A transferência de poder entre o presidente americano Donald Trump, derrotado nas urnas na eleição deste mês, e seu sucessor, o presidente eleito Joe Biden, ainda está em estágios iniciais, mas já vem sendo considerada por muitos comentaristas uma das mais turbulentas em décadas.
Trump se recusa a admitir a derrota no pleito de 3 de novembro, e seu governo ainda não emitiu documentos necessários para autorizar oficialmente a equipe de seu sucessor democrata a avançar com o processo de transição.
Não há qualquer evidência de fraude nesta eleição. Mas Trump disse que vai manter a contestação judicial dos resultados, apesar de não apresentar nenhuma prova de irregularidade.
O período de transição, que vai da eleição até a posse do presidente eleito, em 20 de janeiro, é considerado crucial para o sucesso do novo governo.
Esta fase inclui desde a seleção do gabinete e de altos funcionários da Casa Branca até a obtenção de habilitação de segurança inicial para acessar informações confidenciais. Atrasos podem prejudicar a resposta do novo governo a crises como a pandemia de coronavírus.
As ações de Trump destoam do histórico de transições presidenciais nos Estados Unidos.
"Desde 1896, o candidato perdedor sempre enviou um telegrama, deu um telefonema ou fez um discurso concedendo a vitória", diz à BBC News Brasil o professor de ciência políticas John Vile, da Middle Tennessee State University.
"Mas isso não é exigido por lei, não está na Constituição", ressalta Vile, que é autor do livro Presidential Winners and Losers: Words of Victory and Concession (Vencedores e Perdedores Presidenciais: Palavras de Vitória e de Concessão, em tradução livre).
O próprio Trump, que venceu a eleição de 2016 apesar de não ter obtido a maioria do voto popular e com margem de vantagem menor do que a do atual vitorioso em vários Estados, recebeu acesso total para avançar com sua transição a partir de 9 de novembro daquele ano, o dia seguinte à votação.
Mas a atual transição não é a primeira a ocorrer sem a tranquilidade desejada. Apesar de a transferência de poder pacífica ser uma tradição americana, há vários exemplos históricos de transições difíceis.
"Nenhuma é perfeita. Sempre há algum tipo de atrito", diz à BBC News Brasil o professor de ciências políticas David Clinton, da Universidade Baylor, no Texas, co-autor do livro Presidential Transitions and American Foreign Policy (Transições Presidenciais e Política Externa Americana).
"Particularmente quando o presidente eleito e o presidente de saída são de partidos políticos diferentes", salienta Clinton.
John Adams e Thomas Jefferson
Um dos exemplos mais antigos de uma transição em clima de animosidade é a transferência de poder entre o segundo presidente americano, John Adams, e seu vice-presidente, Thomas Jefferson, em 1801.
Antigos amigos, eles haviam se tornado rivais em meio a diferenças políticas. Adams era do Partido Federalista. Jefferson havia fundado o Partido Democrata-Republicano.
Durante a a eleição de 1800, fizeram uma campanha marcada por insultos de ambos os lados, na qual Adams acabou sendo derrotado em sua tentativa de reeleição.
A posse de Jefferson foi a primeira realizada em Washington, em uma cerimônia acompanhada por mais de mil pessoas. Adams, no entanto, não estava presente. Ele havia deixado a cidade para não ter de acompanhar a posse do rival. Antes de deixar o poder, Adams ainda fez nomeações de última hora de juízes.
"Adams e Jefferson haviam sido grandes amigos durante a Revolução Americana. Mas a eleição foi tão contenciosa que Adams decidiu não ficar para a posse", salienta Vile.
Anos depois, eles retomaram a amizade, em uma troca de correspondência que se estendeu até 4 de julho de 1826, o 50º aniversário da Declaração da Independência, quando ambos morreram com apenas horas de diferença.
John Quincy Adams e Andrew Jackson
O filho de John Adams, John Quincy Adams, foi o sexto presidente americano, de 1825 a 1829. Assim como o pai, ele também foi derrotado na campanha de reeleição e também não participou da cerimônia de posse de seu sucessor, Andrew Jackson, em 1829.
John Quincy Adams e Jackson haviam disputado a presidência em 1824. Naquela eleição, o voto do Colégio Eleitoral acabou dividido entre quatro candidatos, nenhum com a maioria necessária.
