Mudança racial nos EUA será inevitável e positiva, afirma pesquisador

O sociólogo e demógrafo William Frey diz que o crescimento do país dependerá cada vez mais dos negros e das novas minorias de latinos, asiáticos e multirraciais e que a maior diversidade do país deve impactar as próximas eleições presidenciais, a favor de Biden e contra Trump.

17 out 2020 - 14h59
'Os Estados Unidos terão que aumentar sua imigração novamente, como fizeram nas décadas anteriores'
'Os Estados Unidos terão que aumentar sua imigração novamente, como fizeram nas décadas anteriores'
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O ano de 2020 ficou marcado pelos maiores protestos raciais nos Estados Unidos desde a tumultuada década de 1960.

Paradoxalmente, quando Barack Obama venceu as eleições de 2008 e tornou-se o primeiro presidente americano negro, muitos acreditaram que isso marcaria o início de uma nova etapa na vida política dos Estados Unidos, na qual as diferenças raciais não teriam mais tanto peso.

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A vitória de Obama, pensavam eles, seria a consagração de um país mais diverso, que substituiria o predominantemente branco, anglo-saxão e protestante.

Porém, Obama foi sucedido na Casa Branca por Donald Trump, vitorioso com uma mensagem dirigida justamente ao eleitor branco e protestante que em certa medida, segundo muitos analistas, se sentiu ameaçado ou deslocado naquele outro país mais heterogêneo.

A vitória de Trump pareceu um revés para a narrativa pós-racial que acompanhou o triunfo de Obama.

Esse resultado eleitoral, no entanto, não poderia modificar outra realidade local: a importante mudança demográfica por meio da qual protestantes, brancos e anglo-saxões deixarão de representar a maioria do país, embora continuem a ser o grupo racial mais numeroso.

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Do Brookings Institution, um centro de estudos com sede em Washington, o demógrafo William Frey, que é doutor em Sociologia pela Universidade Brown, passou anos acompanhando essa tendência.

Em seu livro Diversity Explosion (Explosão de diversidade, em tradução livre), Frey retrata como "novas minorias" (latinos, asiáticos e cidadãos multirraciais) junto com os afro-americanos estão transformando o perfil demográfico dos Estados Unidos.

Na entrevista a seguir, Frey comenta sobre essas mudanças, que afetarão o futuro da principal potência mundial, e como elas podem impactar no curto prazo os resultados das próximas eleições presidenciais.

BBC Mundo - A candidata democrata a vice-presidente Kamala Harris é a primeira mulher negra de raízes sul-asiáticas a fazer parte da chapa eleitoral à Casa Branca de um dos dois principais partidos do país. O que isso diz sobre a importância da questão racial na política dos Estados Unidos?

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William Frey - Acho que isso mostra que o Partido Democrata reconhece que somos um país de grande diversidade racial e que essa diversidade será muito maior no futuro. E os democratas querem tirar vantagem disso, não apenas para esta eleição, mas para plantar uma semente e se conectar com jovens que são muito mais racialmente diversificados do que o resto da população.

Kamala Harris é a primeira afro-americana a concorrer à Vice-Presidência por um dos dois grandes partidos dos Estados Unidos
Foto: Reuters / BBC News Brasil

BBC Mundo - Alguns especialistas consideram que a nomeação de Harris não significa a normalização da questão racial e étnica nos Estados Unidos, mas um sinal de que essas eleições serão marcadas por uma luta entre o conservadorismo e o liberalismo racial, entre os Estados Unidos brancos e aquele país diferente do que você retrata em seu livro.

Frey - É importante entender que estamos vendo o aumento da população multirracial e que isso vai crescer ainda mais porque a população jovem é mais diversificada.

Na realidade, o declínio de brancos entre menores de 18 anos tem sido registrado desde 2000. Portanto, provavelmente o censo de 2020 mostrará que cerca de metade dos menores de idade pertencem a grupos ou se identificarão com grupos que não são brancos.

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Essas pessoas estão na verdade se misturando ao resto do país. Muitas pessoas não entendem isso até terem filhos ou netos que acabam se casando com pessoas de outras raças. Com o tempo, acho que o que vai acontecer é que as comunidades vão se tornar mais diversificadas.

