Intolerância, racismo às claras e fuzis à mostra: O que vi (e senti) no maior protesto movido pelo ódio em décadas nos EUA

Nosso repórter relata cenas de caos em Charlottesville, onde três pessoas morreram e 19 ficaram feridas em meio a confrontos entre grupos de extrema-direita e antifascistas.

13 ago 2017 - 14h04
(atualizado às 15h23)
Mulher chora em frente a flores no local onde uma mulher morreu e 19 pessoas ficaram feridas, em Charlottesville, EUA
Mulher chora em frente a flores no local onde uma mulher morreu e 19 pessoas ficaram feridas, em Charlottesville, EUA
Foto: BBC News Brasil

Quando propus minha ida neste fim de semana a Charlottesville, uma cidade universitária de 50 mil habitantes ao sul de Washington, nos Estados Unidos, minha ideia era conhecer os diferentes matizes da nova direita americana após a eleição de Donald Trump.

O protesto "Unite the Right", ou "Unir a Direita", até então não tinha muito espaço na imprensa. Alguns blogs chamavam atenção para o ato, alguns com elogios à celebração do orgulho e nacionalismo americano, outros com críticas à segregação que estes valores podem carregar.

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Meu vagão no trem era heterogêneo. Famílias voltavam para a cidade com bebês para o almoço de domingo com os avós, estudantes vinham reencontrar pais e namorados, um ou outro jornalista fingia que estava ali por coincidência e achava que estava sendo discreto mexendo em seus computadores, tablets e celulares freneticamente (eu era um deles).

Quatro homens chamavam atenção na fileira ao lado. Carecas, fortes, cheios de tatuagens, vestindo calça bege e camisa branca, eles conversavam sobre algo sério - e me olhavam muito feio quando eu tentava ler seus lábios, que sussurravam e me deixavam pescar apenas palavras soltas. Uma delas foi "hate" - ou ódio.

Pois foi exatamente ódio o que eu encontrei nas horas seguintes.

Enquanto desfazia a mala, li no Twitter boatos de uma possível demonstração-surpresa dos manifestantes, que haviam feito um acordo com a prefeitura para desfilar pela cidade só no dia seguinte.

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Era sexta-feira à noite e eu corri para a Universidade de Virginia, ao norte do centro da cidadezinha de casarões preservados e praças com monumentos antigos. O campus estava escuro, vultos andavam de um lado para o outro em busca de algum sinal.

Um grupo de aproximadamente 20 homens subiu em passo acelerado em direção ao jardim interno. A 50 metros de distância, um grupo menor os seguia. Corri até eles pela penumbra.

O segundo bloco era formado por estudantes que escreviam para um site local. Anne, uma jovem de uns 20 anos, no máximo, me explicou: "São eles. Estão tentando nos despistar e andando em círculos".

Em 15 minutos eu entenderia o que ela quis dizer com "eles". Depois de circular todos os cantos do campus, um dos homens gritou: "Vamos!"

Eles começaram a correr. Sabiam que nós os seguiamos e não diziam nada. Corremos por quase 10 minutos até chegar ao alto de um vale.

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Tensão em protesto em Charlotteville, EUA
Foto: BBC News Brasil

"Eles" estavam lá embaixo. Centenas de homens e mulheres, incluindo algumas crianças, se organizavam em filas, rindo alto e brincando entre si enquanto acendiam tochas. Estava muito escuro e a luz das tochas de madeira tingia de vermelho o gramado, onde estudantes normalmente jogam beisebal e futebol americano.

Um homem com tom agressivo começa a falar no megafone. "Alinhem-se agora! Duas filas! Todos! Agora!"

A linha iluminada pelas tochas já alcançava o horizonte quando eles começaram a marchar. "Vocês não vão nos substituir!", "Judeus não vão nos substituir!", "Vidas brancas importam!", gritavam, bradando também ofensas a gays e estrangeiros.

"Sou nazista, sim", "A negra está assustada", "Suma daqui, viadinho", "Ele não é americano". Os gritos raivosos, partindo do meio das tochas que homenageavam a Ku Klux Klan (grupo racista que promoveu linchamentos, enforcamentos e assassinatos de negros), bastões de baseball e socos ingleses.

A caminhada terminou com uma briga generalizada com estudantes que tentaram impedi-los de se aproximar da estátua de Thomas Jefferson, terceiro presidente americano, em frente ao prédio principal da universidade.

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Mas tudo isso era só um prenúncio do que aconteceria no dia seguinte, o sábado da marcha oficial.

Acordei com gritos na praça ao lado do hotel: "Escória racista!"

Ali, grupos antifascistas - opositores aos supremacistas brancos, em muitos casos também agressivos e radicais - se reuniam para contra-atacar. Nascida e criada em Charlottesville, a senhora que servia o café da manhã comentava com a gerente.

"O Manny disse que está assustado. Acredita que mandaram ele vestir a farda e vir trabalhar?"

Depois descobri que Manny é policial aposentado há quase dez anos. Ele havia dito que os colegas temiam pelo pior, porque a quantidade de homens se aglomerando nas praças da cidade só crescia.

"Manny disse que só uma tempestade seria capaz de controlar isso aqui", contou a cozinheira. A previsão do tempo de fato indicava chuvas durante todo o dia.

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Mas não se confirmou.

Durante quatro horas, homens com suásticas tatuadas no crânio e bandeiras confederadas (símbolo do grupo que lutou na guerra civil americana por manter a escravidão) trocavam socos, pauladas e cusparadas com jovens vestindo máscaras e carregando bastões de madeira e sprays de pimenta.

Eles se batiam até sangrar, e policiais como o velho Manny assistiam a tudo de longe, visivelmente impotentes diante de grupos numerosos, estimados entre 2 e 6 mil pessoas, segundo a mídia local.

