Com a confirmação da vitória do democrata Joe Biden na eleição de 3 de novembro, Donald Trump entrou para o seleto grupo de presidentes americanos que concorreram a um segundo mandato mas foram rejeitados nas urnas.
Em uma campanha dominada pela pandemia de coronavírus, o presidente republicano ignorou críticas e apelos para que tentasse ampliar a base de apoio e dobrou sua aposta populista.
Em comícios realizados nas semanas finais da corrida eleitoral, apesar de os Estados Unidos registrarem recordes diários no número de casos de covid-19, Trump manteve o discurso de que a pandemia estava chegando ao fim.
Nesses eventos, entre multidões de apoiadores, muitos seguiam o exemplo do presidente e ignoravam as recomendações de especialistas médicos para que usassem máscaras e mantivessem distanciamento social.
Ao longo da pandemia, Trump desprezou as orientações de cientistas e das agências de seu próprio governo em relação ao coronavírus, ridicularizou o adversário, Biden, por usar máscara e evitar grandes comícios, e criticou a obsessão da imprensa "fake news" com a covid-19.
Diagnosticado com a doença em outubro, o presidente, de 74 anos, foi hospitalizado e submetido a um tratamento de ponta ao qual nenhum outro americano teria acesso. Recuperado, retomou a agenda de campanha e passou a ressaltar que as pessoas não deveriam deixar o medo do coronavírus dominar suas vidas.
Mas os Estados Unidos continuaram liderando o ranking mundial da pandemia, com mais de 9 milhões de casos confirmados e mais de 235 mil mortes até o fim de semana anterior à eleição e uma crise econômica que deixou milhões sem emprego e em dificuldades financeiras.
"Os eleitores costumam punir um presidente em busca de reeleição quando as coisas não estão boas para eles. E as coisas não estão boas com o coronavírus", diz à BBC News Brasil o cientista político Hans Noel, professor da Universidade Georgetown, em Washington.
Desde 1920, somente outros quatro presidentes americanos fracassaram em suas campanhas de reeleição: Herbert Hoover, Gerald Ford, Jimmy Carter e George H. W. Bush.
Celebridade
"Uma campanha de reeleição para presidente é sempre um referendo sobre o seu desempenho, se as pessoas estão contentes ou não com sua liderança", diz diz à BBC News Brasil o cientista político Todd Belt, professor da George Washington University, em Washington.
"O que nós tivemos (nos quatro anos de governo Trump) foi essa personalidade como presidente, em vez de um político real. Trump é uma personalidade exuberante. (A eleição) é um tipo de referendo sobre isso", observa Belt, ao ressaltar que o resultado nas urnas diz mais a respeito de Trump do que de Biden.
Donald John Trump nasceu no bairro do Queens, em Nova York, o segundo mais novo entre os cinco filhos de Frederick Christ Trump, dono de uma empresa de construção civil, e Mary Anne MacLeod, dona de casa nascida na Escócia.
No início da década de 1970, depois de se formar na Universidade da Pensilvânia, Trump assumiu o controle da empresa do pai, que viria a se transformar na Trump Organization. Ele expandiu o conglomerado imobiliário para incluir hotéis, arranha-céus, cassinos, empresas aéreas e campos de golfe. Também alcançou sucesso como celebridade televisiva, à frente do reality show The Apprentice (O Aprendiz)
Em 2015, quando anunciou sua pré-candidatura à eleição presidencial do ano seguinte, foi recebido com desprezo e tratado como curiosidade pela imprensa e por políticos tradicionais. Mas acabou derrotando os outros 16 pré-candidatos republicanos e conquistando a nomeação do partido.
Em um país profundamente dividido e polarizado, Trump ganhou seguidores fiéis entre parte do eleitorado, com seu estilo de campanha agressivo e fora do convencional, criticando o "politicamente correto" e as elites (apesar de ele próprio se apresentar como bilionário) e prometendo combater a imigração ilegal e colocar os Estados Unidos "em primeiro lugar".
Apesar de estar no terceiro casamento, com Melania Trump, depois de dois divórcios e de acusações de casos extraconjugais e assédio sexual, Trump conquistou forte apoio entre o eleitorado branco evangélico, atraído por sua promessa de nomear para a Suprema Corte juízes conservadores, que se opusessem ao aborto.
Na eleição geral de novembro de 2016, chocou o mundo com sua vitória sobre a democrata Hillary Clinton, que era favorita nas pesquisas e venceu a maioria do voto popular, mas ficou atrás de Trump nos votos do Colégio Eleitoral (que elegem o presidente de forma indireta).
