O número de crianças com menos de dez anos que foram encaminhadas para o serviço britânico de saúde devido a problemas de identidade de gênero quadruplicou nos últimos seis anos. A apresentadora da BBC Victoria Derbyshire acompanhou alguns dias na vida de duas das crianças transgênero mais jovens na Grã-Bretanha - com autorização dos pais. No relato abaixo, a história de Lily e Jessica e de como elas tiveram de superar o preconceito na escola e até dentro da própria família.
Lily e Jessica (nomes fictícios), de seis e oito anos, entram na sala rindo e conversando, carregando bolsas cheias de brinquedos como bichinhos de pelúcia da Hello Kitty e bonecas Monter High. As duas falam sobre os nomes dos brinquedos e apontam quais os favoritos em uma cena comum quando duas meninas brincam.
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Mas estas meninas nasceram meninos. Poucos anos depois de seu nascimento, na verdade quando elas começaram a falar, já demonstravam gostar de coisas tipicamente associadas e meninas: vestidos, joias, bonecas e nomes de meninas.
Nada dá pistas de que elas nasceram meninos: as roupas e corte de cabelos são de meninas, o jeito de brincar e conversar. E os nomes que escolheram para proteger suas identidades: Jessica e Lily.
"Quando decidi que eu era definitivamente uma menina? Por toda minha vida, diz Lily.
Banheiro da escola
Segundo os pais das crianças, desde muito cedo Lily e Jessica já sabiam das diferenças de gênero. Com o tempo, foram ficando cada vez mais infelizes por terem nascido de um gênero que não viam como sendo o seu.
E não era apenas uma insatisfação comum de uma criança que é obrigada a comer algo que não gosta ou arrumar o próprio quarto. As duas estavam muito incomodadas e até angustiadas com o fato de terem nascido meninos.
"Se eu tivesse que viver como um menino, ficaria muito triste. Muito triste mesmo. Mas agora, estou meio que vivendo como uma menina e me sinto muito melhor", acrescentou Lily.
Antes de encontrar Lily e Jessica eu estava cética quanto à possibilidade de crianças tão pequenas terem uma noção tão clara de que tinham nascido em um corpo errado.
Como alguém tão jovem poderia estar certo de pertencer ao sexo oposto, de querer usar roupa de menina, brincar de boneca e com outras meninas da classe? Certamente suas preferências - assim com as de meus dois filhos, em idades semelhantes - poderiam mudar a cada semana.
Mas as duas meninas não pareciam mostrar qualquer dúvida. Os pais de Lily e Jessica contaram que também pensaram que poderia ser apenas uma fase, mas isto já dura há vários anos.
Jessica conta que suas matérias prediletas na escola são matemática, leitura, arte e história. E acrescenta que, quando era um menino, era "muito frustrante para mim. Eu sentia como se não me encaixasse".
Houve um tempo em que Jessica não era aceita nem no banheiro da escola, os meninos pensavam que ela era uma menina, mas ela também não podia usar o banheiro das meninas.
Jessica chegou ao ponto de quase não beber água na escola para precisar usar o banheiro apenas quando chegasse em casa.
Em uma ocasião, uma das cozinheiras da escola agradeceu por Jessica ter pego talheres do chão dizendo "bom menino" e Jessica reagiu aos gritos. Foram necessários cinco professores para controlar a situação.
Papel dos pais
Alguns culpam os pais por esta situação: a forma como eles criam os filhos, mimando-os ou, de forma inconsciente, "condicionando" a criança pois queriam uma menina ou um menino.
Questionados se acreditam terem feito algo errado, os pais demonstram angústia. Muitos, com filhos mais velhos que se comportavam como "típicos meninos", nunca tinham ouvido falar de transtornos de identidade de gênero.
Jen, a mãe de Lily (também nome fictício) conta que quando Lily tinha quatro anos e ainda era tratada como menino, entrou em seu quarto quando ela estava se vestindo e perguntou: "Uau, posso usar um vestido como este quando crescer?". Jen achou bonitinho, mas pensou que era apenas uma fase ou até que seu filho poderia ser gay.
Na mesma época, Lily também teve ataques quando finalmente colocou um vestido e os adultos tentaram tirar o vestido que ela estava usando.
Isto tudo gerou muita tensão com os avós dela. Em um passeio, a avó tentou impedir Jen de comprar uma mochila rosa para Lily, para não "estimular" o menino.
