Rani Jordão Ganime, 10 anos, acorda antes do amanhecer. Toma o café da manhã, às vezes mesmo sem fome, e parte de carro com o pai, na Ilha do Governador, para a sede do Flamengo, na Gávea, Rio de Janeiro, onde integra a equipe de natação do clube. De segunda a sábado, inclusive feriados, salta às 7h na piscina a céu aberto para um treino de uma hora e meia - mesmo quando a temperatura cai no inverno e a água não está nada quentinha.
A disposição para a rotina puxada vem do sonho de um dia participar de uma Olimpíada e de que o esporte lhe proporcione a oportunidade de estudar em uma universidade americana.
"Meus pais falam muito comigo. Dizem que, se eu me esforçar muito, vou conseguir uma bolsa de estudos lá nos Estados Unidos. É um sonho deles e meu", diz a atleta mirim, que trocou o jiu-jitsu pela natação porque o primeiro não lhe garantiria chances de estudar fora por ainda não ser uma modalidade olímpica e disputada na liga universitária americana.
Assim como Rani, muitas crianças estão se dedicando ao esporte desde cedo com o objetivo de cursar o ensino superior fora do Brasil.
Escolinhas de futebol, tênis ou natação que antes recebiam apenas meninos e meninas interessados em aprender os fundamentos da modalidade e se divertir, agora são procuradas por famílias que planejam investir no esporte como uma forma de seus filhos estudarem no exterior no futuro.
Esses pequenos atletas querem, acima de tudo, ter a chance de continuar praticando esporte, mas sem descuidar da educação.
"Eu queria estudar numa universidade boa, mas também queria continuar nadando. O único lugar para fazer isso era nos Estados Unidos. Infelizmente aqui no Brasil não tem como: ou você nada ou você estuda. É impossível fazer os dois bem feitos ao mesmo tempo", diz a paulista Sofia Sigrist, nadadora do Pinheiros, de São Paulo, que neste ano ingressa na Universidade de Nova York.
Portfólio atlético
Humberto Badolato, empresário e professor da escolinha de futebol da academia Bodytech, no Rio de Janeiro, conta que muitos pais o procuram para saber qual o melhor caminho para estudar lá fora por meio do futebol.
"Alguns me pedem treino personalizado com o objetivo de já ir aperfeiçoando a técnica das crianças. Eles sabem que meu próprio filho está se preparando para entrar em uma universidade americana. Só que ele quer a Ivy League (grupo formado por oito das universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos e que não concede bolsas para atletas)", conta.
Para Rita Moriconi, coordenadora do Education USA no Cone Sul, os pais estão certos em despertar esse interesse na infância.
"O esporte sempre ajuda no processo de admissão. Tanto para o aluno atleta, que vai aplicar para uma bolsa atlética, como também para aquele aluno que não compete, mas que se sentiria bem indo para uma universidade em que ele tenha possibilidade de jogar ou nadar, por exemplo", afirma a educadora.
Filiado ao Departamento de Estado dos EUA, o Education USA tem 35 escritórios no Brasil e auxilia gratuitamente os candidatos na escolha entre as 4,7 mil universidades americanas, além de prestar assistência no processo de seleção (que inclui a apresentação de uma espécie de dossiê com documentação, histórico escolar, notas de exames SAT/TOEFL e redações).
Uma das dicas de Moriconi é começar a fazer um portfólio atlético desde o início com fotos e vídeos. "Eles também devem procurar o Education USA quando chegar ao nono ano do ensino fundamental, uns três ou quatro anos antes de fazer o application (se inscrever)", recomenda.
Também é preciso ficar atento às notas da escola desde o ensino fundamental. "Se você tiver um histórico escolar ruim, vai pesar muito na decisão de admissão. Eles querem ver uma consistência nas notas e, de preferência, em todas as matérias", ressalta Mateus Rabello Benarrós, da empresa de assessoria Apply, com sede em Manaus.
Na última década, o número de brasileiros inscritos em universidades dos Estados Unidos aumentou 79,3%, segundo dados do Instituto de Educação Internacional (IIE, na sigla em inglês). O Brasil escalou seis posições e ocupa o décimo lugar no ranking dos países com o maior número de alunos estrangeiros cursando ensino superior no país.
Em 2017, eram 6.310 alunos brasileiros de graduação concentrados nos Estados da Califórnia, Florida, Nova York, Massachusetts e Texas. Desse total, 584, ou 8,35%, tinham bolsa-atleta nas Divisões 1 e 2 da National Collegiate Athletic Association (NCAA, na sigla em inglês), a associação da liga universitária americana. Anualmente, são concedidos US$ 3 bilhões em bolsas-atléticas. As bolsas por mérito acadêmico somam US$ 11 bilhões.
A ajuda geralmente inclui a mensalidade da faculdade, moradia, alimentação, material e seguro saúde. O valor a ser recebido varia e depende da performance do atleta, do quanto necessitam sua posição na equipe e da modalidade.
Modalidades
Entre os brasileiros, as modalidades com maior número de atletas com bolsas são futebol, natação e tênis.
Os pais de Raquel, de 9 anos, e Luiza, de 7, investem no tênis, um esporte já praticado pelo casal. Desde os cinco anos de idade as meninas fazem aulas particulares e, atualmente, frequentam uma academia especializada três vezes por semana para aperfeiçoar a técnica nas quadras. O custo mensal da aula é de R$ 550 por criança.
