Em um breve discurso feito na tarde desta sexta-feira (29/05) na Casa Branca, o presidente americano, Donald Trump, anunciou o "término da relação" do país com a Organização Mundial da Saúde (OMS) em plena pandemia de coronavírus.
"A partir de hoje encerraremos nossa relação com a Organização Mundial da Saúde e redirecionaremos estas verbas para outras necessidades globais, urgentes e merecedoras na saúde", afirmou o republicano, sem detalhar como tal rompimento seria feito.
No discurso, o presidente acusou a organização internacional de não ter independência em relação à China. Sua fala de dez minutos foi repleta de ataques ao país asiático, não só em relação à saúde (confira abaixo).
Trump disse que "a omissão da China sobre o vírus de Wuhan" espalhou a covid-19 para o resto do mundo.
"Autoridades chinesas ignoraram sua obrigações de relatar (casos) à OMS e pressionaram a organização a desviar (o foco do) o mundo quando o vírus foi descoberto pela primeira vez."
"O mundo está sofrendo hoje por consequência da má conduta do governo chinês", disse, defendendo que o país asiático "instigou uma pandemia global que custou mais de 100.000 vidas americanas" e "profundas dificuldades econômicas" em todo o mundo.
Os EUA são hoje o país com o maior número de mortes (102.709, segundo dados coletados pela universidade Johns Hopkins) e casos de coronavírus (1.744.258) em todo o mundo.
Representantes da China por sua vez acusaram os EUA de serem responsáveis pela propagação do vírus em seu próprio território, atribuindo o surto aos "políticos que mentem".
Washington vs OMS: capítulos anteriores
As críticas de Trump à OMS começaram no mês passado, quando o presidente ameaçou retirar definitivamente o financiamento dos EUA ao órgão caso ele não se comprometesse "com grandes melhorias substanciais nos próximos 30 dias", como disse em uma carta em termos duros enviada à direção da OMS em 18 de maio.
Em abril, o presidente americano já havia anunciado também a suspensão temporária de sua contribuição financeira à OMS, a maior participação de um único país ao orçamento da organização.
Todos os países-membros da ONU são obrigados a contribuir com o orçamento da OMS. Essa contribuição é proporcional à sua riqueza e à sua população. Mas, além das contribuições obrigatórias, é comum que países como EUA e China façam também outros repasses voluntários.
"A China tem total controle sobre a OMS, apesar de pagar apenas US$ 40 milhões por ano — comparado ao que os EUA tem pagado, que é aproximadamente US$ 450 milhões por ano", acusou Trump nesta sexta-feira.
O Departamento de Estado dos EUA enviou à imprensa, após o anúncio de Trump, uma nota afirmando que os "Estados Unidos continuam liderando a resposta global à covid-19", com menção a bilhões de dólares cedidos por Washington à assistência humanitária e ao financiamento de pesquisas científicas em outros países, além de parcerias com o setor privado para fornecimento de ventiladores mecânicos fora do território americano.
Como seria um 'término' com a OMS?
Mestre e doutora em direito internacional pela Universidade de São Paulo (USP), Elaini Silva destaca que é preciso cautela ao encarar o anúncio de Trump, já que "romper com a OMS" não é simples e, tecnicamente, não existe — ao menos não nos termos apresentados por Trump.
"Existe uma linguagem formal e técnica para diferentes tipos de comportamento (na diplomacia), e em geral falamos 'cortar relações' para vínculos diplomáticos — como entre dois países. Mas não existe vínculo diplomático com organizações internacionais", explica, acrescentando que fóruns internacionais como a OMS, a OMC e a própria ONU foram projetos patrocinados pelos EUA em sua política externa no século passado.
"Usar esses termos pode ser um sinal de que ele não consultou o assessoramento jurídico da própria Casa Branca antes de fazer a declaração de hoje, que tinha inclusive o objetivo de tratar de outro tema. Então, há a possibilidade de uso político e de que o anúncio tenha sido feito com alguma espontaneidade."
Silva, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), explica que a relação entre um país e uma organização internacional se dá com a ratificação de um tratado internacional — no caso da OMS, o tratado de sua constituição, assinado pelos EUA em 1946. E, para sair, é preciso que o país "denuncie" este tratado.