Para Jen, as dúvidas apenas começaram a se dissipar há dois anos. "Assistimos a um vídeo há dois anos. Era um vídeo americano de famílias contando sobre como era ter um filho transgênero e pensei 'meu Deus, é o que estamos passando'", disse.
Mas, não houve apenas um momento específico e sim, vários episódios, envolvendo pedidos de brinquedos para meninas, compras de sapatos, entre outros.
Para Ella (nome fictício), mãe de Jessica, a angústia foi maior. Ela se separou do marido e começou um relacionamento com outra mulher, Alexandra. Ella pensou que seu relacionamento poderia ter influenciado Jessica, mas lembra que tem dois filhos mais velhos que continuam se comportando como meninos.
Um parente a acusou de estar "condicionando" o filho. Mas, o momento mais difícil foi quando alguém fez um telefonema anônimo para um órgão britânico de proteção à criança acusando a família de "obrigar o menino a viver como menina".
Ella e Alexandra ficaram furiosas e desconfiaram que a ligação foi feita por um membro da família, mas a investigação não deu resultado.
O pai de Jessica também tem dificuldades em aceitar a filha. Ela fica com ele durante alguns finais de semana e, até recentemente, ele não permitia que Jessica usasse saias e vestidos e a chamava por seu "nome de menino".
Agora ele aceita Jessica e a menina diz que se sente mais feliz quando precisa visitá-lo.
'Condição rara e complexa'
Não há números precisos sobre a quantidade de pessoas com transtornos de identidade de gênero na Grã-Bretanha, pois muitas pessoas nunca procuram ajuda.
Os únicos lugares da Grã-Bretanha especializados nestas questões e voltados para crianças e adolescentes com menos de 18 anos são clínicas em Londres e Leeds.
O Tavistock and Portman NHS Trust define a disforia de gênero em jovens como "uma condição rara e complexa onde existe incongruência entre o gênero percebido pelo jovem e o sexo biológico".
Nos últimos seis anos quadruplicou o número de crianças de dez anos ou menos sendo encaminhadas para estas clínicas. Em alguns casos, as crianças tinham cinco anos ou menos e, em outros, até três anos.
Especialistas afirmam que a disforia de gênero pode ser muito traumática para uma criança e para a família, principalmente quando a criança chega à puberdade.
O Tavistock and Portman NHS Trust afirma que, no caso de criança, eles a monitoram por um tempo, mas não consideram adequado fazer um diagnóstico formal em crianças muito pequenas.
Por isso, a abordagem é aconselhamento e sessões de apoio, sem nenhuma intervenção médica, até as crianças chegarem à puberdade, quando poderão ser oferecidos bloqueadores de hormônio dependendo do caso.
Estes bloqueadores atrasam as mudanças físicas da puberdade, o que dá tempo para a pessoa viver como homem ou como mulher. Depois disso, o paciente poderá pensar em tomar outros hormônios para mudança de sexo, a partir dos 16 e fazer a cirurgia depois dos 18 anos.
Felizes
Existem poucas pesquisas que tentam descobrir a razão de uma pessoa ser transgênero. Uma das mais recentes foi feita pela Escola de Medicina da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, no começo deste ano.
Segundo esta pesquisa, existe uma explicação biológica, mas os pesquisadores sugeriram mais estudos para verificar se é algo que ocorre nos genes, nos hormônios ou se há alguma outra razão.
O que se sabe é que a vida para um transgênero pode ser muito difícil, marcada por problemas de aceitação, preconceitos e bullying.
Os pais de Lily e Jessica tentam proteger as crianças de tudo isto mas também acreditam que, conversando sobre o assunto e conscientizando as pessoas, podem combater os preconceitos.
E, tudo indica, que, no momento, as crianças estão satisfeitas.
Quando questionada se mudará de ideia no futuro e voltará a viver como menino, Jessica responde que não voltaria: nem aos 18, nem aos 40, 50 ou cem anos.
Ela vai à escola com roupas femininas e está satisfeita com o fato de colegas e professores a aceitarem. "Ela está tão feliz que apenas sorri e está radiante", disse a mãe de Jessica.
A mãe de Lily, por sua vez, quer apenas que a filha seja feliz, aproveite a vida, tenha amigos e vá bem na escola. Como a mãe de qualquer criança de seis anos.