Mais de 300 pedaços minúsculos de tecidos humanos de prisioneiros executados pelos nazistas foram enterrados em Berlim.
As amostras foram encontradas numa casa que pertencia a Hermann Stieve, professor de anatomia no hospital universitário Charité.
Herdeiros do médico, morto em 1952, descobriram a coleção em 2016.
Pesquisadores dizem que Stieve colaborou sistematicamente com os nazistas para receber os corpos de 184 pessoas, principalmente mulheres, executadas por razões políticas.
Os pedaços de tecidos humanos - a maioria com menos de um milímetro de extensão - foram descobertos em uma casa de Stieve, alojados em pequenas caixas pretas. Alguns tinham etiquetas com nomes.
Depois de descobertos, foram entregues ao hospital universitário Charité, em Berlim, que designou funcionários do Centro de Memória da Resistência Alemã para pesquisar sua história.
A cerimônia de enterro ocorreu na segunda-feira (27/5) no cemitério Dorotheenstadt, em Berlim. O túmulo fica perto de um memorial às vítimas do nazismo.
As amostras foram dispostas num pequeno caixão, disse à BBC o diretor do Centro de Memória da Resistência Alemã, Johannes Tuchel.
Algumas das pessoas dissecadas por Stieve eram importantes - inclusive 13 mulheres do grupo de resistência antinazista Orquestra Vermelha.
Corpos cremados
A pesquisa, liderada por Johannes Tuchel, revelou que os corpos foram transportados por um motorista até Stieve, às vezes minutos depois de serem executados na prisão Berlin-Plötzensee.
O médico, então, os dissecava para suas pesquisas antes de discretamente cremá-los e enterrá-los.
Tuchel disse à BBC que os trabalhos de Stieve ocorreram entre 1942 e 1943. Ele enviou os corpos para cremação em Wilmersdorf e depois mandou as cinzas para o cemitério Parkfriedhof Marzahn, em Berlim.
"Ele não lidou com vítimas de campos de concentração", disse Tuchel, acrescentando que Stieve "não trabalhou com médicos nazistas".
Quase 3 mil pessoas foram executadas em Plötzensee por decapitação ou enforcamento enquanto Adolf Hitler esteve no poder.
Stieve trabalhou como diretor do Instituto de Anatomia de Berlim de 1935 até sofrer um derrame e morrer, em 1952.
O anatomista deixou vários registros de seu trabalho com os corpos dos prisioneiros e tinha um interesse especial pelo sistema reprodutivo.
Ele foi um dos primeiros cientistas a indicar que o estresse poderia impactar o ciclo menstrual de uma mulher, ao analisar como prisioneiras reagiam à notícia de que seriam executadas.
Segundo a Alliance for Human Research Protection, organização americana que defende métodos de pesquisa médica responsáveis e éticos, Stieve "colaborava com o terror ao dizer às prisioneiras a data em que ela seriam executadas; ele, então, se coordenava com a Gestapo (polícia secreta nazista) para remover os órgãos pélvicos para a análise de tecidos imediatamente após a execução".
Justiça histórica
Andreas Winkelmann, pesquisador da Escola Médica Brandenburg, disse à agência AFP que o enterro de pedaços humanos microscópicos é bastante incomum.
"Mas essa é uma história especial, porque os pedaços vêm de pessoas que não tiveram acesso a túmulos, de modo que seus parentes não saberiam onde estavam enterradas", ele afirmou.
Sabine Hildebrandt é uma anatomista alemã que publicou um livro sobre transgressões éticas e pesquisas no campo da anatomia durante o regime nazista.
Em 2013, ela disse à BBC que Stieve tirou proveito dessas políticas, que incluíam o uso acentuado da pena capital como punição.
"Até 1933, ele podia obter os corpos de homens executados, mas não de mulheres; a Alemanha não executava mulheres", ela disse.
"Então, de repente, durante o Terceiro Reich, as mulheres passaram a ser executadas também."
Como Stieve não era um membro do partido nazista, ele não foi processado depois da Segunda Guerra Mundial.
Em um comunicado, Karl Max Einhäupl, CEO do hospital universitário Charité, disse que o enterro dos restos humanos integrava esforços da instituição para confrontar sua relação com o nazismo.
"Ao enterrar pedaços microscópicos no Cemitério Dorotheenstadt, queremos ajudar a resgatar um pouco da dignidade das vítimas", disse.