Poucos dias depois da invasão da Rússia à Ucrânia, em fevereiro de 2022, a capital americana Washington se vestiu nas cores azul celeste e amarelo. As bandeiras ucranianas tremulavam das casas como sinal de que a cidade, uma das mais democratas e progressistas do país, abraçava o plano do governo de Joe Biden de apoiar financeiramente a resistência militar do país de Volodymyr Zelensky.
Agora, dez dias após os ataques do grupo palestino Hamas em Israel, nem a bandeira Palestina, nem a flâmula do Estado israelense surgiram nas fachadas de Washington, a despeito das inúmeras palavras de apoio incondicional de Biden a Israel, do envio imediato de porta-aviões e munição americana ao país e da viagem expressa de dois dos seus principais auxiliares, o secretário de Estado Antony Blinken e o secretário de Defesa Lloyd Austin, à Tel-Aviv.
Em velocidade e em ênfase, Biden fez mais agora do que em fevereiro do ano passado, quando o exército russo cruzou as fronteiras da Ucrânia.
Domesticamente, no entanto, há um mal-estar na sociedade e na política americanas.
Enquanto a base democrata de Biden tem se mostrado consistentemente unida em torno do envio de auxílio militar à Ucrânia, a oposição republicana quer a diminuição ou mesmo o fim das remessas.
De outro lado, a própria base política de Biden não se mostra unida em torno do "apoio incondicional" do democrata a Israel - e um pacote militar ao país no Congresso pode enfrentar fogo amigo, embora deva contar com apoio republicano.
Dois pesos e duas medidas?
Enquanto os EUA têm sido vocais em denunciar e ajudar a documentar potenciais crimes de guerra da Rússia — como fez na cidade ucraniana de Bucha —, Biden e seus enviados têm feito apenas menções genéricas à necessidade de respeito à lei internacional na atual contra-ofensiva israelense.
A Organização das Nações Unidas (ONU) já expressou preocupação de que as ações de Israel — de cortar água, energia, combustível e alimentação da Faixa de Gaza, enquanto bombardeia a área, e de ordenar a remoção de mais de um milhão de pessoas de um lado ao outro em 24 horas — acarretem em alto número de mortes de civis e possam configurar crime contra humanidade.
Nas redes sociais, a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez, estrela da esquerda americana, fez duras críticas à resposta israelense.
"Isso é punição coletiva e uma violação à lei internacional. Não podemos matar de fome quase um milhão de crianças por causa das horríveis ações do Hamas, cujo desrespeito por israelenses, palestinos e à vida humana não poderia ser mais claro. Precisamos traçar um limite", postou a deputada em sua conta no X, antigo Twitter.
Na mesma linha, outra das mais vocais parlamentares democratas, Cori Bush, afirmou que "ordenar que 1,1 milhão de pessoas evacuem uma área em 24 horas é uma tarefa impossível. Há pessoas que permanecem em hospitais no norte de Gaza e que não podem ser transportadas. Israel deve rescindir a ordem, respeitar o direito internacional e prevenir atrocidades em massa contra o povo palestino".
Mas o mal-estar não se concentra apenas na reação americana diante dos possíveis excessos da resposta israelense agora.
Outro ponto é o posicionamento histórico dos EUA em relação ao assentamentos israelenses em terras consideradas internacionalmente como palestinas, como a Cisjordânia e a porção leste de Jerusalém. Embora a Palestina jamais tenha se tornado um Estado, existem áreas autônomas reconhecidas como território palestino.
As ocupações de colonos judeus nestas regiões já foram consideradas ilegais pela Assembleia Geral da ONU, pelo Conselho de Segurança da ONU e pelo Tribunal Internacional de Justiça. Israel argumenta que essas são terras "em disputa" e, portanto, não há irregularidade.
Enquanto defendem que a violação da Rússia à integridade territorial da Ucrânia é uma flagrante violação à lei internacional e uma ameaça à ordem mundial estabelecida no pós-guerra, os EUA têm historicamente evitado condenar os assentamentos israelenses estabelecidos na Cisjordânia e em Jerusalém.
