O noivado entre o príncipe Harry e Meghan Markle intensificou a discussão sobre as relações raciais no Reino Unido.
A atriz americana é filha de uma mulher negra e um homem branco. Desde que seu envolvimento com Harry veio a público, no final do ano passado, essa questão vem gerando reações que incomodaram o príncipe a ponto de ele emitir um comunicado condenando "insinuações racistas" de artigos publicados na imprensa e o "racismo escancarado" de comentários feitos na internet.
Após o anúncio do noivado e a perspectiva de Meghan se tornar a mulher do quinto na linha de sucessão do trono britânico, o debate ficou ainda mais aguerrido. Se tudo seguir conforme o planejado, a atriz será a primeira pessoa negra ou mestiça a fazer parte da família real britânica, a instituição mais tradicional do país. Juntos, eles formarão o primeiro casal inter-racial da Coroa.
Em um país em que quase 90% dos 65 milhões de habitantes se declara branca e onde estudos do governo mostram que minorias étnicas têm menos acesso a educação e saúde e sofrem com maiores taxas de desemprego e pobreza, como essa união pode afetar as relações raciais?
'Pingo de café'
"Não terá qualquer impacto, porque a monarquia não tem poder de fato sobre a sociedade britânica, a não ser por seu papel simbólico", diz à BBC Brasil o sociólogo Kehinde Andrews, professor da Universidade Birmingham City, no Reino Unido, e autor do livro Resistindo ao Racismo.
"A monarquia é um dos maiores símbolos de branquitude, colonialismo e imperialismo. Colocar um pingo de café nesta mistura não vai fazer diferença."
Não é o que acredita a escritora e jornalista Afua Hirsh. Em um artigo publicado no jornal britânico The Guardian, ela argumenta que o casamento real pode mudar para sempre a questão racial no Reino Unido ao "representar algo genuinamente diferente do que já ocorreu antes".
Hirsh cita a época em que o príncipe Charles era solteiro e uma baronesa sugeriu que ele deveria se casar com uma mulher negra como um símbolo do compromisso da família real com a integração racial e o multiculturalismo.
Na ocasião, alguns presumiram que uma união assim seria um retorno aos casamentos por estratégia e não por amor. "Era óbvio para os comentaristas da época que casar com uma negra e casar com alguém que se ama não eram coisas compatíveis. Afinal, você não poderia esperar que um herdeiro do trono se sentisse atraído por uma pessoa assim", disse a escritora.
"Nesse contexto, o casamento de Harry e Meghan tornará realidade algo que o establishment britânico sequer conseguia conceber há 17 anos - que um membro da família real pode amar e se casar com alguém com uma descendência étnica não só distinta da sua, mas uma descendência que tem sido a mais excluída do Reino Unido - negra e africana."
A curadora Irenosen Okajie, que é britânica-nigeriana, também mostrou otimismo diante do novo casal da realeza. O fato do príncipe Harry namorar abertamente Meghan mudou a forma como ela vê a família real. "De repente, eles - ou Harry, ao menos - parecem ter a mente mais aberta", escreveu ela em um artigo no jornal americano The New York Times.
"E não fui só eu. Amigos debatiam a possibilidade de um noivado e se os membros da família real seriam progressistas o suficiente para dar permissão a Harry. Quando o anúncio veio, a reação de pessoas não brancas de ambos os lados do Atlântico foi efusiva."
Diversidade e desigualdade
A população na Inglaterra e no País de Gales vem se tornando mais etnicamente diversa nas últimas décadas: 86% da população se declarou branca no ultimo censo, em 2011 - eram 91,3% no levantamento de 2001 e 94,1% em 1991.
Mas a desigualdade social persiste entre minorias étnicas, como mostrou um relatório do governo divulgado em outubro. A taxa de desemprego nestes grupos é o dobro daquela registrada entre brancos. E eles têm duas vezes mais chances de viver na pobreza.
Ao mesmo tempo, relacionamentos inter-raciais tornaram-se mais comuns: quase um em cada dez habitantes estava casado ou vivendo com alguém de outra etnia em 2011, 35% mais do que no censo anterior. Mas o índice cai para um a cada 25 entre aqueles que se declaram brancos.
Astrid, que é francesa, e Mike, cuja família vem do Quênia e de Ruanda, estão juntos há 10 anos e tiveram sua primeira filha há um ano. Astrid diz que, às vezes, ela "pensa demais sobre como as pessoas reagirão". "Meu avô expressava algumas opiniões negativas sobre africanos, então, eu tinha medo de como ele se comportaria, mas, quando ele conheceu o Mike, ele o amou."
