"Estamos muito pior do que pensam lá fora": o lado sombrio do Uruguai, o país mais desenvolvido da América Latina

O Uruguai geralmente se destaca na região por seus resultados no desenvolvimento humano e na democracia, por exemplo. Mas o país também tem problemas específicos, alguns dos quais estão em discussão nessas eleições presidenciais de 27 de outubro.

27 out 2019 - 13h09
(atualizado às 20h20)
No Uruguai, existem problemas que vão além de uma cultura de nostalgia no país
No Uruguai, existem problemas que vão além de uma cultura de nostalgia no país
Foto: AFP / BBC News Brasil

Há uma distorção, uma discrepância.

O Uruguai aparece como um dos melhores países das Américas em estudos que levam em consideração qualidade de vida, igualdade e democracia.

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Mas localmente, o Uruguai não parece muito feliz.

Em termos econômicos, por exemplo, os uruguaios costumam responder a pesquisas com pessimismo e angústia, apesar de terem a maior renda por pessoa na região há 7 anos, uma taxa de pobreza de países europeus e a economia crescendo constantemente nos últimos 16 anos, o melhor registro de sua história moderna.

Em meio às crises políticas que eclodiram na América Latina nas últimas semanas, a natureza excepcional do Uruguai parece ainda mais evidente.

Mas não é isso que costumam pensar os uruguaios.

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Uma explicação que se costuma citar é que os uruguaios têm o hábito de menosprezar o que é seu e projetar um perfil discreto.

Mas existe outra segundo a qual existem problemas concretos e sérios no Uruguai, em comparação com seu próprio passado ou mesmo em termos regionais.

"As coisas parecem diferentes quando vistas de perto", diz Juan Grompone, engenheiro e escritor uruguaio.

Durante a campanha presidencial para as eleições de 27 de outubro, esse lado sombrio do Uruguai entrou em debate.

Não se acredita que tudo seja culpa da Frente Amplio, a coalizão que está no poder há 15 anos, mas que "quem vencer terá o desafio de não deixar o país ficar para trás em relação aos demais do mundo", segundo o filósofo e jornalista Facundo Ponce de León.

Após 15 anos de governos de esquerda, pela primeira vez a Frente Amplio poderia perder a presidência ou a maioria parlamentar
Foto: AFP / BBC News Brasil

"Certamente somos piores do que vocês pensam lá fora", acrescenta o cientista político Adolfo Garcé.

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"Quer dizer, em termos gerais, estamos bem, mas o Uruguai está bem porque é um país crítico, porque o inconformismo é uma tradição. E não podemos ficar satisfeitos com a situação de segurança, educação e trabalho."

A esses três aspectos, especialistas acrescentam outros, como a alta taxa de suicídios e o aumento do narcotráfico, que fazem parte daquele outro Uruguai que não consta do primeiro parágrafo da página da Wikipedia no país.

Velhos e crianças, vulneráveis

O Uruguai tem a segunda maior taxa de suicídio na América Latina depois da Guiana, segundo a Organização Mundial da Saúde.

Com 20,25 mortes por 100.000 habitantes em 2018, um aumento de 3% em relação a 2017, esse número é o dobro da média mundial.

Para uma pergunta tão complexa quanto a razão pela qual tantos uruguaios cometem suicídio, existem várias respostas que combinam fatores sociais, familiares e pessoais, mas um fato repetido por especialistas é que os principais grupos de risco são idosos e adolescentes.

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A expectativa de vida ao nascer no Uruguai é de 77, uma das mais altas da América Latina e do Caribe, segundo a Organização Mundial da Saúde
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O Uruguai, com uma expectativa de vida de um país desenvolvido, possui a segunda população mais velha da região, depois de Cuba. Os críticos dizem que os sistemas de acompanhamento público são insuficientes e os incipientes e privados são muito caros.

O fato de 12% dos uruguaios terem mais de 60 anos também implica adaptar o trabalho, a saúde e os sistemas de pensão a uma realidade - envelhecimento da população - que países como o Japão ou a Alemanha não foram capazes de enfrentar.

A outra população em risco de suicídio no Uruguai também faz parte de uma situação social vulnerável: uma em cada cinco crianças nasce na pobreza.

Além disso, estudos locais descobriram que 60% sofrem algum tipo de abuso e as taxas de dislexia, obesidade e déficit de ferro são comparadas às de países três vezes mais pobres, segundo dados do Ministério da Saúde.

"As crianças não têm voz no Uruguai", diz Gonzalo Frasca, pesquisador e renomado designer de videogame com conteúdo político e educacional.

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"Se você não conhece seus desejos e necessidades, se não os ouve, não pode forçá-los a estudar da mesma maneira que não pode forçar alguém a se apaixonar", acrescenta.

As crianças da América Latina nascem em situações complexas e o Uruguai não é exceção
Foto: AFP / BBC News Brasil

Sistema educativo do passado

É difícil estabelecer relações causais, mas o que foi descrito acima é somado ao fato de que o abandono escolar no Uruguai é um dos mais altos da região: apenas 40% dos estudantes que ingressam no ensino médio concluem esse nível.