Os americanos jamais votaram a favor de qualquer declaração da ONU estabelecendo a ilegalidade destas ocupações, exceto por uma resolução em 1980. Mas mesmo nesta ocasião, durante a gestão do democrata Jimmy Carter, a diplomacia dos EUA se retratou logo depois do voto e disse ter havido uma confusão, mas que a posição americana era pela abstenção.
Quando não se abstiveram, os americanos chegaram a vetar uma série de resoluções na ONU para blindar Israel de críticas ou sanções. Em relação à Rússia, porém, os americanos foram os patrocinadores de resoluções condenatórias à invasão de Putin tanto no Conselho de Segurança, onde a própria Rússia as vetou, quanto na Assembleia Geral, onde foram aprovadas.
Ainda assim, fora das arenas internacionais decisivas, lideranças americanas admitiram que as ocupações israelenses eram ilegais e chegaram a pedir sua desmobilização, bem como defenderam a criação de um Estado palestino coexistindo junto a Israel.
Isso mudou durante o governo de Donald Trump, no entanto.
Em novembro de 2019, os EUA anunciaram que já não mais consideravam os assentamentos israelenses ilegais. Em resposta, a própria ONU afirmou que "uma mudança na posição política de um Estado não modifica o direito internacional estabelecido nem a sua interpretação pelo Tribunal Internacional de Justiça e pelo Conselho de Segurança".
Em março de 2021, porém, a gestão Biden reverteu o entendimento de seu antecessor e voltou a tratar os assentamentos como ilegais.
Tensão ou contradição?
Analistas internacionais ouvidos pela BBC News Brasil se dividem entre apontam "uma tensão" ou mesmo "dois pesos e duas medidas" na posição americana em relação a Israel e à Ucrânia.
"É uma questão complicada. Os EUA afirmaram que os assentamentos israelenses são um obstáculo à paz. Não com frequência, mas ao menos em algumas ocasiões, os americanos permitiram a aprovação de resoluções do Conselho de Segurança da ONU em condenação aos assentamentos como violações do direito internacional, ou seja, não exerceram seu poder de veto", disse à BBC News Brasil Allen Weiner, professor de direito internacional da Universidade Stanford.
"Então, eu não diria que há uma contradição, mas diria que há uma tensão no sentido de que é óbvio que os Estados Unidos são muito mais ativos na oposição à invasão, ocupação e anexação pela Rússia de territórios na Ucrânia do que do que acontece em Israel."
Para Trita Parsi, vice-presidente executivo do think-tank Instituto Quincy e autor de Losing an Enemy - Obama, Iran and the Triumph of Diplomacy, porém, o posicionamento americano não só é contraditório como esta é uma percepção majoritária em países que têm sido pressionados pelos EUA a condenar a Rússia e apoiar a Ucrânia com o envio de armas, como africanos e latino-americanos.
"A posição americana em relação à Ucrânia e a Israel revela uma situação dramática de dois pesos e duas medidas que grande parte do Sul global já está ciente", afirmou Parsi, internacionalista sueco-iraniano que atuou junto ao Conselho de Segurança da ONU em temas relacionados ao Oriente Médio.
"Vemos na Ucrânia a insistência em que esta ocupação por parte da Rússia tem de ser completamente revertida, o que significa que nenhuma parte desta ocupação, seja de que forma for, é aceitável, o que considero ser uma posição compatível com o direito internacional. Em Israel, no entanto, não há apenas uma aceitação, mas um certo apoio a uma ocupação contínua de mais de cinco décadas de território palestino", argumenta Parsi.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, Israel é o país do mundo que mais recebeu, cumulativamente, recursos dos EUA. Entre 1946 e 2023 foram estimados US$ 260 bilhões (o equivalente a mais de R$1,3 trilhão), segundo um relatório do Congresso americano publicado em março deste ano. Mais da metade desse montante foi designado como auxílio militar.
Reservadamente, embaixadores brasileiros disseram notar evidente "contradição" da postura americana entre Israel e Ucrânia, em linha com o que argumenta Parsi. Há menos de um mês, em um discurso durante a Assembleia Geral da ONU, Biden demonstrou apoio a reformas de organismos multilaterais, incluindo o Conselho de Segurança, para aumentar sua representatividade e liderança.