Ambos defendem estar na hora de o rótulo inter-racial ser deixado de lado e que casais assim sejam vistos com naturalidade. Astrid diz que o novo casal real "é incrível" e mostra "o quão diversa e moderna a família real é". "Será um grande exemplo para a Inglaterra e uma representação fiel da sociedade britânica."
Shantania Beckford, de 24 anos, tem descendência jamaicana, e Billy Clifford, de 23 anos, é inglês. Eles se conheceram pela internet e, juntos, têm mais de 300 mil seguidores. Seu relacionamento já foi alvo de ataques online.
"Alguns não acreditam que negros e brancos devem ficar juntos, mas nós rimos disso. Não podemos deixar a negatividade nos atingir, apagamos os comentários e seguimos em frente", afirma Shantania, que diz ter ficado surpresa com o anúncio do casamento.
"Para ser honesta, não pensava que deixariam uma negra entrar na família real. Meghan é uma mulher de qualidades, mas como será que a rainha se sente quanto a isso?" Para ela, o novo casal real representa um avanço. "As pessoas aceitarão melhor casais inter-raciais agora e falarão sobre essa questão."
Por sua vez, Sara Khoo, de 23 anos, que tem descendência chinesa e islandesa e namora com Adam D'hill, de 28 anos, que é português e afroame, acha dificíl comentar sobre o assunto. "Porque eu não vejo como as pessoas podem ter um problema com esse relacionamento. Não vemos isso como um problema."
Já a inglesa Andrea Walker, de 55 anos, que foi casada com um paquistanês e teve três filhos com ele, acredita que os apoiadores da família real ficarão divididos com o relacionamento de Harry e Meghan.
Andrea conta que sua família e a de seu ex-marido foram muito receptivas ao seu relacionamento, mas que houve colegas e estranhos não se comportaram assim. Ela diz que, desde então, as atitudes das pessoas em relação a casamentos inter-raciais mudaram, mas não está segura de que uma união assim na família real seria muito bem aceita por todos.
"O racismo sempre estará por aí, não importa o que aconteça, mas você tem esperança que as pessoas superem isso."
Simbolismo
A escritora Afua Hirsh, que é negra, destaca que, ao longo de sua vida, a família real sempre teve um simbolismo do que é ser britânico. "Mas era uma representação que me excluía - e isso importava. Fazia outras pessoas pensarem que ser autenticamente britânico e ser negro eram identidades incompatíveis."
A jornalista destaca que todo governo tentou de alguma forma, ao menos retórica, reconhecer e proteger a diversidade racial, mas que a família mais importante da sociedade britânica não fazia nada nesse sentido. "Algo que não é surpreendente já que o próprio conceito de família real é uma antítese de diversidade."
A branquitude estaria inclusive na origem do termo "sangue azul", usado para designar alguém da realeza. Segundo alguns etimologistas, ele surgiu em referência à pele destas pessoas, que, de tão alva, permitiria ver as veias e artérias "azuis" sob ela.
Existe a hipóetese de que Meghan não seria a primeira mestiça a fazer parte da família real britânica. Alguns historiadores já levantaram suspeitas de que a rainha Charlotte (1744-1818), mulher do rei George III (1738-1820), seria afrodescendente.
Como isso nunca foi comprovado, permanece como um fato histórico que não houve miscigenação na linhagem real britânica. Assim, o noivado entre Harry e Meghan subverteria as regras vigentes até hoje de quem pode ou não ser parte da família real do ponto de vista étnico, opinou a curadora Irenosen Okajie.
"Casamentos inter-raciais estão se multiplicando no Reino Unido. De certa forma, o príncipe e Meghan são fruto dessa tendência e não pioneiros. O que é mais intrigante é que, com esse par improvável, mais pessoas não brancas se sentirão parte da instituição mais antiga do país", escreveu ela.
"Estamos entrando em uma nova era em que as fronteiras de raça e classe serão abolidas no Reino Unido, em que as pessoas terão a mente mais aberta sobre que pode ser seu parceiro?"
O sociólogo Kehinde Andrews mantem-se completamente cético: "Já estamos vendo sua negritude ser minimizada, dizendo que ela 'passa por branca' ou não é negra, algo absurdo, porque sua mãe é negra e isso basta para que ela seja identificada assim".
Andrews avalia que dizer que o casamento aliviará a tensão racial no país é "uma loucura". "Se um presidente negro como o Obama, que de fato detém poder, não conseguiu fazer isso nos Estados Unidos, a família real britânica vai ter algum impacto?", questiona.
"Sempre há quem aponte a miscigenação para dizer que não existe um problema racial no país. O Brasil é um exemplo disso. Mas, tanto aí quanto no Reino Unido, as taxas de desemprego, pobreza, criminalidade são maiores entre os negros, que continuarão a ser discriminados como eram há 50 anos."