Biden eleito: 'Brasil está mal posicionado politicamente. É triste', diz ex-embaixador dos EUA

Tom Shannon, ex-subsecretário de Estado dos EUA e especialista em América Latina, opina que foi um erro a diplomacia brasileira se basear na relação de proximidade entre Bolsonaro e Trump.

8 nov 2020 - 14h32
(atualizado às 14h49)

A eleição de Joe Biden como novo presidente dos Estados Unidos deixa a relação do Brasil com a maior potência mundial "em posição delicada", nas palavras do ex-embaixador americano em Brasília Thomas Shannon.

Simpatizantes de Biden comemoram resultado neste sábado
Simpatizantes de Biden comemoram resultado neste sábado
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Em entrevista à BBC News Brasil, ele disse que "foi um erro" o presidente Jair Bolsonaro basear a relação bilateral com os Estados Unidos na sua proximidade pessoal com o atual presidente, Donald Trump, derrotado pelo democrata.

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Biden assegurou neste sábado (07/11) sua vitória na Pensilvânia, superando assim os 270 delegados necessários para ser eleito pelo colégio eleitoral. Nos EUA, a eleição para presidente é indireta, feita a partir dos delegados que os candidatos conquistam pela maioria dos votos recebidos em cada Estado.

"O presidente Bolsonaro tem um parceiro estratégico importante (EUA) onde ele está mal posicionado politicamente. É triste, porque as relações entre Brasil e Estados Unidos são importantes demais para o Brasil encontrar-se nessa posição", lamentou Shannon.

Durante a campanha, Biden manifestou preocupação com a preservação da Amazônia e chegou a cogitar retaliações econômicas contra o Brasil se o desmatamento não parar. Segundo o ex-embaixador, o tema ambiental "vai ser bem importante desde o começo da administração de Joe Biden", mas problemas poderão ser evitados "com diplomacia".

"Historicamente, o Brasil e os Estados Unidos desenvolveram um diálogo ambiental positivo e eu acho que isso é possível (hoje), mas muito vai depender do Brasil e a maneira como eles (do governo Bolsonaro) querem apresentar o tema ambiental, a maneira como eles mostram um desejo e uma capacidade de cooperar globalmente, multilateralmente na área de meio ambiente", ressaltou.

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Shannon é considerado uma das maiores autoridades americanas em América Latina: além de embaixador em Brasília de 2010 a 2013, atuou como diplomata na Guatemala e na Venezuela e encerrou sua carreira pública em 2018 como subsecretário de Estado para Assuntos Políticos dos Estados Unidos.

Atualmente, atua como assessor sênior de política externa no escritório de arbitragem internacional Arnold & Porter, em Washington. Um dos clientes da empresa é o autoproclamado presidente venezuelano, Juan Guaidó, motivo pelo qual Shannon não quis comentar sobre a relação entre EUA e Venezuela em um governo Biden.

Tom Shannon, em foto de 2017, como subsecretário de Estado dos EUA; ele foi também embaixador no Brasil e é considerado um dos maiores especialistas americanos em América Latina
Foto: Depto de Estado dos EUA / BBC News Brasil

Confira a seguir a entrevista concedida por telefone na sexta-feira, quando a apuração de votos já indicava alta probabilidade de vitória para Biden.

BBC News Brasil - Quais devem ser as principais mudanças na política externa americana caso Joe Biden seja confirmado como novo presidente dos Estados Unidos?

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Thomas Shannon - O candidato Joe Biden tem muita experiência nos temas globais, desde o seu tempo no Senado (já teve diversos mandatos como senador) e também como vice-presidente (de Barack Obama). Conhece bem o mundo e conhece bem uma política (externa) norte-americana baseada em alianças e parcerias para avançar a segurança e os interesses dos Estados Unidos, mas também os valores e os princípios. Então, eu acho que se pode esperar o intuito de fortalecer o sistema de alianças e parcerias.

Em segundo lugar, vai tentar proteger os interesses norte-americanos não unilateralmente, mas dentro de um sistema multilateral. Vai falar dos valores e dos princípios dos Estados Unidos: democracia, direitos humanos, direitos ambientais e civis, a importância do meio ambiente. E também vai tentar unir as democracias para responder o desafio que representam os governo autoritários.