Coube então à Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) escolher o novo presidente. Apesar de Jackson ter o maior número de votos do Colégio Eleitoral e do voto popular, a Câmara elegeu Adams.
Para os apoiadores de Jackson, seu candidato havia perdido a Presidência por causa de manobras políticas de Adams.
Quatro anos depois, em 1828, Adams e Jackson voltaram a se enfrentar, em uma campanha que até hoje é considerada uma das mais negativas da história americana, marcada por ataques pessoais de ambos os lados.
A mulher de Jackson, Rachel, que havia sido casada anteriormente, foi acusada pelos adversários do marido de bigamia e adultério. Ela entrou em depressão e morreu em dezembro de 1828, dias após a eleição.
Jackson culpou os adversários pela morte da mulher. "Que Deus todo-poderoso perdoe seus assassinos, como sei que ela os perdoou. Eu nunca poderei", declarou Jackson no funeral.
"Jackson odiava seu antecessor", ressalta Clinton. "Ele achava que os ataques contra sua mulher haviam sido injustos e tinham levado a sua morte. Se isso é verdade ou não, não sabemos. Mas o importante é que Jackson acreditava que era verdade."
"Adams achava que Jackson era um homem rude do interior e ignorante, que era muito influenciado por sua carreira militar e que colocaria instituições americanas em risco", diz Clinton.
Milhares de apoiadores de Jackson, muitos deles agricultores e trabalhadores comuns vindos do interior do país, desembarcaram em Washington para acompanhar a posse, em 4 de março de 1829.
Relatos da época descrevem como, após a cerimônia no Capitólio, uma multidão foi à Casa Branca para festejar e parabenizar o novo presidente, quebrando louças e estragando móveis.
Adams havia deixado a residência na noite anterior, escolhendo não participar da posse do sucessor.
James Buchanan e Abraham Lincoln
A transferência de poder entre o presidente democrata James Buchanan e seu sucessor republicano, Abraham Lincoln, é considerada uma das piores da história americana.
No período entre a eleição de Abraham Lincoln, em 6 de novembro de 1860, e sua posse, em 4 de março de 1861, sete Estados escravocratas sulistas declararam secessão da União, para formar os Estados Confederados da América.
No intervalo entre a eleição do sucessor e sua saída da Casa Branca, Buchanan não agiu para impedir que a Confederação ganhasse força. Poucas semanas depois da posse, começava a Guerra Civil americana.
"Eles tinham ideias muito diferentes sobre como lidar com o início da secessão", afirma Clinton.
"Foi um período de grande tensão, quando muitas pessoas acreditavam que o país estava à beira de uma guerra civil. Havia diferença de partidos (entre os dois líderes), de políticas. Foi uma transição particularmente difícil."
Lincoln foi reeleito em novembro de 1864 e assassinado em abril de 1865, poucas semanas após iniciar seu segundo mandato. Seu vice, Andrew Johnson, assumiu a Presidência. Johnson era extremamente impopular e chegou a sofrer um impeachment, mas foi absolvido no julgamento no Senado.
Seu sucessor, Ulysses Grant, eleito em novembro de 1868, se recusou a sentar ao lado de Johnson na carruagem que o levaria ao Capitólio para tomar posse em março de 1869. Johnson decidiu permanecer na Casa Branca em vez de participar da cerimônia.
Hoover e Roosevelt
Nas últimas semanas, alguns comentaristas têm comparado o atual momento com a transferência de poder entre Herbert Hoover e Franklin Delano Roosevelt, em 1933.
Assim como Trump, Hoover enfrentou uma crise de grandes proporções durante seu governo. Enquanto Trump viu seu mandato abalado pela pandemia de coronavírus, durante o governo de Hoover o país mergulhou na Grande Depressão.
Ambos foram criticados pela maneira como responderam às crises. Trump disse muitas vezes que a pandemia de coronavírus estava chegando ao fim. Hoover também afirmou repetidas vezes que a crise econômica acabaria em breve. Os dois acabaram fracassando em suas tentativas de reeleição.
Em um momento em que os Estados Unidos estavam mergulhados na Grande Depressão, Hoover era extremamente impopular e havia sofrido uma derrota devastadora na eleição de novembro de 1932, quando Roosevelt venceu em 42 dos então 48 Estados americanos.