Além disso, o contingente de pessoas que fazem parte de minorias estão crescendo no centro do país, em lugares que até agora não eram racialmente diversos.

Muitos estudos revelam que o que eles chamam de "conservadorismo racial" são atitudes presentes em pessoas que não têm interação no seu dia a dia com pessoas de outras partes do mundo ou de uma cultura diferente, mas, quando isso acontece, elas têm uma atitude muito diferente.

Um exemplo é a Califórnia. Em geral, é um Estado muito mais aberto a esse tipo de diversidade, porque lá tudo isso aconteceu muito antes do que no resto do país. Portanto, isso vai mudar com o tempo.

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Se você olhar a história dos Estados Unidos e voltar cem anos, verá que mesmo naquela época éramos um país de imigrantes. Eles não eram latinos ou asiáticos, mas pessoas do sul e do leste da Europa que pareciam um pouco diferentes da herança anglo-saxônica de muitas pessoas no país.

Mas esses imigrantes seguiram em frente e se integraram e agora são considerados americanos. É o que vai acontecer no futuro com as chamadas "novas minorias" nos Estados Unidos.

De acordo com Frey, as novas gerações estão muito mais abertas à diversidade e apoiam a inclusão
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC Mundo - Em seu livro, o senhor fala sobre um abismo de gerações que afeta a política na América. Pode explicar em mais detalhes?

Frey - O hiato cultural geracional tem a ver com aquela geração mais velha que não tem muita interação com esses jovens.

Como os estudos mostraram durante a primeira parte desta década, eles (os mais velhos) estavam com medo. Eles não foram muito receptivos à chegada de imigrantes, enquanto os jovens, mesmo os brancos, são muito mais abertos a isso. Eles (a geração mais velha) são parte do motivo pelo qual Trump ganhou a eleição de 2016, porque ele jogou com esses medos.

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Mas esses estudos mostram mudanças. Agora, os millennials (pessoas nascidas entre 1981 e 1996) mais velhos estão com 38 anos. Eles são uma das gerações com maior diversidade racial e uma parte crescente do eleitorado.

A lacuna cultural geracional continua a existir, mas não é mais tão acentuada, porque a população mais velha está se tornando uma parte menos dominante do eleitorado em comparação com o que era em muitas partes do país.

Além disso, estudos recentes mostram que agora eles estão um pouco mais abertos a essas mudanças do que no passado. A lacuna ainda existe, não há dúvida, mas se tornará cada vez menos proeminente à medida que as novas gerações envelheçam e as atitudes das pessoas mudem.

Trump tem sua principal base de apoio entre os eleitores brancos
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC Mundo - Alguns especialistas acreditam que, independentemente da idade e raça, existe uma lacuna entre os cristãos brancos e o restante da população. Como você vê isso?

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Frey - Eu vi alguns estudos e acho que pode ser verdade. Certamente, os evangélicos brancos são um pequeno grupo dentro da população branca, mas eles são, sem dúvida, mais conservadores.

BBC Mundo - Em seu livro, o senhor argumenta que a explosão da diversidade na demografia dos EUA será uma coisa boa para o país, mas com muitas tensões. Não existe um grande risco de que as coisas deem errado?

Frey - Não acredito. Não creio que as tensões sejam tão generalizadas como às vezes são apresentadas na mídia. Por dois mandatos, tivemos Barack Obama como presidente, que era muito popular em muitas partes do país.

Muitos dos Estados que normalmente são considerados republicanos votaram nele, principalmente no Sul e no Oeste do país. Estados como Nevada e Colorado votaram no Partido Democrata pela primeira vez em muito tempo, porque Obama era presidente. Há uma visão de que esse é o tipo de mudança que vai acontecer no futuro.

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Parte do problema é que algumas pessoas, não só o atual governo como também outros políticos, tentam capitalizar esses temores e exagerar o que essas divisões significam para o povo.

Um bom exemplo foi visto durante a Convenção Nacional Republicana, quando o presidente disse que os subúrbios iriam desaparecer ou algo assim, porque estavam mudando para pior.

