Lei que prevê segregação de gays gera onda de protestos

Lei permite que comerciantes e prestadores de serviços se recusem a atender clientes gays por "liberdade religiosa"

31 mar 2015 - 06h56
(atualizado às 19h46)
Estado de Indiana não teria legislação apropriada para impedir discriminação contra homossexuais
Estado de Indiana não teria legislação apropriada para impedir discriminação contra homossexuais
Foto: Reuters

A aprovação de uma lei no Estado americano de Indiana que pode abrir espaço para discriminação de gays vem provocando uma onda de boicotes e protestos em todo o país, ampliando o debate sobre "liberdade religiosa" e direitos civis.

A lei, denominada Religious Freedom Restoration Act (Lei de Restauração da Liberdade Religiosa, ou RFRA na sigla em inglês), foi assinada na semana passada pelo governador republicano Mike Pence.

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Ela estabelece que o governo e leis estaduais não podem restringir de forma substancial a capacidade de pessoas, empresas, associações ou instituições de seguirem suas crenças religiosas.

Segundo críticos, a lei permite que comerciantes e prestadores de serviços se recusem a atender clientes gays. Um proprietário de buffet, por exemplo, poderia se negar a fornecer serviços a um casamento gay alegando que a união entre pessoas do mesmo sexo fere sua crença religiosa.

"(A RFRA) pode permitir que pessoas manifestem objeção religiosa a leis contra discriminação", disse à BBC Brasil a especialista em legislação sobre liberdade religiosa Eunice Rho, da organização de defesa dos direitos civis União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês).

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"Em Indiana, por exemplo, a cidade de Indianápolis oferece proteção à comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) em termos de moradia e emprego. Alguém que não queira atender essa comunidade poderia usar a RFRA e dizer que sua religião permite que não siga essas leis (contra discriminação)", afirma Rho.

Protestos

Apesar de a lei só entrar em vigor em julho, sua aprovação provocou reação imediata de líderes empresariais, atletas e celebridades.

No fim de semana, milhares protestaram contra a lei na capital do Estado, Indianápolis. Opositores da legislação iniciaram uma campanha para que empresas boicotem eventos em Indiana.

Em artigo no jornal The Washington Post, o CEO da Apple, Tim Cook, um dos principais executivos abertamente gays, disse que "há algo muito perigoso ocorrendo em Estados pelo país", referindo-se à lei de Indiana e outras similares.

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"A comunidade empresarial dos EUA reconheceu há muito tempo que discriminação, em todas as suas formas, é ruim para os negócios", diz Cook. "Em nome da Apple, eu me oponho a essa nova onda de leis, onde quer que emerjam. Escrevo na esperança de que muitos outros se unam a esse movimento."

Jeremy Stoppelman, da empresa de tecnologia Yelp, disse em carta aberta que essas leis criam um "terrível precedente que deverá prejudicar a saúde econômica dos Estados onde forem adotadas".

O Estado de Connecticut e a cidade de Seattle anunciaram que irão barrar viagens de negócios de funcionários públicos financiadas pelo governo a Indiana.

No Twitter, celebridades como Miley Cyrus e o ator Ashton Kutcher entraram na campanha pelo boicote a Indiana.

A National Collegiate Athletic Association (Associação Atlética Universitária Nacional, ou NCAA, na sigla em inglês), com sede em Indianápolis, onde ocorrem nesta semana as finais de seu torneio de basquete, manifestou preocupação de que a lei possa afetar seus atletas, estudantes, funcionários e eventos.

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Casamento gay

Acuado diante de tantos protestos, o governador Mike Pence disse que a lei está sendo mal compreendida. Ele negou que ela seja discriminatória e afirmou que irá conversar com líderes empresariais para explicar sua posição. Mas disse que não cogita mudar a lei.

Em meio a pedidos de democratas para que a lei seja anulada, legisladores republicanos no Estado afirmaram que estão avaliando como tornar a lei mais clara, assegurando que não permita discriminação contra homossexuais.

Pence diz que o objetivo da legislação é proteger igrejas, indivíduos e empresas cristãos e evitar que sejam "punidos por suas crenças bíblicas".