Eu acho que esses vão ser os temas prioritário do governo do presidente Biden.

BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro manifestou abertamente seu apoio à reeleição de Donald Trump e fez críticas a Joe Biden. Isso cria agora uma dificuldade para a relação com o provável governo Biden ou há espaço para um bom relacionamento entre Brasil e Estados Unidos apesar desse comportamento do presidente brasileiro?

Shannon - Eu entendo que o presidente Bolsonaro desenvolveu uma relação pessoal com o presidente Trump e que essa relação pessoal definiu as relações bilaterais. Mas a realidade é que a relação entre países do tamanho do Brasil e dos Estados Unidos não se pode limitar a relações pessoais entre líderes. Isso é um erro.

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O presidente Bolsonaro tem um parceiro estratégico importante (EUA) onde ele está mal posicionado politicamente. É triste porque as relações entre Brasil e Estados Unidos são importantes demais para o Brasil encontrar-se nessa posição agora.

O importante é que o presidente Biden entende bem a importância do Brasil, conhece bem. Ele é um dos poucos presidentes que vai chegar à Casa Branca reconhecendo a importância do Brasil. Eu acho que estamos em uma posição delicada, que vai depender da diplomacia.

Tom Shannon opina que 'foi um erro' o presidente Bolsonaro basear a relação bilateral na proximidade pessoal com Trump
Foto: Reuters / BBC News Brasil

BBC News Brasil - Para sair dessa posição delicada, seria importante algum movimento do Brasil, como o presidente Bolsonaro parar de criticar Joe Biden ou trocar o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo?

Shannon - O Brasil vai determinar quem representa o país. Nós estamos em uma posição importante para os dois países pensarem bem em seus interesses fundamentais. E, passado isso, tentar construir um diálogo focado nesses interesses. Com esses interesses bem identificados, acho que estaríamos em uma posição onde seria possível avançar a relação.

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BBC News Brasil - No primeiro debate eleitoral com o presidente Trump, Joe Biden sugeriu um fundo internacional de US$ 20 bilhões para preservação da Amazônia e disse que o Brasil poderia sofrer retaliações econômicas se o desmatamento não parar. Caso Biden seja confirmado presidente, o senhor acredita que seu governo será duro na questão ambiental e pode de fato retaliar o país?

Shannon - A preocupação com o meio ambiente é importante para o vice-presidente Biden e também para o Partido Democrata.

E, no Brasil, a Amazônia representa um símbolo importante na luta contra a mudança climática. Historicamente, o Brasil e os Estados Unidos desenvolveram um diálogo ambiental positivo e importante e eu acho que isso é possível (hoje), mas muito vai depender do Brasil e a maneira quecomo eles (do governo Bolsonaro) querem apresentar o tema ambiental, a maneira como eles mostram um desejo e uma capacidade de cooperar globalmente, multilateralmente na área de meio ambiente.

BBC News Brasil - Se Brasil não mostrar essa capacidade, o senhor acha que poderia se chegar a uma situação extrema de alguma retaliação comercial?

Shannon - Eu espero que não chegue a esse ponto, porque somos parceiros econômicos importantes e o propósito da diplomacia é evitar isso.

Então, é melhor trabalhar para evitar chegar ao ponto em que esse tipo de confrontação ocorra.

BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro reclama quando líderes de outros países falam sobre a Amazônia, pois considera um desrespeito à soberania do Brasil. Essas cobranças de políticos americanos e europeus em relação à Amazônia são legítimas?

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Shannon - Para mim, são cobranças fáceis de evitar. Ou seja, com um pouquinho de diplomacia brasileira se pode evitar isso. Então, a melhor recomendação é dialogar e construir os métodos necessários para colaborar e cooperar. Com isso se evita esse tipo de mal entendimento.

BBC News Brasil - Alguns analistas brasileiros de política externa acreditam que o principal objetivo de um governo Joe Biden no Brasil será convencer o governo Bolsonaro a proibir a empresa chinesa Huawei de participar da implementação da tecnologia 5G no país, continuando um esforço do governo Trump nessa área. O senhor acredita que isso será mais importante que a questão ambiental?

