertário, não via problema no consumo de drogas. Segundo ele, a prática só passa a ser um problema porque ela ocorre dentro de uma sociedade em que há Estado.
"Drogar-se é se suicidar em cotas. A mim, não importa. Você faz o que quiser [...] é uma decisão pessoal. Mas isso é no mundo anarcocapitalista. Nesse mundo não tem Estado [...] Quando existe um Estado, aquele se droga passa a conta para mim", ponderou.
Outro ponto de distinção dentro da agenda conservadora é a posição de Milei em relação ao casamento homoafetivo. A argentina foi o primeiro país da América Latina a permitir o casamento homoafetivo, em 2010.
Apesar de Bolsonaro e Milei serem contra serem contra a união homoafetiva Bolsonaro afirma que sua contrariedade se dá porque ela violaria os princípios da família tradicional.
Milei, por sua vez, diz que é contra, mas por não acreditar em qualquer tipo de casamento ou matrimônio. Segundo ele, isso é uma intromissão indevida do Estado na vida privada das pessoas.
"Me parece fabuloso que as relações sejam totalmente livres. Mas para isso é necessário do Estado? [...] Não é com relação ao matrimônio igualitário, mas de todos", disse Milei em entrevista concedida em 2021 a um programa de vídeo do jornal argentino La Nacion.
"Milei jamais se afirma como conservador. Ele se coloca como um ultra-liberal. O Bolsonaro, por outro lado, se afirmava como um conservador nos costumes e liberal na economia. Além disso, Bolsonaro terceirizava o discurso liberal para o seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Milei toma esse discurso pra si", diz Rafael Rezende.
Para Ariel Goldstein, outra diferença importante é o fato de que Milei não se coloca como defensor da família tradicional, como Bolsonaro.
"Esse discurso da família tradicional não está presente em Milei como está em Bolsonaro. Milei faz algumas falas críticas ao feminismo ou educação sexual e reprodutiva, mas sua linguagem é diferente da usada por Bolsonaro", afirma Goldstein.
O professor da Universidade de Buenos Aires tenta sintetizar as diferenças entre Milei e Bolsonaro.
"Enquanto Bolsonaro se apresentava como um representante conservador da família tradicional e tentava o apoio dos mercados com Paulo Guedes, Milei se apresenta, de cara, como um representante dos mercados e que, agora, faz um movimento mais em direção a faixas conservadoras", diz.