Desde os anos 50, o sistema educacional mais inclusivo e bem-sucedido da América Latina começou a ficar para trás, dizem os especialistas.

O problema da educação foi tratado com aumentos no orçamento e, por 10 anos, com um esquema para fornecer a cada professor e aluno um computador, o Plano Ceibal.

Mas não basta, de acordo com Frasca: "Estar à frente da educação continental criou um conformismo que eliminou a autocrítica. O Plano Ceibal nos levou de volta à liderança regional inovadora, o que é bom, mas nos deixou tão satisfeitos que esquecemos de lidar com outros problemas educacionais sérios".

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"A ditadura (1973-1985) preocupava-se particularmente com a educação, mas isso gerou um estresse pós-traumático na esquerda e na intelectualidade, que consideravam que a maneira de proteger a educação era por meio da política. E de tanta proteção acabaram por sufocá-la", explica o acadêmico.

Por ter sido tão boa, paradoxalmente, a educação no Uruguai hoje é a mesma da primeira metade do século e sua modificação implica processos políticos complexos, burocráticos e políticos longos, concordam os analistas.

Além de fornecer computadores para crianças em idade escolar através do Plano Ceibal, o Estado uruguaio concede tablets a adultos mais velhos
Foto: AFP / BBC News Brasil

O desafio de superar a exportação

Segundo dados oficiais de 2018, cerca de 3,5 milhões de pessoas vivem no Uruguai, enquanto cerca de 500.000 uruguaios vivem no exterior.

A fuga de cérebros é outro problema para a educação, porque a capacidade de ensino e pesquisa é perdida.

Mas isso também tem impacto no emprego, porque dificulta a modernização do sistema de produção em um país com uma tradição de exportação de carne e produtos agrícolas ameaçada pela automação.

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O Instituto Nacional de Estatística informou que o desemprego no ano passado foi de 9,8%, a taxa mais alta desde 2007 e, segundo o Banco Mundial, uma das mais altas da América Latina.

"Desde 2014, vimos uma desaceleração da economia, que cresceu, mas houve setores que entraram em recessão, como construção e partes de indústrias", diz Laura Raffo, economista e consultora.

"Nesse cenário, muitos empreendedores reduziram a disposição de contratar", acrescenta.

Embora tenha se diversificado, a economia uruguaia ainda é muito dependente das exportações
Foto: AFP / BBC News Brasil

Embora a economia uruguaia tenha se diversificado nos últimos 15 anos, ainda é muito dependente dos preços internacionais de matérias-primas. Uma preocupação comum entre especialistas e candidatos à presidência é que o país fique para trás do resto mundo.

"Ninguém diria que no Uruguai não precisamos de um treinamento melhor, especialmente técnico e digital, para preparar a mão de obra para o mundo no qual todas as empresas estão entrando no mercado de trabalho", conclui Raffo.

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Insegurança

A calma que destacou o Uruguai nos últimos 30 anos parece ter sido interrompida na última década.

Somente em 2018, os homicídios aumentaram 45%, os roubos com violência 53% e os sem violência, 23% em relação ao ano anterior, segundo o Ministério do Interior.

Embora os números permaneçam proporcionalmente baixos em comparação com o resto da América Latina, a mudança modificou a qualidade de vida de muitos, que - sobrecarregados por histórias de insegurança em conversas, redes sociais e mídia - colocam grades, cercas elétricas e alarmes em suas casas.

São histórias que os uruguaios não estavam acostumados a ouvir, nem era comuns as notícias reportarem a apreensão de centenas ou milhares de toneladas de cocaína, como é o caso agora.

Nos últimos anos, foi revelado que o Uruguai é um porto de saída para drogas produzidas na Colômbia, Peru e Bolívia, fenômeno que, para alguns especialistas, explica o aumento da criminalidade no país.

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"Por fora, ainda existe uma imagem ligeiramente idílica de um país das maravilhas", diz Ponce de León. A realidade é mais complexa
Foto: AFP / BBC News Brasil

Recuperar o que foi perdido

E então o que tudo isso significa? Que você não pode ir, viver, ficar calmo no Uruguai?

Não. O Uruguai continua sendo um dos países mais seguros, prósperos e iguais da América Latina.

"No exterior ainda existe uma imagem levemente idílica de um país das maravilhas. É verdade que se nos compararmos com o Brasil e a Argentina, há uma estabilidade institucional e econômica aqui", diz Ponce de León.

Frasca acrescenta: "Ou por causa do esnobismo e do racismo, nossa cultura sempre preferiu se comparar à Europa. Portanto, se um vizinho do Brasil ou da Argentina vier invejando nossa situação política, ainda reclamaremos porque não os usamos como referência".

Há também um componente histórico, segundo Garcé: "Fomos educados com a ideia de que na primeira metade do século XX houve um tempo de glória. Então sempre houve o desejo de recuperar os tempos perdidos, na política, na economia, em cultura e futebol".

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Nem país perfeito nem país fracassado: é o Uruguai, apenas.

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