Há uma distorção, uma discrepância.
O Uruguai aparece como um dos melhores países das Américas em estudos que levam em consideração qualidade de vida, igualdade e democracia.
Mas localmente, o Uruguai não parece muito feliz.
Em termos econômicos, por exemplo, os uruguaios costumam responder a pesquisas com pessimismo e angústia, apesar de terem a maior renda por pessoa na região há 7 anos, uma taxa de pobreza de países europeus e a economia crescendo constantemente nos últimos 16 anos, o melhor registro de sua história moderna.
Em meio às crises políticas que eclodiram na América Latina nas últimas semanas, a natureza excepcional do Uruguai parece ainda mais evidente.
Mas não é isso que costumam pensar os uruguaios.
Uma explicação que se costuma citar é que os uruguaios têm o hábito de menosprezar o que é seu e projetar um perfil discreto.
Mas existe outra segundo a qual existem problemas concretos e sérios no Uruguai, em comparação com seu próprio passado ou mesmo em termos regionais.
"As coisas parecem diferentes quando vistas de perto", diz Juan Grompone, engenheiro e escritor uruguaio.
Durante a campanha presidencial para as eleições de 27 de outubro, esse lado sombrio do Uruguai entrou em debate.
Não se acredita que tudo seja culpa da Frente Amplio, a coalizão que está no poder há 15 anos, mas que "quem vencer terá o desafio de não deixar o país ficar para trás em relação aos demais do mundo", segundo o filósofo e jornalista Facundo Ponce de León.
"Certamente somos piores do que vocês pensam lá fora", acrescenta o cientista político Adolfo Garcé.
"Quer dizer, em termos gerais, estamos bem, mas o Uruguai está bem porque é um país crítico, porque o inconformismo é uma tradição. E não podemos ficar satisfeitos com a situação de segurança, educação e trabalho."
A esses três aspectos, especialistas acrescentam outros, como a alta taxa de suicídios e o aumento do narcotráfico, que fazem parte daquele outro Uruguai que não consta do primeiro parágrafo da página da Wikipedia no país.
Velhos e crianças, vulneráveis
O Uruguai tem a segunda maior taxa de suicídio na América Latina depois da Guiana, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Com 20,25 mortes por 100.000 habitantes em 2018, um aumento de 3% em relação a 2017, esse número é o dobro da média mundial.
Para uma pergunta tão complexa quanto a razão pela qual tantos uruguaios cometem suicídio, existem várias respostas que combinam fatores sociais, familiares e pessoais, mas um fato repetido por especialistas é que os principais grupos de risco são idosos e adolescentes.
O Uruguai, com uma expectativa de vida de um país desenvolvido, possui a segunda população mais velha da região, depois de Cuba. Os críticos dizem que os sistemas de acompanhamento público são insuficientes e os incipientes e privados são muito caros.
O fato de 12% dos uruguaios terem mais de 60 anos também implica adaptar o trabalho, a saúde e os sistemas de pensão a uma realidade - envelhecimento da população - que países como o Japão ou a Alemanha não foram capazes de enfrentar.
A outra população em risco de suicídio no Uruguai também faz parte de uma situação social vulnerável: uma em cada cinco crianças nasce na pobreza.
Além disso, estudos locais descobriram que 60% sofrem algum tipo de abuso e as taxas de dislexia, obesidade e déficit de ferro são comparadas às de países três vezes mais pobres, segundo dados do Ministério da Saúde.
"As crianças não têm voz no Uruguai", diz Gonzalo Frasca, pesquisador e renomado designer de videogame com conteúdo político e educacional.
"Se você não conhece seus desejos e necessidades, se não os ouve, não pode forçá-los a estudar da mesma maneira que não pode forçar alguém a se apaixonar", acrescenta.
Sistema educativo do passado
É difícil estabelecer relações causais, mas o que foi descrito acima é somado ao fato de que o abandono escolar no Uruguai é um dos mais altos da região: apenas 40% dos estudantes que ingressam no ensino médio concluem esse nível.
Desde os anos 50, o sistema educacional mais inclusivo e bem-sucedido da América Latina começou a ficar para trás, dizem os especialistas.
O problema da educação foi tratado com aumentos no orçamento e, por 10 anos, com um esquema para fornecer a cada professor e aluno um computador, o Plano Ceibal.