Fórmula
Diante do sucesso surpreendente de quatro anos atrás, Trump repetiu a fórmula na atual campanha.
"Ele não mudou praticamente nada", diz à BBC News Brasil o ex-embaixador Melvyn Levitsky, que serviu no Brasil de 1994 a 1998 e atualmente é professor de política internacional na Universidade de Michigan.
"Sua estratégia continuou sendo a de apelar para sua base eleitoral em vez de tentar ampliar o apoio, apostando que sua base iria comparecer às urnas em grandes números", observa Levitsky.
Assim como na eleição anterior, neste ano o presidente aparecia em desvantagem nas pesquisas de intenção de voto, que mostravam Biden como favorito. Mas, se no pleito de 2016 Trump contrariou as projeções e saiu vitorioso, desta vez sua base de apoiadores não foi o suficiente para evitar uma derrota.
"A principal diferença (entre a campanha de 2016 e a atual) é que Donald Trump é o presidente, o que sempre é mais difícil. É fácil ser um outsider e criticar o governo. É mais difícil ter de defender o que você fez pelo país", afirma Belt, da George Washington University.
Durante seus quatro anos na Casa Branca, o 45º presidente americano pouco se esforçou para conquistar os americanos que não haviam votado nele e reunificar a nação dividida. Ao longo de seu governo, Trump também acabou perdendo o apoio de alguns de seus eleitores, decepcionados com seu desempenho.
"Sua popularidade é muito baixa em comparação à maioria dos presidentes que buscaram reeleição. Ele não ganhou o voto popular inicialmente (no pleito de 2016) e não fez muito para ganhar (esses eleitores posteriormente)", salienta Noel, da Universidade de Georgetown.
Protocolos e polêmicas
Presidente mais velho a tomar posse nos Estados Unidos, em janeiro de 2017, e o primeiro a chegar à Casa Branca sem nunca ter ocupado outro cargo eletivo ou ter servido nas Forças Armadas, Trump não mudou seu tom ao assumir o cargo.
Ele moldou a Presidência à sua imagem, quebrando protocolos, tomando decisões que ignoravam recomendações de sua equipe e, segundo críticos, muitas vezes misturando interesses públicos e privados.
A filha mais velha, Ivanka, e o genro, Jared Kushner, assumiram posição de destaque na Casa Branca como conselheiros. Trump tem ainda dois outros filhos do primeiro casamento, Donald Jr. e Eric, uma filha do segundo casamento, Tiffany, e um filho com Melania, Barron.
Com quase 90 milhões de seguidores no Twitter, Trump usou as redes sociais como forma de se comunicar diretamente com seus eleitores e, muitas vezes, ameaçar inimigos e até mesmo aliados. Seus quatro anos de governo foram marcados por extrema polarização e protestos.
"O país ficou mais dividido e isso ficou mais focado em Trump. Ele se tornou alguém que você ou ama ou odeia", ressalta Belt.
Muitas de suas medidas geraram polêmica, como a proibição da entrada de imigrantes de alguns países muçulmanos e a separação de famílias que tentavam ingressar no país pela fronteira com o México. Até hoje, calcula-se que os pais de mais de 500 crianças imigrantes separadas de suas famílias ainda não tenham sido encontrados.
A promessa de construir um muro na fronteira para impedir a entrada de imigrantes ilegais - e fazer com que o México pagasse a conta - mobilizou grande parte de sua base eleitoral na primeira campanha. Cerca de 600 km foram construídos, a maior parte substituindo ou reforçando estrutura já existente e paga pelos contribuintes americanos.
Durante seu mandato, Trump endureceu não apenas medidas de combate à imigração ilegal, mas também adotou medidas para dificultar a entrada de refugiados e até de imigrantes legais.
Política externa
Na política externa, Trump afastou, criticou e insultou aliados tradicionais e se aproximou de inimigos históricos. Em 2019, tornou-se o primeiro presidente americano a visitar a Coreia do Norte durante o mandato.
Trump abandonou o acordo nuclear com o Irã, sob protestos dos outros signatários (Alemanha, China, França, Reino Unido e Rússia), e anunciou que os Estados Unidos se retirariam do acordo do clima de Paris, assinado por 195 países.
Em meio ao agravamento da pandemia, disse que os Estados Unidos iriam se retirar da Organização Mundial da Saúde (OMS), criticada por ele por não ter independência em relação à China.
"Ele enfraqueceu o relacionamento dos Estados Unidos com nossos aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Também foi mais obsequioso com ditadores e (líderes) autoritários ao redor do mundo", afirma Belt.