Shannon - O tema China vai ser importante e o tema 5G também, porque é a infraestrutura informática. Essa tema não vai desaparecer das relações bilaterais (com a mudança de presidente nos EUA).

Mas, outra vez, a diplomacia pode apresentar o tema de uma maneira mais fácil para procurar uma solução e evitar problemas. Mas, sim, será importante.

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BBC News Brasil - E que tipo de mudança pode haver na diplomacia nesse tema?

Shannon - Não sei porque não estou trabalhando nisso, mas obviamente a preocupação é proteger a informação que passa por essa infraestrutura digital.

Então, se pode encontrar uma maneira de proteger a informação.Talvez essa seria uma maneira de evitar problemas.

Em debate contra Trump, o candidato democrata Joe Biden criticou a política ambiental do Brasil
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Brasil - Se o Brasil aceitar banir a Huawei do 5G, analistas brasileiros acreditam que o governo Joe Biden pode ser mais flexível em outras áreas, como a ambiental. O senhor concorda?

Shannon - Eu entendo o propósito da pergunta, mas o tema ambiental vai ser bem importante desde o princípio, desde o começo da administração de Joe Biden.

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BBC News Brasil - O senhor mencionou que Joe Biden, caso vença a eleição, será um dos presidentes americanos com maior conhecimento do Brasil. O que isso pode significar para a relação entre os dois países? Como Biden deve olhar para o Brasil?

Shannon - Como eu disse antes, ele vai tentar reconstruir as alianças e as parcerias que historicamente definem a política exterior dos Estados Unidos. E a América Latina é uma área importante para nós: economicamente, comercialmente, politicamente, mas também no tema de segurança.

Acho que ele vai procurar uma relação com a região frutífera e positiva. E entende que, durante essa pandemia, com os impacto, as consequências econômicas, que a região precisa de ajuda e solidariedade. Acho que ele vai começar a usar isso para criar um espaço para um diálogo amplo sobre a região.

Importante lembrar que em abril vai ter a Cúpula das Américas. Vai ser um dos primeiros eventos diplomáticos multilaterais que o presidente vai participar e vai ser nos Estados Unidos. Vamos ver se a reunião será presencial (caso a pandemia de coronavírus tenha acabado), oxalá.

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BBC News Brasil - Qual sua avaliação dos dois anos de relação entre Brasil e Estados Unidos com os presidentes Bolsonaro e Trump? O Brasil se beneficiou dessa proximidade, ou não?

Shannon - Eu acho que graças ao trabalho do Departamento de Estado (americano) e do Itamaraty, o Brasil e os Estados Unidos chegaram a alguns acordos e feitos importantes na relação bilateral. Tiraram vantagem da boa relação pessoal e usaram isso para conquistas valiosas. Isso foi positivo.

BBC News Brasil - O presidente Donald Trump teve uma postura muito agressiva contra imigrantes latinos, mas conseguiu um resultado eleitoral melhor do que em 2016 entre esse grupo na Flórida. O que explica isso?

Shannon - É importante lembrar que a comunidade latina aqui nos Estados Unidos é muito diversa.

Há uma grande diferença entre os americanos de descendência latina em Los Angeles (na Califórnia, um Estado que vota majoritariamente no Partido Democrata) e os cubano-americanos na Flórida, ou venezuelanos-americanos, colombianos-americanos. Ou os centro-americanos (imigrantes da América Central) que moram aqui perto de Washington. Eles têm diferentes trajetórias nos Estados Unidos, diferentes experiências e vêm de situações diferentes também.

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Na Flórida, muitas famílias latinas são famílias de pessoas exiladas ou refugiadas que fugiram de governos autoritários e de situações de abuso contra direitos humanos. Então, elas têm uma visão de mundo bem diferente de uma família de três ou quatro gerações (já nascidas nos EUA) que moram em Los Angeles e têm suas raízes no México, mas uma vida mais estabelecida nos Estados Unidos. É um erro tentar entender os latino-americanos nos Estados Unidos como um só grupo de pessoas.

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