Supremacistas brancos em marcha de extrema-direita em Charlotesville, na Virgínia
Foto: BBC News Brasil

Os nacionalistas, neonazistas, supremacistas brancos e simpatizantes se concentravam na praça, em torno da estátua do general confederado Robert E. Lee, um dos principais defensores da escravidão.

Antifascistas, punks, anarquistas e simpatizantes (incluindo hippies de roupas coloridas e tranças como os que vimos nos vídeos de Woodstock) ficavam do lado de fora.

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Para entrar na praça, os nacionalistas precisavam atravessar um paredão formado por antifascistas. Durante o caminho saltavam ofensas pesadas de ambos os lados, e volta e meia os ataques verbais se tornavam físicos.

Fui pego de surpresa em uma dessas escaladas violentas. Eu tentava filmar o encontro entre os grupos, quando uma briga generalizada começou. Nacionalistas fechavam os olhos e batiam com bandeiras em tudo o que viam pela frente e antifascistas faziam o mesmo com sprays de pimenta.

O spray me atingiu pelo corpo todo - e por uns três minutos eu não enxergava nada e corria, tentando sair da pancadaria. Alguém me puxou com força e me carregou. Eu não tinha ideia de quem era e temia o que fariam comigo. "Calma, calma, você vai ficar bem."

A jovem fazia parte de um grupo de estudantes voluntários que levavam materiais de primeiros-socorros, água e comida para atender a feridos. Eles passaram vinagre no meu rosto e um produto que até agora não entendi qual é - mas tirou o ardor dos meus olhos na hora. Eles me salvaram no meio da confusão.

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Voltei à cobertura para a BBC Brasil e o que mais impressionava a meu redor, mesmo a mim, brasileiro, era a quantidade de armas. Grupos uniformizados, representando os dois lados dos protestos, carregavam pistolas e fuzis, com cintos repletos de munição.

Na Virginia, quem tem porte de armas e determinados tipos de licença pode circular pelas cidades exibindo o armamento. A combinação entre a primeira e a segunda emendas da Constituição americana - liberdade de expressão e direito ao porte de armas, respectivamente - faziam em Charlottesville uma combinação tensa.

O medo era que, a qualquer momento, alguém disparasse e um tiroteio de proporções imensas deixasse uma multidão de feridos.

Felizmente, isso não aconteceu. O governador declarou estado de emergência, e em poucos minutos helicópteros, tanques e centenas de policiais de diferentes grupos, incluindo a Força Nacional, chegaram à cidade e ordenaram a saída dos grupos nacionalistas da praça. Eles seguiram em fila para uma estrada que leva para o subúrbio local.

Pelo megafone, a polícia dizia: "Evacuem a área. Evacuem a área. Quem continuar aqui será preso."

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A maior parte das ruas do centro foi bloqueada e eu fiquei preso em um quarteirão, sem poder ir até o hotel - único lugar onde eu poderia plugar meu computador numa tomada, já que todo o comércio estava fechado.

Nesse momento, pela segunda vez, encontrei uma onda inspiradora de solidariedade em meio ao ódio que pontuou o fim de semana em Charlottesville. Grupos de moradores, muitos deles idosos, circulavam pelas poucas ruas liberadas, oferecendo garrafas de água gelada e pacotinhos com batatas chips e amendoins.

"Se hidrate, se alimente", diziam, sorrindo. "Quanto custa?", perguntei automaticamente, achando que eram vendedores ambulantes. "Fazemos por amor", respondeu a senhora de cabelos brancos e avental azul, dando um tapinha em minhas costas.

Dois homens com tatuagens de símbolos nacionalistas estavam sentados em um canto, mexendo no celular. O grupo foi até eles também: "Beba água. Se hidrate. Se alimente".

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Passaram-se duas horas até que as ruas do centro fossem abertas novamente. Não demorou até que os grupos que tentavam circular voltassem a se reunir.

Quando tudo parecia mais calmo, tentei seguir um pequeno grupo de nacionalistas que se dirigia até um estacionamento para entrar na van que os trouxe a cidade. Nesse momento, um carro cinza, completamente destruído, passou em alta velocidade.

Alguns antifascistas aplaudiram, achando que o carro do nacionalista havia sido depredado. Estavam errados.

A duas quadras de onde estávamos, uma multidão gritava após o carro ter atropelado dezenas de pessoas e fugido em marcha ré, para depois acelerar em fuga em frente ao estacionamento onde eu estava.

Quatro ambulâncias chegaram rápido - pessoas ensanguentadas eram carregadas, parentes e amigos choravam em desespero e a polícia tentava, à força, isolar o local. Mais tarde soubemos: Heather Heyer, uma mulher de 32 anos, morreu atropelada (no domingo três mortes foram confirmadas), enquanto outras 19 pessoas ficaram feridas.

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A cidade foi novamente evacuada por algumas horas. Anoiteceu, e a rua de pedestres do centro histórico, que na véspera estava lotada de estudantes comendo e bebendo animados, antes de entrar nas boates locais, estava deserta. Jornalistas e policiais eram os únicos a ir e vir, sempre em busca de "algo novo".

No local do atropelamento, um grupo de jovens acendia velas e trazia flores. Eles se organizaram em roda e começaram a rezar, abraçados.

A chuva prevista para a manhã daquele sábado enfim começou a cair. Inicialmente leve, uma garoa, depois mais pesada - o que lentamente esvaziou o centro por completo.

Charlottesville estava de luto.

Na manhã deste domingo, moradores varriam calçadas e tentavam recomeçar. No café da manhã do hotel, a cozinheira conversava com a gerente.

"Manny ainda não acordou, coitado. Está em choque. Sue (sua esposa) disse que ele não dorme tanto há 30 anos."

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