Ele estava tentando assustar os residentes dos subúrbios que podem ser brancos de classe média e fazê-los pensar que não terão o mesmo estilo de vida no futuro, mas acontece que ele estava falando sobre uma América suburbana que não existe há muito tempo, há 30 ou 40 anos. Se você olhar para os subúrbios hoje, encontrará pessoas de todas as origens, pobres, negros, brancos e latinos.

Mas há pessoas que vivem em partes do país que ainda não passaram por essas mudanças, que podem acreditar nesse tipo de narrativa antes de realmente entender o que está acontecendo.

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Acho que um líder melhor para o país seria alguém que tenta reunir as pessoas em torno disso e entende por que isso é importante.

A razão pela qual digo no meu livro que a explosão da diversidade é boa para o país é que a população branca anglo-saxã vai encolher em breve e, de fato, já está diminuindo entre os mais jovens do país.

Como país, estamos crescendo em termos de juventude e vitalidade de nossa força de trabalho, ao contrário de alguns países europeus e do Japão, cujas populações estão envelhecendo rapidamente.

Apesar do que diz o atual governo, as pessoas vão perceber que temos que aumentar nossa imigração novamente como fizemos nas décadas anteriores, porque isso significa que nossa população não só continuará crescendo, mas nossas conexões com outras partes do mundo também vão aumentar, o que é muito importante em um mundo globalizado.

Portanto, por muitas razões, não apenas raciais, mas também por necessidades demográficas em geral, temos que crescer aumentando nossa população jovem. Como muitos outros países, precisamos abrir nossos braços para pessoas de diferentes origens.

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BBC Mundo - O senhor mencionou Obama como exemplo, mas quem ocupou a Casa Branca depois dele foi Trump. Como você vê a atual mistura de tensões étnicas e raciais nos Estados Unidos?

Frey - Trump jogou com isso, e não foi para o bem do país. Mas lembre-se de que ele perdeu o voto popular. Ele venceu nas urnas obtendo 80 mil votos em três Estados que não estavam crescendo e com o apoio de eleitores rurais e idosos, enquanto Obama venceu por margens muito maiores.

Sim, houve uma espécie de reação contra essas mudanças que Trump tentou exagerar e que lhe permitiu obter pequenos triunfos. Mas acho que a população votante hoje é mais diversa do que era antes, e acho que muitas pessoas estão vendo o lado negativo desse tipo de política que causa divisões nos Estados Unidos.

Quando Obama chegou à Casa Branca, alguns pensaram que uma fase política pós-racial estava começando nos Estados Unidos
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC Mundo - O que se pode esperar nas eleições de 2020?

Frey - Em 2020, a questão racial não é a única que causa divisão nos Estados Unidos. Temos uma pandemia e uma economia piorando. Portanto, espero que Biden se saia melhor do que Trump.

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Muitas pessoas estão chateadas com o governo pela pandemia, mas também tivemos protestos contra a injustiça racial. Os jovens estão muito conscientes disso, mas os idosos também estão mais em sintonia com a necessidade de maior igualdade e inclusão.

Acho que isso vai ajudar Biden. A demanda por mais justiça racial adicionada à pandemia e uma economia em declínio deve dar ao Partido Democrata uma boa chance.

A crise econômica devido ao coronavírus deixou milhares de pessoas dependendo de ajuda para se alimentar
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC Mundo - Voltando à questão racial, pode essa tendência de eleitores brancos apoiarem o Partido Republicano, enquanto os eleitores minoritários apoiam o Partido Democrata, levar a uma eleição cada vez mais polarizada e a uma sociedade mais dividida?

Frey - Não acredito. Para começar, os eleitores brancos não estão votando apenas nos republicanos. Os dados mostram que homens e mulheres brancos com educação superior estão votando ou favorecendo candidatos democratas. As pesquisas dizem que eles vão votar em Biden.

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Mesmo os brancos sem educação superior que tendem a apoiar Trump agora não o apoiam de forma tão forte e decisiva como em 2016 e 2018.

Os eleitores brancos agora têm menos probabilidade de votar em republicanos e mais probabilidade de votar em democratas em comparação com 2016.

Acredito que uma parte cada vez menor dos eleitores brancos apoia fortemente Trump, embora ainda seja possível que eles façam a diferença, como aconteceu em 2016 na Pensilvânia, no Wisconsin e no Michigan.

