A Rússia faz questão de passar uma mensagem dupla: "temporariamente", os Estados Unidos não poderão mais fiscalizar os arsenais nucleares russos, anunciou o Kremlin nesta semana. No entanto, o Ministério do Exterior do país prometeu se ater aos termos do acordo New START, cujo "papel único" disse prezar, como "importante instrumento para preservação da segurança e estabilidade internacionais".
Esta é a primeira vez que o Kremlin suspende as inspeções americanas, e a medida mostra até que ponto a guerra na Ucrânia compromete as relações entre as duas potências. No website da pasta, o vice-ministro russo do Exterior, Serguei Ryabkov, afirma: o que desencadeou o passo foi o anúncio pelos EUA de uma visita de inspeção nos próximos dias, o que constituiria uma "provocação declarada" no contexto das atuais tensões binacionais.
Cabe esclarecer: as fiscalizações recíprocas estão suspensas desde 2020, não devido a conflitos geopolíticos, mas à pandemia de covid-19. Um porta-voz do Departamento de Estado americano chamou a atenção para tal fato, acrescentando ser necessário manter esse importante aspecto da cooperação binacional, apesar das tensões.
"Vantagens unilaterais" para os EUA
O New START (Strategic Arms Reductions Treaty - Tratado para Redução de Armas Estratégicas) foi firmado em 2010. Nele, Moscou e Washington se comprometem a reduzir a 1.550 o número de suas ogivas nucleares; e o dos sistemas de lançamento - como mísseis intercontinentais, mísseis instalados em submarinos e aviões bombardeiros - a 800, no máximo. Para garantir isso, o acordo permite a cada parte realizar até 20 inspeções por ano no país cossignatário.
Do ponto de vista do Ministério do Exterior russo, a atual situação conferiria aos americanos "vantagens unilaterais", já que a Rússia estaria "privada de seu direito a inspeções em território dos EUA". E aqui entra em cena a invasão da Ucrânia, embora só indiretamente.
A guerra em si - com a Rússia de um lado, como agressora, e os EUA do lado oposto, como apoiador da Ucrânia - não é motivo para Moscou suspender as fiscalizações - pelo menos não é apresentado como justificativa oficial. Os russos apenas apontam que, devido às sanções ocidentais, seus inspetores teriam grandes dificuldades para ingressar nos EUA.
Além disso, lá seus funcionários correriam perigo de saúde, devido à nova alta de infecções pelo coronavírus. Caso se resolvam os problemas atuais, prossegue o ministério, se voltará "imediatamente" a permitir as fiscalizações na Rússia.
O New START é, no momento, a última de uma série de iniciativas de desarmamento entre as duas principais potências atômicas mundiais. Nos anos 1990 houve dois tratados do gênero: o START-I se encerrou em 2009, o START-II nunca entrou em vigor, e o resultado foi o atual acordo.
Já na década de 1970, os EUA e a União Soviética fecharam pactos de desarmamento nuclear, entre eles o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM), de 1972, do qual Washington se retirou unilateralmente em 2002. Em 2019, sob Donald Trump, o mesmo aconteceu com o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF).
No ano seguinte, o presidente republicano anunciou a saída do Tratado de Céus Abertos, que permitia voos de esclarecimento como medida para estabelecimento de confiança mútua.
O New START é o último remanescente dessa linha de acordos bilaterais de desarmamento nuclear entre as duas potências. Contudo, também o seu futuro é incerto: recém-prorrogado pelo prazo máximo de cinco anos, ele vigora inicialmente até 2026. E nisso nada deverá se alterar, com ou sem guerra na Ucrânia ou sanções, afirmam os russos.
Emprego de armas nucleares mais provável que na Guerra Fria
Mas o que será depois de 2026? O ministro russo do Exterior, Serguei Lavrov, queixou-se recentemente de que Washington não propôs novas negociações. Cerca de uma semana atrás, o presidente americano, Joe Biden, afirmou que seu governo estaria pronto a negociações sobre um acordo subsequente. Entretanto a guerra russa contra a Ucrânia representa um atentado contra os pilares da ordem internacional, ressalvou, urgindo a China a também participar de um eventual pacto pós-New START.
O arsenal atômico chinês é bastante menor do que o dos Estados Unidos ou o da Rússia. Em seu relatório anual de 2022, o instituto de pesquisas para a paz Sipri, de Estocolmo, estima em 350 o total de ogivas da China. Contudo o país ganha terreno rapidamente e - justo em face das apreensões ocidentais de que Pequim invada Taiwan - Biden está muito interessado em envolver a potência asiática nas negociações de desarmamento.
Contudo a China rejeita a proposta, do mesmo modo que Moscou, até o momento. No passado, os russos argumentaram que nesse caso se teria também que incluir as armas atômicas francesas e britânicas, que totalizam quase 500 ogivas.
Segundo o relatório do Sipri, o contingente atual de ogivas nucleares em todo o mundo - menos de 13 mil - é consideravelmente menor do que nos anos 80, durante a Guerra Fria, quando havia quase 70 mil artefatos nos diversos arsenais nacionais. No entanto, esse recuo está longe de ser tranquilizador, pois a modernização tecnológica compensa a redução numérica.
Hoje as armas nucleares são muito mais precisas, e o desenvolvimento de "mini nukes" - que não destroem um país inteiro, mas sim visam proporcionar uma vantagem tática geograficamente circunscrita, no contexto de um combate - torna o emprego das armas atômicas mais provável atualmente do que naquela época.
O relatório do Sipri aponta que, já no início de 2022, havia "sinais nítidos" de que "chegou ao fim" a gradual redução dos arsenais nucleares mundiais, registrada desde o fim da Guerra Fria. Além disso: "Todas as potências atômicas estão expandindo ou modernizando seus arsenais, e a maior parte desses Estados acirra sua retórica no sentido de um emprego das armas nucleares, conferindo-lhes um papel mais importante em suas estratégias militares. Uma tendência muito alarmante."
No contexto da invasão da Ucrânia por tropas russas, Moscou tem deixado claro que não descarta a o uso de armas nucleares.