"Os planos são de que elas ingressem numa universidade dos Estados Unidos com bolsa de estudos para quem tem bom desempenho no esporte. Os custos de uma universidade americana são altos e nós temos duas filhas, o que faz com que o valor dobre anualmente. Eles oferecem bolsas com descontos gradativos, conforme o desempenho", conta a carioca Débora Almeida, mãe das meninas.
No Rio Grande do Sul, Vicente, de 11 anos, e Pedro, de 12, competem pelo Clube Leopoldina Juvenil e colecionam medalhas em torneios estaduais.
"Durante umas férias, fomos assistir ao Rio Open e lá os meninos realmente se apaixonaram pelo esporte. Pediram para treinar mais e para competir", conta a mãe Rosane Menezes Freda. "Nós não temos planos concretos para eles. Mas, após participar do meio competitivo, ficamos mais atentos a esta possibilidade de estudar fora. Eles falam que querem", diz.
No futebol, ocorre de muitas crianças e adolescentes terem o talento para entrar em uma instituição de ensino nos Estados Unidos, mas barram na dificuldade financeira. As famílias não conseguem arcar com todos os custos preparatórios, como curso de inglês e assessoria para o processo seletivo - muito menos apresentar um saldo bancário na hora do visto para provar que podem sustentar o filho ou a filha no país, necessário mesmo que eles tenham bolsa de estudo.
"Eles não conseguem pagar nem a passagem. Normalmente, são os melhores jogadores. Uma vez por ano convido um treinador de uma universidade dos Estados Unidos para fazer um camping e chamou uns atletas de baixa renda. Os treinadores se apaixonam tecnicamente por eles, oferecem bolsa integral mas e a passagem, o visto de estudante e o extrato bancário?", questiona Amaury Nunes, ex-jogador profissional que, em 2008, montou a A10, empresa de intercâmbio esportivo.
"Se tivéssemos uma empresa financiando isso, patrocinando um atleta, certamente conseguiríamos mandar alunos de um perfil mais humilde", diz Nunes, que atualmente procura uma parceria pública ou privada para levar pelo menos dez alunos de baixa renda entre os 100 que manda anualmente para o exterior.
São, portanto, famílias de classe média e classe média alta que procuram a A10 para encaminhar os filhos para fora do país. Os treinos e o curso de inglês saem por R$ 500 mensais. A assessoria para o processo de seleção e o encaixe em uma universidade custam R$ 10 mil, com a garantia de conseguir uma vaga para o aluno.
Nunes se formou nos Estados Unidos com bolsa-atleta e atuou profissionalmente no país. Enquanto jogava na liga universitária, os técnicos seguidamente lhe pediam indicações de atletas e assim começou a buscar candidatos no Brasil.
"Existe muita demanda em ambos os lados. Aqui fazemos seletivas nas dez unidades que temos no Brasil", diz ele. "Começamos a crescer muito principalmente quando veio a crise no Brasil. Os pais queriam dar uma oportunidade para os filhos de estudar. Aqui as universidades estavam em greve o tempo inteiro e as particulares eram muito caras. Hoje em dia, o aluno com bolsa nos Estados Unidos paga o mesmo que aqui ou até menos e ainda joga e estuda."
Desempenho
A performance é outro fator importante para conseguir uma bolsa-atleta. Isso não significa, no entanto, que apenas aqueles com índices olímpicos podem ser contemplados.
É o que diz a nadadora carioca Beatriz Olivieri, de 18 anos, que ingressa neste ano no Rollins College, na Florida, com todos os custos cobertos por duas bolsas, uma atlética e outra acadêmica.
"Às vezes a gente tem a ideia de que é uma coisa muito difícil. Que para conseguir você precisa um índice muito forte, tem que ser um recordista brasileiro, mas na verdade não. Lá existem várias faculdades e eles procuram perfis diferentes. Você vai achar uma universidade que seja compatível como seu perfil", diz a nadadora da equipe do Flamengo, federada desde os dez anos de idade.
Alguns atletas que se destacam, no entanto, atraem o interesse dos técnicos americanos. Há casos em que a universidade chega até o aluno.
Foi o que aconteceu com Diego Uchôa, ex-nadador da seleção brasileira e atual treinador da equipe categoria Petiz do Flamengo.
"Em 2010, eu estava me formando na Unisanta (na cidade paulista de Santos) e uma universidade dos Estados Unidos me ofereceu uma bolsa integral. O treinador precisava de um nadador de peito, que era a minha especialidade. Mas, naquele momento, meus planos eram outros e fui treinar no Minas", diz Uchôa.
Victoria Chamorro, praticante de esporte desde os seis anos de idade, atraiu a atenção de um olheiro enquanto participava de um campeonato nos Estados Unidos pela seleção brasileira de polo aquático, na qual entrou com apenas 16 anos na posição de goleira.
Em 2014, recebeu o telefonema do técnico da Universidade do Sul da Califórnia, de Los Angeles. Ele precisava de uma goleira na equipe. Ela aceitou o convite e, em 2018, se forma em economia - ao mesmo tempo em que foi campeã nacional da liga universitária americana e participou das Olimpíadas do Rio.
"O esporte foi o que basicamente me trouxe aqui, me deu um diploma universitário numa das melhores universidades do mundo em termos acadêmicos", diz a atleta.
"Pretendo ficar mais um ano nos Estados Unidos trabalhando, com o visto de OPT (que permite estudantes internacionais a ganhar experiência de trabalho) ou ir jogar profissionalmente na Europa ou Austrália até os Jogos Olímpicos de Tóquio. Em 2020 estarei completando 24 anos, então ainda estou bem jovem, o que me dá mais tempo como atleta. Tenho um tempo para decidir, e, graças a Deus, tenho opções proporcionadas pelo meu diploma."