Mas vincular-se a um tratado tem duas facetas, de dentro para fora e de fora para dentro — não só a em relação à organização internacional, mas também ao ordenamento interno do próprio país. Por exemplo, a ratificação da constituição da OMS pelos EUA precisou passar pelo Congresso americano. E se precisou passar pelo Legislativo para aderir à OMS, precisaria dele também para "denunciar" — e sair — do tratado.
"O presidente, em um país democratico como os EUA, não pode tudo e qualquer coisa, mesmo nas relações exteriores — por exemplo, lá, até acordos comerciais precisam de aval do Congresso."
"Nos últimos três anos, isto está muito em debate nos EUA, desde que o Trump começou a denunciar tratados internacionais — em especial de controle de armas. É uma discussão institucional, e o caso da OMS seria só mais um. A tendência é pelo entendimento de que o procedimento para sair é igual o da entrada."
"Então se precisou da autorização prévia do Congresso antes de ser membro (de um tratado internacional), ele vai precisar da autorização do Congresso também para sair."
Elaini Silva destaca ainda que, além do tratado de constituição de uma organização internacional, há ainda tratados independentes gestados nas reuniões de seus membros — como a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco. E estes precisariam de "denúncias" uma de cada vez para efetivar o "rompimento".
Qual pode ser o impacto do pronunciamento na relação entre os países?
Em comentário enviado à BBC News Brasil por email, Michael Cornfield, professor de ciência politica da George Washington University, relativizou os efeitos práticos do anúncio de Trump na relação entre China e EUA, tendo a OMS como alvo.
"O presidente Trump fez toda uma argumentação contra o governo chinês em sua fala hoje, mas há pouco que ele pode fazer em termos de ações decisivas. A relação dos EUA com a China é multidimensional e tem um alcance épico."
"É aí que a OMS entra em cena. Apontá-la como cúmplice da China traz pouco risco para os interesses dos EUA, mas parece algo contundente para alguns no campo (de apoio) de Trump."
"No entanto, é uma ação que não salva vidas, não recupera empregos e não faz nada para afetar a China."
Também escrevendo à BBC News Brasil, Thomas Whalen, cientista político da Universidade de Boston, avaliou que a OMS se tornou "um alvo conveniente e irresistível" para Trump.
"O presidente Trump é o mestre da distração política. A retirada dos EUA da OMS é uma tentativa desesperada de afastar (a atenção da) sua gestão imperdoável e inepta da pandemia."
"O anúncio também alimenta sua fervorosa base republicana nacionalista e branca, que é contra qualquer coisa que remonte ao internacionalismo, que dizem se tratar de uma conspiração 'globalista' para minar a liderança dos EUA no exterior", escreveu Whalen, destacando também que o fogo aberto contra a OMS desvia a atenção da atual perturbação em Minneapolis após a morte de um homem negro por um policial — e da conexão disso com falas e atos anteriores de Trump acusados de racismo.
Ian Bremmer, cientista político e presidente da consultoria Eurasia, escreveu no Twitter que "a saída dos EUA da OMS não vai quebrá-la ou criar uma alternativa no cenário internacional".
"A China terá mais influência sobre ela (a OMS), enquanto o mundo briga para criar uma vacina. Um exemplo do porquê líderes chineses estão com a esperança de que Trump seja reeleito, e não Biden (Joe Biden, candidato à Presidência americana pelos democratas)."
Críticas à China
Em sua fala desta sexta-feira, Trump acusou também a China de esvaziar as indústrias e empregos nos Estados Unidos através de práticas desleais, como "roubando" propriedade intelectual e descumprindo normas da Organização Mundial do Comércio (OMC).
No pronunciamento, o americano anunciou também que descontinuaria o tratamento preferencial dado pelos EUA a Hong Kong no comércio e na circulação de viajantes. O território asiático, antes uma colônia britânica, tem status especial em sua vinculação ao governo chinês — com liberdades não vistas na área sob domínio direto de Pequim, por exemplo.
A China introduziu recentemente uma nova lei de segurança sobre Hong Kong que para muitos representa o fim deste status único do território em relação a Pequim, que vem impondo sua autoridade de forma mais incisiva ali após manifestações críticas ao regime chinês.