Mas não basta, de acordo com Frasca: "Estar à frente da educação continental criou um conformismo que eliminou a autocrítica. O Plano Ceibal nos levou de volta à liderança regional inovadora, o que é bom, mas nos deixou tão satisfeitos que esquecemos de lidar com outros problemas educacionais sérios".
"A ditadura (1973-1985) preocupava-se particularmente com a educação, mas isso gerou um estresse pós-traumático na esquerda e na intelectualidade, que consideravam que a maneira de proteger a educação era por meio da política. E de tanta proteção acabaram por sufocá-la", explica o acadêmico.
Por ter sido tão boa, paradoxalmente, a educação no Uruguai hoje é a mesma da primeira metade do século e sua modificação implica processos políticos complexos, burocráticos e políticos longos, concordam os analistas.
O desafio de superar a exportação
Segundo dados oficiais de 2018, cerca de 3,5 milhões de pessoas vivem no Uruguai, enquanto cerca de 500.000 uruguaios vivem no exterior.
A fuga de cérebros é outro problema para a educação, porque a capacidade de ensino e pesquisa é perdida.
Mas isso também tem impacto no emprego, porque dificulta a modernização do sistema de produção em um país com uma tradição de exportação de carne e produtos agrícolas ameaçada pela automação.
O Instituto Nacional de Estatística informou que o desemprego no ano passado foi de 9,8%, a taxa mais alta desde 2007 e, segundo o Banco Mundial, uma das mais altas da América Latina.
"Desde 2014, vimos uma desaceleração da economia, que cresceu, mas houve setores que entraram em recessão, como construção e partes de indústrias", diz Laura Raffo, economista e consultora.
"Nesse cenário, muitos empreendedores reduziram a disposição de contratar", acrescenta.
Embora a economia uruguaia tenha se diversificado nos últimos 15 anos, ainda é muito dependente dos preços internacionais de matérias-primas. Uma preocupação comum entre especialistas e candidatos à presidência é que o país fique para trás do resto mundo.
"Ninguém diria que no Uruguai não precisamos de um treinamento melhor, especialmente técnico e digital, para preparar a mão de obra para o mundo no qual todas as empresas estão entrando no mercado de trabalho", conclui Raffo.
Insegurança
A calma que destacou o Uruguai nos últimos 30 anos parece ter sido interrompida na última década.
Somente em 2018, os homicídios aumentaram 45%, os roubos com violência 53% e os sem violência, 23% em relação ao ano anterior, segundo o Ministério do Interior.
Embora os números permaneçam proporcionalmente baixos em comparação com o resto da América Latina, a mudança modificou a qualidade de vida de muitos, que - sobrecarregados por histórias de insegurança em conversas, redes sociais e mídia - colocam grades, cercas elétricas e alarmes em suas casas.
São histórias que os uruguaios não estavam acostumados a ouvir, nem era comuns as notícias reportarem a apreensão de centenas ou milhares de toneladas de cocaína, como é o caso agora.
Nos últimos anos, foi revelado que o Uruguai é um porto de saída para drogas produzidas na Colômbia, Peru e Bolívia, fenômeno que, para alguns especialistas, explica o aumento da criminalidade no país.
Recuperar o que foi perdido
E então o que tudo isso significa? Que você não pode ir, viver, ficar calmo no Uruguai?
Não. O Uruguai continua sendo um dos países mais seguros, prósperos e iguais da América Latina.
"No exterior ainda existe uma imagem levemente idílica de um país das maravilhas. É verdade que se nos compararmos com o Brasil e a Argentina, há uma estabilidade institucional e econômica aqui", diz Ponce de León.
Frasca acrescenta: "Ou por causa do esnobismo e do racismo, nossa cultura sempre preferiu se comparar à Europa. Portanto, se um vizinho do Brasil ou da Argentina vier invejando nossa situação política, ainda reclamaremos porque não os usamos como referência".
Há também um componente histórico, segundo Garcé: "Fomos educados com a ideia de que na primeira metade do século XX houve um tempo de glória. Então sempre houve o desejo de recuperar os tempos perdidos, na política, na economia, em cultura e futebol".
Nem país perfeito nem país fracassado: é o Uruguai, apenas.