Na presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU, o Brasil vem tentando, desde os ataques do Hamas a Israel, aprovar alguma declaração do colegiado que peça por uma desescalada do conflito, liberação dos reféns e implementação de "pausas" nos bombardeios para o funcionamento de corredores humanitários que permitam evacuação de civis e entrada de assistência à Gaza.
A tarefa, no entanto, tem se mostrado extremamente complexa. Por um lado, os EUA não se mostram dispostos a aprovar nada que não esteja previamente acordado com Israel — na próxima quarta-feira, 18, o presidente Biden irá pessoalmente a Tel-Aviv. Por outro, a Rússia, com o apoio da China, tem tentando fazer passar um texto duro em relação a Israel, justamente para tentar expor as contradições da política externa americana.
"Eu acredito que a situação já fragilizou os Estados Unidos na arena internacional. A Rússia já apontou o não reconhecimento dos EUA da anexação ilegal por Israel da região de Golã (em disputa como a Síria), como um exemplo de que a oposição dos EUA à anexação do território ucraniano é hipócrita, que não se baseia em princípios, mas simplesmente na geopolítica", afirma Stephen Zunes, professor de política e fundador do Centro de Estudos do Oriente Médio da Universidade de San Francisco, na Califórnia.
"É muito importante para a credibilidade dos EUA assumirmos uma oposição consistente à expansão ilegal do território pela força, contra a ocupação, não apenas quando são feitas por países dos quais não gostamos, como a Rússia de (Vladimir) Putin ou o Iraque de Saddam (Hussein), mas quando os nossos aliados, como Israel, também se envolvem em tais práticas."
Aumento da pressão é esperado
Os especialistas argumentam ainda que, conforme o conflito se desenrola, as pressões domésticas e internacionais sobre uma postura mais rigorosa dos EUA em relação a potenciais crimes de guerra de Israel devem aumentar.
"Com razão, a maioria das nações está horrorizada com os ataques do Hamas e juntou-se aos EUA e à sua condenação incondicional do Hamas e ao apoio a Israel em seu momento de necessidade. Mas temo que haverá uma guerra terrestre devastadora e na Faixa de Gaza, juntamente com bombardeios pesados que resultarão em muitos milhares de vítimas civis. E se os EUA se recusarem a condenar isso, acho que isso realmente prejudicaria a imagem dos EUA porque mostraria que os EUA não só têm dois pesos e duas medidas em relação à ocupação e anexação territorial, mas também em termos de vidas civis, o que seria francamente visto como racista", argumenta Zunes.
Weiner também acredita que a mudança de cenário, com a possibilidade de uma grande quantidade de vítimas civis palestinas, geraria um choque na percepção pública e no comportamento do governo americano. Segundo as leis internacionais, ações que provoquem mortes desproporcionais de civis, mesmo que em uma contra-ofensiva, são consideradas crimes de guerra, explica o professor de Stanford.
"A entrada de Israel por terra deve aumentar significativamente o sofrimento do povo de Gaza. Talvez não publicamente, mas certamente nos bastidores, os EUA, vão instar os israelenses a algum cessar-fogo para avaliar os ganhos que estão obtendo estrategicamente versus os danos que estão causando. O mundo simpatiza com Israel devido aos terríveis ataques que sofreu, mas penso que isso poderá mudar se houver sofrimento generalizado em Gaza", diz Weiner.
Segundo ele, o comportamento dos americanos agora importa não apenas por uma questão de coerência da potência, mas porque os americanos deverão ser novamente fundamentais em conversas sobre a paz. Nos últimos dias, Blinken fez visitas não apenas a Israel, mas aos principais vizinhos árabes da região.
Historicamente, os americanos estiveram por trás de todos os avanços — embora modestos — de israelenses e palestinos em direção à paz. Agora, Biden, que vinha ajudando a costurar um acordo entre Arábia Saudita e Israel, precisa calcular seus passos para não soar desleal a um aliado histórico, como Israel, e não alienar a confiança que vinha desenvolvendo junto aos países árabes. Tudo isso, enquanto tenta circunscrever o conflito militar à Gaza.
"Talvez isto crie uma nova oportunidade para explorar as conversações de paz. Não há nenhum país que tenha a capacidade de ajudar a unir as partes da maneira que os EUA fazem, principalmente porque é o único país que realmente tem influência sobre Israel", argumenta Weiner.