Para especialistas em política nacional, a postura isolacionista de Trump abalou a imagem internacional dos Estados Unidos.
"Não é o mesmo mundo que era antes de Trump chegar", afirma Levitsky. "É uma reviravolta em termos da nossa imagem no mundo. Mas, mais do que isso, tem a ver com (perda de) credibilidade."
Promessas e Suprema Corte
Mas muitas das medidas implementadas por Trump agradaram seus apoiadores, com destaque para a promessa cumprida de colocar juízes conservadores na Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça americana.
O presidente nomeou três juízes para o tribunal, consolidando a supermaioria de seis juízes conservadores e apenas três liberais, cujo impacto será sentido por décadas em decisões futuras sobre temas como acesso a saúde pública, aborto, liberdade religiosa, direitos LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e queer) e regulações ambientais.
Também nomeou mais de 200 juízes para instâncias inferiores, como os tribunais de apelação. No primeiro ano de governo, cumpriu a promessa de cortar impostos, medida elogiada por seus apoiadores mas criticada por outros por ser menor do que o prometido na campanha.
Trump também renegociou acordos comerciais, impôs tarifas sobre importações e travou uma guerra comercial com a China. Não cumpriu a meta de um acordo de paz entre Israel e palestinos, mas facilitou acordos de normalização das relações entre Israel e Emirados Árabes, Bahrein e Sudão.
Durante seu governo, Trump relaxou regulações, principalmente ambientais, e buscou desfazer várias das medidas implementadas por seu antecessor, Barack Obama. No entanto, não conseguiu acabar com o Affordable Care Act (ACA), a reforma da saúde sancionada em 2010 e apelidada de "Obamacare".
Trump foi eleito em 2016 apostando na imagem de bilionário bem-sucedido. Mas, contrariando a tradição respeitada por governantes anteriores, recusou-se a divulgar suas declarações de imposto de renda.
A primeira metade de seu mandato foi marcada por investigações sobre possível interferência russa nas eleições de 2016 para ajudar sua campanha. No final, não houve evidências que comprovassem uma conspiração.
No fim de 2019, Trump se tornou o terceiro presidente americano a sofrer impeachment, acusado de ter pressionado o governo da Ucrânia a investigar Joe Biden e seu filho, Hunter Biden, e de ter tentado atrapalhar a apuração do caso.
Mas o presidente foi absolvido das acusações de abuso de poder e obstrução do Congresso no julgamento no Senado, controlado pelo Partido Republicano.
Economia e protestos
Trump entrou na disputa pela reeleição embalado pela absolvição no processo de impeachment e pelo bom desempenho econômico. Mas o coronavírus devastou a economia americana, e analistas dizem que a recuperação deve ser lenta.
A pandemia também chamou a atenção para as desigualdades raciais no país, com impacto negativo desproporcional sobre a população negra e latina. Em maio, a morte de George Floyd, um homem negro morto sob custódia de um policial branco, desencadeou uma onda nacional de protestos contra o racismo e a brutalidade policial.
O presidente respondeu ao movimento com força, criticando os manifestantes e redobrando sua mensagem de defesa da lei e ordem.
Ao longo da campanha, Trump semeou dúvidas sobre o processo eleitoral, questionando os votos pelo correio, apesar de não haver evidências de esse tipo de votação facilite fraudes.
Segundo críticos, era uma tentativa de limitar o volume de votos para o adversário, já que, conforme pesquisas, democratas são mais propensos a votar antecipadamente do que republicanos.
Partido Republicano
Inicialmente rejeitado por políticos tradicionais do Partido Republicano, que questionavam sua capacidade para o cargo, Trump deixará como legado um partido transformado.
"O Partido Republicano foi dominado por Donald Trump. Os republicanos na Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) e no Senado sabem que seu futuro está ligado ao dele", diz Belt.
Enquanto, ao longo dos últimos quatro anos, muitos dos que se opuseram a ele acabaram punidos pelos eleitores, outros tentaram copiar seu estilo em busca de sucesso nas urnas.
Segundo Belt, além da busca por reeleição, muitos dos republicanos que mudaram de posição e passaram a apoiar Trump foram motivados por medo de que o presidente mobilizasse seu exército de apoiadores nas redes sociais contra eles.
"Trump se transformou em um tipo de porta-voz do Partido Republicano. Muitas pessoas são atraídas por sua personalidade, porque ele diz e faz coisas que são diferentes, não são o que políticos comuns fazem", ressalta Belt.
"Foi isso o que o ajudou a dominar o Partido Republicano, a força de sua personalidade."