A lei é baseada em uma RFRA federal de 1993. Outros 19 Estados americanos têm RFRAs. Pelo menos outros três – Arkansas, Carolina do Norte e Geórgia – discutem a adoção de leis semelhantes.

Apesar de nem todas as RFRAs terem relação com discriminação contra homossexuais, analistas afirmam que legislações recentes foram aprovadas na esteira da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em diversos Estados americanos.

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"É importante lembrar que essa lei tem motivação política. Indiana já protege as liberdades religiosas, há uma cláusula na Constituição do Estado que protege o livre exercício de religião", disse à BBC Brasil o especialista em lei e religião Robert Katz, professor de Direito da Universidade de Indiana.

"O real objetivo dessa lei é fornecer consolo a conservadores religiosos que estão descontentes com a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em Indiana", observa Katz.

No ano passado, a proibição de casamento gay em Indiana foi derrubada por tribunais federais.

Lei contra discriminação

Segundo críticos, o que diferencia a lei de Indiana de outras RFRAs é o fato de não haver uma lei estadual que proíba a discriminação contra homossexuais, como há em outros Estados. Existem apenas leis locais em determinadas cidades, como Indianápolis.

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Em outros Estados, casos em que comerciantes e prestadores de serviços se recusaram a atender clientes gays alegando conflitos religiosos acabaram na Justiça, com base em leis estaduais contra a discriminação de homossexuais.

"O real problema não é a RFRA, mas sim o fato de que a lei estadual não garante proteção à comunidade LGBT contra discriminação", disse à BBC Brasil a especialista Robin Fretwell Wilson, professora de Direito da Universidade de Illinois e co-autora do livro Same-Sex Marriage and Religious Liberty ("Casamento Entre Pessoas do Mesmo Sexo e Liberdade Religiosa", em tradução livre).

"Em Illinois, por exemplo, onde leciono, há proteção estadual contra discriminação e há uma RFRA, e as duas não se chocam, a RFRA não foi usada para reverter a proteção estadual."

Para o especialista em liberdade religiosa Richard Garnett, professor de Direito da Universidade de Notre Dame, em Indiana, os críticos da RFRA ignoram como essas leis são aplicadas na prática e pelos tribunais.

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"A lei não é uma 'licença' para discriminar", disse Garnett à BBC Brasil. "Não há evidência nos mais de 20 anos em que leis do tipo RFRA existem, em diversos Estados e em nível federal, de que tenham sido usadas com sucesso para permitir discriminação ilegal."

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Campanha presidencial

Segundo alguns observadores, a controvérsia provocada pela lei em Indiana mostra como público e empresários americanos estão cada vez menos tolerantes com medidas que ameaçam os direitos dos homossexuais.

"Acho que a maioria do país está aceitando e apoiando a igualdade de direitos de casamento por pessoas do mesmo sexo, o que certamente não ocorria no passado", diz Rho, da ACLU.

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Em um momento em que vários políticos se preparam para anunciar suas candidaturas à Casa Branca nas eleições do próximo ano, a polêmica pode respingar na corrida presidencial.

Hillary Clinton, provável candidata e favorita entre os democratas, publicou em sua conta no Twitter que é "triste que essa nova lei de Indiana possa acontecer nos EUA de hoje" e que "não devemos discriminar pessoas por causa de quem amam".

Do lado republicano, muitos prováveis presidenciáveis tentam se equilibrar entre a ala conservadora, que tem empurrado o partido cada vez mais para a direita, e o eleitorado geral e as lideranças empresariais, mais tolerantes. Em declarações recentes, vários republicanos disseram apoiar a liberdade religiosa, mas serem contrários à discriminação.

Uma pesquisa divulgada na última sexta-feira pelo instituto de pesquisas Public Religion Research Insitute, com sede em Washington, indica que a maioria dos jovens americanos entre 18 e 34 anos acreditam que sexo entre pessoas do mesmo gênero é mais aceitável que sexo casual.

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Katz ressalta que há um consenso crescente nos EUA de que homossexualidade "não é escolha ou estilo de vida, e sim algo com que as pessoas nascem".

"E parece que o ideal de igualdade de cidadania está ficando ligado ao sucesso econômico", observa.

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