'Nunca passei tão perto da morte': os fotógrafos brasileiros que retratam batalha por Mossul

17 nov 2016 - 08h40
(atualizado às 09h54)
Gabriel Chaim (esq.) está há sete meses na frente de batalha em Mossul; Felipe Dana (dir.) está acompanhando os deslocados pelo conflito
Gabriel Chaim (esq.) está há sete meses na frente de batalha em Mossul; Felipe Dana (dir.) está acompanhando os deslocados pelo conflito
Foto: Jana Andert / Mstyslav Chernov / BBC News Brasil

Eles não se conhecem e não trabalham juntos. Em comum, cobrem a mesma guerra. Mas com olhares distintos.

O paraense Gabriel Chaim é fotógrafo freelancer - um profissional independente -, enquanto o carioca Felipe Dana trabalha para a agência de notícias americana Associated Press (AP).

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Ambos trabalham em um ambiente extremamente hostil: desde outubro, pelo menos dois jornalistas morreram e 14 ficaram feridos na cobertura da batalha para recuperar Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, transformada em reduto do grupo autodenominado Estado Islâmico (EI).

A informação é do Journalistic Freedoms Observatory (Observatório da Liberdade de Imprensa, em inglês), organização independente baseada na cidade iraquiana de Nínive e que tem registro de 320 jornalistas iraquianos e estrangeiros trabalhando na região.

'Nunca passei tão perto da morte'

"Venho cobrindo os curdos. Cheguei ao Curdistão iraquiano para acompanhar a retomada das cidades nos arredores de Mossul. Estou há sete meses no front, acompanhando um batalhão", conta Chaim por telefone.

Chaim (de capacete) vive a rotina da frente de batalha lado a lado com os soldados iraquianos - e se sente como um deles
Foto: Caue Ito / BBC News Brasil

"Acabei de chegar em Erbil (a 80 km de Mossul) depois de uma operação de 22 dias. Foi um terror, nunca passei tão perto da morte como nessa última operação, na cidade de Bashiqa. Foi incrivelmente perigoso. Vi bombas, tiros, ataques suicidas...mortos e feridos. Estou agora colocando minha cabeça no lugar, ficando bem, para seguir outra operação daqui a sete dias."

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Cerca de cinquenta mil homens das forças de segurança iraquianas, combatentes curdos iraquianos (os peshmergas), grupos tribais sunitas e milícias xiitas participam dos combates, com apoio da coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos.

'Soldado sem arma'

"Quando você fica muito tempo no front, acaba se tornando quase um soldado. Um soldado sem arma. Minha arma é o meu equipamento fotográfico", diz Chaim, que passa longos períodos na frente de batalha.

Um médico americano voluntário do Exército curdo segura um bebê que perdeu toda a família na fuga de Mossul; Gabriel Cahim conta que, nesta noite, mais de 200 pessoas fugiram de Mossul e chegaram às trincheiras das forças curdas pedindo socorro (Foto Gabriel Chaim)
Foto: Gabriel Chaim / BBC News Brasil
Nesta foto de Gabriel Chaim, soldado curdo peshmerga é atingido por snipers do EI durante intensa troca de tiro na ofensiva para recapturar a cidade de Bashiqa, nos arredores de Mossul
Foto: Gabriel Chaim / BBC News Brasil

"Sempre gostei de ficar bastante tempo no front para tentar captar o dia a dia, não só da guerra, não só da bala, mas como esses soldados vivem. Não só aqui no Curdistão iraquiano, mas também na Síria."

"Essa é a essência do meu trabalho, tentar captar realmente o que acontece por trás da guerra. O dia a dia dos soldados."

Chaim tem 35 anos e começou a fotografar profissionalmente em 2012, depois de cursar gastronomia em São Paulo e passar uma temporada em Dubai, "estagiando e fotografando comida em restaurantes caros".

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"Depois fui para a Itália estudar fotografia. Meu sonho era cobrir conflitos", conta.

"Quando você está cobrindo um conflito, se depara com milhares de pessoas que perderam as vozes, que não têm mais como suplicar por ajuda. Todos os dias eu realizo um sonho quando consigo dar voz a essas pessoas."

Chaim diz que tem uma missão:

"Ser um fotógrafo numa área de conflito é tudo na minha vida. Não sei viver sem isso e é a única coisa que eu sei fazer hoje. Todas as vezes que volto para o Brasil, para uma vida cheia de rotinas e normalidades, parece que tudo aquilo não me pertence mais. Sinto muita falta de estar vivendo o dia a dia de uma área em conflito."

Ele conta que tem se dedicado mais a filmar do que a fotografar a frente de batalha. Seus trabalhos têm sido exibidos pela rede americana CNN, a alemã Der Spiegel TV e, no Brasil, pela Rede Globo. Em dezembro, deve apresentar um episódio da série Zonas de Conflito, do History Channel.