Mas a demografia está mudando, e os jovens brancos, não apenas as minorias e os millennials, têm muito menos probabilidade de votar em Trump do que as gerações mais velhas.

Em Michigan, um estado-chave para a vitória de Trump em 2016, o presidente ainda mantém um forte apoio.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC Mundo - O senhor diria que, para permanecer relevante no futuro, o Partido Republicano deve fazer mais para alcançar as minorias raciais?

Frey - Se continuarem a apostar no mesmo e cada vez mais reduzido grupo de eleitores brancos sem educação universitária, os republicanos não obterão votos suficientes nem mesmo para ganhar nos colégios eleitorais, muito menos o voto popular, no qual perderam em sete das últimas oito eleições.

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BBC Mundo - Que papel os latinos desempenharão nestes Estados Unidos mais diverso de que o senhor está falando?

Frey - Os latinos representam cerca de 18% da população, mas são um quarto dos jovens com menos de 30 anos. Ao contrário do que Trump diria, a maioria dos latinos nasceu nos Estados Unidos, e essa parcela da população está crescendo mais com nascimentos em solo americano do que com a imigração. Eles terão um grande papel nas próximas eleições.

BBC Mundo - Isso tem sido dito em cada eleição, mas, até agora, eles não tiveram o papel decisivo que lhes foi atribuído.

Frey - Em parte, isso se deve ao fato de sua presença estar concentrada em Estados que já eram pró-democratas ou, no caso do Texas, em um lugar fortemente republicano, de modo que eles não conseguiram fazer a diferença.

A Califórnia, por exemplo, vota fortemente nos democratas. Há muitos latinos lá, mas eles não conseguem fazer a diferença porque é um Estado em que, independentemente dos hispânicos, os democratas já estavam vencendo.

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Agora, os latinos estão mais espalhados. E há mais Estados onde isso está em jogo. Acho que o Arizona, por exemplo, é um Estado que tem muitos latinos e que pode se voltar para os democratas. Nesse caso, eles terão feito a diferença.

A Flórida é um Estado-chave que oscila entre os dois partidos. Os latinos podem fazer a diferença lá.

Todos se perguntam sobre o Texas, porque é um Estado com uma população muito diversa que em algum momento pode pender para os democratas. Se isso acontecer, os latinos terão um grande papel nisso.

Além das eleições presidenciais, os latinos já fazem a diferença em muitas eleições locais e estaduais em diferentes partes do país.

O voto latino ganha mais peso a cada eleição
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC Mundo - O senhor poderia explicar como tem sido o processo de dispersão dos latinos nos Estados Unidos?

Frey - Os latinos estão presentes nos Estados Unidos há muito tempo. Em 1965, houve uma grande mudança nas leis de imigração que tornou o país muito mais aberto e deixou de dar prioridade aos imigrantes europeus.

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A partir de então, mas especialmente desde o final da década de 1980, muitos imigrantes latinos começaram a chegar em grande número ao longo de várias décadas.

Agora, o crescimento é impulsionado mais pela taxa de natalidade do que pela imigração, e também tem havido uma dispersão de latinos por todo o país, porque não apenas sua presença está crescendo em lugares como Califórnia, Texas, Flórida ou Nova York, mas também está aumentando nos Estados do Oeste, Estados do Sudeste e, em certa medida, no Centro-Oeste e Nordeste. Portanto, agora há uma grande dispersão de latinos.

BBC Mundo - Como essa dispersão pode tornar o voto latino mais relevante?

Frey - Embora representem 18% da população do país, os latinos representam apenas 13,5% daqueles com direito a voto. Isso porque alguns ainda não estão em idade de votar. Mas esse grupo aumenta a cada ano.

Em alguns Estados, como o Arizona, são 31% das pessoas com direito a voto; na Flórida, são 23%; e no Texas, 31%. Mesmo em alguns Estados como a Pensilvânia, onde os latinos são apenas 6,6% dos eleitores, eles podem fazer a diferença em uma eleição acirrada se votarem fortemente nos democratas.

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Essa possibilidade não existia há oito anos.

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