Na época, a posse do novo presidente só ocorria em 4 de março do ano seguinte, quatro meses depois da eleição. Esse longo período de transição foi marcado por conflito e desavenças públicas entre Hoover e Roosevelt.
Segundo historiadores e relatos da época, a relação entre os dois líderes era marcada por desconfiança e desprezo mútuo.
O presidente derrotado considerava seu sucessor "bem intencionado", mas "ignorante", "mal informado" e "com pouca visão". Também achava que Roosevelt era "louco" por não ouvir o que ele tinha a dizer.
"Hoover era mais conservador que a maioria dos republicanos, e Roosevelt era mais liberal que a maioria dos democratas. Então a divisão ideológica era um pouco maior nesse caso", ressalta Vile.
Ao longo de quatro meses, Hoover tentou inúmeras vezes fazer com que Roosevelt apoiasse publicamente algumas de suas políticas, que iam contra a própria agenda do presidente-eleito, à qual o líder derrotado se opunha.
Roosevelt considerava a insistência de Hoover impertinente. Decepcionado com as recusas de Roosevelt, Hoover tornou públicos telegramas trocados com o sucessor.
Os conflitos persistiram até a véspera da posse. No dia da cerimônia, ambos desfilaram em carro aberto pelas ruas de Washington, até o Capitólio.
Sentados lado a lado no carro, compartilharam um cobertor para se proteger do frio. Mas o silêncio de ambos durante o trajeto demonstrou o desgaste das relações.
Esta foi a última posse realizada em março. Durante o primeiro ano do governo de Roosevelt, foi ratificada a 20ª emenda à Constituição americana, determinando que o mandato de um novo presidente começa em 20 de janeiro, reduzindo assim o período de transição.
Personalidade
Há vários outros exemplos de transições conturbadas. Mas Vile e Clinton ressaltam que, mesmo nesses casos e nos exemplos citados acima, no fim a troca de poder foi bem-sucedida e pacífica.
Muitos lembram que a transição é sempre mais difícil para um presidente que não está deixando a Casa Branca por vontade própria ou por ter cumprido seus dois mandatos, mas sim por ter sido derrotado nas urnas.
Mas Vile lembra que outros presidentes derrotados em eleições, como Gerald Ford, Jimmy Carter e George H. W. Bush, foram bons perdedores.
"Depende da personalidade do indivíduo envolvido", afirma Vile.
O modelo atual, no qual a equipe do presidente eleito recebe financiamento federal, espaço de trabalho e equipamento em prédios do governo e acesso a briefings de inteligência, serviços do governo e treinamento para os novos funcionários, entre outros preparativos, é relativamente recente.
Até os anos 1960, a troca de poder ocorria sem planejamento prévio e dependia da disposição dos governantes. Na eleição de 1952, o presidente Harry Truman deu início à tradição de permitir que os candidatos tivessem acesso a briefings de inteligência. A lei que estabeleceu pela primeira vez mecanismos formais para o processo de transição é de 1963.
"(O objetivo era) fazer com que as relações pessoais entre as duas pessoas envolvidas fossem menos importantes. Criar um conjunto de expectativas e de recursos que todos pudessem utilizar para facilitar a troca de poder", afirma Clinton.
Até 2008, o trabalho só começava a partir da eleição. Foi somente na Presidência de George W. Bush que o planejamento começou a ser antecipado, com contatos entre membros do governo e as equipes dos candidatos de ambos os partidos meses antes da votação.
A troca de comando entre o republicano Bush e o democrata Barack Obama, que assumiu em 2009, é considerada uma das mais bem-sucedidas da história americana.
"O que mais me incomoda em relação ao que o presidente Trump está fazendo agora é que ele parece estar lançando calúnias sobre o processo que o elegeu (há quatro anos) e que reelegeu muitos republicanos (neste ano) tanto na Câmara quanto no Senado", diz Vile.
Mas Vile afirma que as ações de Trump são fruto de sua decepção com a derrota e diz acreditar que isso vai passar.
"Quer Trump conceda formalmente ou não, todos ao seu redor sabem que ele perdeu tanto o voto popular quanto no Colégio Eleitoral, e (sabem que) teremos uma transição."
Clinton ressalta que o longo período entre eleição e posse permite que haja tempo para que disputas, recontagem de votos e ações legais sejam resolvidas.
"Tenho absoluta certeza de que é isso que vai acontecer. E que teremos uma transferência de poder pacífica em 20 de janeiro."