Nem todo mundo que nascer nos Estados Unidos terá direito à cidadania norte-americana. É o que diz uma das ordens executivas, decretos com força de lei e de aplicação imediata, assinadas por Donald Trump quando empossado presidente. A ordem é de que esse “privilégio” seja barrado para filhos de imigrantes ilegais e até pessoas em situação legal, mas com permanência temporária, como visitantes com visto de estudante, trabalho ou turismo. No entanto, a canetada do republicano não tem caminho livre para se concretizar e, segundo avaliam especialistas ouvidos pelo Terra, essa questão pode gerar a primeira crise do governo trumpista.
Receba as principais notícias direto no WhatsApp! Inscreva-se no canal do Terra
Na terça-feira, 21, procuradores-gerais de 18 estados americanos entraram na Justiça contra o decreto de Trump, contestando que esse é um direito garantido na Constituição. “Significa que existirá resistência, que não é que o Trump vai aprovar tudo na canetada”, pontua Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ele avalia que pode haver uma longa batalha jurídica em torno desse assunto, e que o sucesso dessa ordem executiva, sua validação e realização está ainda longe de ser certo.
Mesmo assim, a repressão à imigração irregular já está acontecendo, pontua Roberto Uebel, professor de Relações Internacionais e Coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Americanos da ESPM. Ele cita a derrubada minutos após a posse do aplicativo CBP One, marca do governo do democrata Joe Biden, que tinha a intenção de facilitar o processo imigratório legal. Pelo sistema, solicitantes de refúgio agendavam entrevistas com autoridades migratórias dos Estados Unidos.
Além disso, também já foi declarada emergência de segurança nacional na fronteira sul e, na tarde de terça, os agentes da Imigração e Fiscalização Aduaneira dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês) passaram a ter autorização para realizar operações --incluindo prisões-- em igrejas, escolas e outros locais antes considerados protegidos. Desde 2011, as ações eram limitadas em “áreas sensíveis”.
Com relação ao decreto que quer acabar com a concessão automática de cidadania para imigrantes com visto temporário ou ilegais, Rodrigo Amaral diz que a grande inquietação é como a sociedade norte-americana reagirá a esse tipo de decisão. “Porque muitos dos antepassados, inclusive os próprios antepassados de Trump, migraram para os Estados Unidos. Estados Unidos é um país formado por imigrantes. Muitos dos quais migraram para uma situação irregular tiveram seus filhos e seus filhos foram regularizados pela lei norte-americana”, relembra.
O que, exatamente, diz a medida?
No documento assinado por Trump na segunda-feira, dia 20, após sua posse, é descrito que “o privilégio da cidadania dos Estados Unidos é um presente inestimável e profundo” e que esse “privilégio não se estende automaticamente a pessoas nascidas nos Estados Unidos".
Com isso, passa a ser considerado como política que não sejam emitidos documentos reconhecendo a cidadania norte-americana para pessoas:
- Quando a mãe dessa pessoa estava ilegalmente presente nos Estados Unidos e o pai não era cidadão dos Estados Unidos ou residente permanente legal no momento do nascimento da pessoa;
- Quando a presença da mãe dessa pessoa nos Estados Unidos no momento do nascimento da pessoa era legal, mas temporária (como visitantes com visto de estudante, trabalho ou turista) e o pai não era cidadão dos Estados Unidos ou residente permanente legal no momento do nascimento da pessoa.
Com relação ao andamento da medida, é indicado que ela passe a valer 30 dias após a data da ordem, ou seja, dia 19 de fevereiro. O documento cita, também, que os chefes de todos os departamentos e agências executivas deverão emitir orientações públicas dentro do mesmo prazo.
‘Vulnerabilidade extrema’
O discurso de Trump é de deportação em massa --e suas primeiras ações como presidente reafirmam sua posição anti-imigação. Ao Terra, Arthur Murta, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, alerta que estudos indicam que quando o país não garante mecanismos legais ou nenhuma previsibilidade normativa para que o imigrante consiga estar em situação regular, ele é mais explorado, vai para o que chamou de “sub do sub emprego” e vai sentir não ter direitos naquele país, “porque, de fato, não vai ter”.
“Todas as políticas que o Trump está fazendo, inclusive essa mudança na legislação, vai fazer apenas com que os imigrantes em situação irregular estejam numa situação de maior vulnerabilidade, uma situação de vulnerabilidade extrema. E essa situação de vulnerabilidade extrema não vai fazer com que esse imigrante necessariamente vá embora, vai fazer com que esse imigrante seja explorado. Então com certeza existem negócios que dependem disso”, frisa Arthur Murta.
Além disso, sobre a questão do fim da concessão automática da cidadania para todos nascidos nos Estados Unidos, ainda não há muitos detalhes sobre o que pode vir a acontecer, exatamente, com esses futuros bebês que podem ter o direito barrado. Arthur explica que esse cenário abre espaço para o surgimento de pessoas apátridas, sem nação, sem documentos.
“O que seria também um problema global. A gente está aí numa luta há décadas, o Acnur [Agência da ONU para Refugiados] e outras agências da ONU em fazer com que a apatridia deixe de existir, porque é um absurdo que as pessoas não possam acessar o básico do básico simplesmente porque nenhum país emite documento para elas”, pontua.