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Chaim diz se identificar muito com os soldados:

"É muito importante fazer com que as pessoas com quem estou trabalhando em conjunto, os soldados, se sintam confortáveis com a minha presença. Gosto de parecer um deles, de estar com eles."

"Nessa operação de 22 dias, dormi no chão com o colchão que eles têm, com os cobertores que eles têm. Faço exatamente tudo que eles fazem. No almoço, comia como eles arroz com feijão branco; no café da manhã, pão com queijo industrializado. Não levo comigo nada diferente. Não quero ser ninguém especial nem diferente deles. Quero que os soldados me olhem como um igual."

Em meio à saudade, o fotojornalista criou uma estratégia para "proteger" a família.

"Jamais publico nada pessoal nas redes sociais, para não preocupar as pessoas que ficaram para trás. Minha mãe entende hoje que esse é o meu trabalho, mas fica extremamente triste e preocupada quando sabe que estou no front."

"Nunca conto para ninguém onde estou. Os parentes e amigos sabem que estou numa zona de conflito, mas não sabem o que acontece. Ninguém sabe, na verdade."

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A ofensiva para a retomada de Mossul tem sido extremamente difícil. Os militares dos EUA calculam que o Estado Islâmico tenha entre cinco mil e oito mil combatentes na região. Eles estão escondidos entre a população, estimada em 1,5 milhão de habitantes.

Retrato do sofrimento

O fotojornalista carioca Felipe Dana, de 31 anos, está baseado em Erbil. Ele explica que seu foco é o drama humano - a população atingida pela guerra.

"Estou focando nas pessoas deslocadas pelo conflito, especialmente nas famílias. Elas são mais importantes do que o tiroteio, do que as bombas. O mais interessante são as pessoas, o que está em volta do conflito. É a destruição de cidades inteiras, com milhares de pessoas vivendo nos escombros", diz.

"Seguimos o Exército. Quando as tropas chegam, começam os ataques aéreos e por terra. As pessoas saem das casas e escombros com bandeiras brancas. Uma quantidade impressionante de crianças e mulheres", acrescenta.

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Dana encontrou crianças brincando e jogando bola em meio aos escombros, com a fumaça de bombardeios e incêndios dos poços de petróleo no horizonte. "Parece uma cena de filme. É surreal", conta.

"Na cidade de Qayara, vi pessoas com a camisa da seleção brasileira, mas sem o escudo. Me contaram que o EI arranca o escudo de todas as camisas de times", lembra o fotojornalista.

"O Estado Islâmico não deixa as pessoas saírem. As vezes você vê uma casa com bandeira branca, mas há atiradores do EI escondidos no telhado. Vi um garoto de 13 anos lutando pelo EI."

Cena que se repete

Os EUA calculam que mais de 200 mil pessoas serão desalojadas nas próximas semanas.

"É uma cena que se repete. Nos dias seguintes a um ataque, milhares de pessoas fogem. Elas andam pela rua aos milhares, levando tudo o que conseguem. São filas de centenas de carros supervelhos com 10 pessoas dentro ou mais, caminhões, tratores, tudo o que você possa imaginar."

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Essas pessoas seguem para os campos de refugiados iraquianos. Calcula-se que mais de 35 mil já tenham fugido de Mossul, muitas feridas.

Perto da frente de batalha, conta Dana, "é grande a quantidade de mortos e feridos".

"Os relatos das pessoas em fuga são impressionantes", diz, lembrando, como exemplo, que um morador mostrou um vídeo em que matava um combatente do Estado Islâmico. "Ele se vingou arrancando o coração e a cabeça do homem."

Crianças contaram ao fotojornalista que antes aprendiam inglês, mas agora não estudam mais nada - desde que os extremistas assumiram o controle da cidade, há dois anos, o professor do idioma não tem permissão para trabalhar.

Fumar é proibido, ter celular também. Qualquer transgressão às ordens significa morte no território dominado pelo EI.

Filho de uma médica e um engenheiro e morador do Jardim Botânico, bairro nobre da zona sul do Rio de Janeiro, Dana começou a fotografar sozinho, aos 15 anos: "Foi uma vontade muito pessoal. Não tenho jornalistas nem fotógrafos na família".

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Trabalhou como assistente de vários fotógrafos de publicidade no Brasil e na Austrália, onde foi estudar. Aos 18 anos, já tinha uma carreira.

"Hoje vi uma criança de três anos carregando um saco de arroz de cinco quilos. Ela mal conseguia andar. Numa hora dessas, você vai ajudar também. É o mais comum", conta Dana.

Para ele, essa é a parte mais difícil do trabalho.

"São milhares de pessoas que precisam de tudo. Eu me sinto fazendo o mínimo. Divido a minha comida, se me pedem. Estou simplesmente sendo humano."

A disciplina e a concentração ajudam o fotojornalista a minimizar seu próprio sofrimento.

"Não sofro imediatamente, só depois, quando termino o trabalho e reflito sobre o que vivi. Consigo sobreviver emocionalmente, porque tento não pensar nas piores coisas que vejo."

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