Poucas pessoas esperavam pelos rápidos acontecimentos vividos pela Síria nos últimos dias, depois que a oposição armada, liderada pelo grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS - Organização para a Libertação do Levante, sediado na província de Idlib, no noroeste do país), anunciou o início da sua ofensiva final contra as forças do governo sírio.
Uma semana atrás, o regime de Bashar al-Assad havia ameaçado "esmagar os terroristas". Mas a notícia da queda do regime sírio surpreendeu a maior parte dos observadores do país.
A rápida sucessão de acontecimentos suscitou muitas perguntas, especialmente em relação aos motivos do colapso do exército sírio, ocorrido em velocidade assombrosa.
Quais fatores terão contribuído para a derrocada das Forças Armadas sírias e sua seguida retirada das batalhas contra os rebeldes?
Forte, mas nem tanto
A Síria é a sexta maior força militar do mundo árabe — a 60ª maior, em termos internacionais, segundo o Índice Global de Poder de Fogo de 2024, de um total de 145 países analisados.
O relatório leva em consideração uma série de fatores, que incluem o número de soldados e os equipamentos das Forças Armadas, além de fatores logísticos.
O exército sírio é formado por um grande número de soldados apoiados por forças paramilitares e milícias. Seu arsenal inclui uma combinação de equipamentos soviéticos em ruínas e outros mais modernos, procedentes de aliados como a Rússia.
São mais de 1,5 mil tanques e 3 mil veículos blindados, além de artilharia e sistemas de mísseis, segundo o Índice Global de Poder de Fogo.
Em termos de poderio aéreo, a Síria possui caças, helicópteros e aviões de treinamento. E também conta com uma modesta frota naval, vários aeroportos e portos vitais, como Latakia e Tartus.
A posição do exército sírio, teoricamente, pode parecer favorável, mas ela foi debilitada por muitos fatores.
O exército perdeu uma grande parcela do seu pessoal — estimado em 300 mil soldados — nos primeiros anos da guerracivil.
Algumas estimativas afirmam que o exército perdeu a metade das suas fileiras, seja devido aos combates ou porque alguns soldados fugiram ou se uniram aos grupos de oposição.
A força aérea também sofreu grandes perdas devido à guerra civil e aos ataques aéreos americanos.
Salário 'não dá para três dias'
Apesar das consideráveis reservas de petróleo e gás da Síria, sua capacidade de exploração foi gravemente limitada pela guerra.
As condições econômicas também se deterioraram ainda mais, especialmente nas regiões controladas pelo governo de Assad.
Em dezembro de 2019, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a chamada "Lei César". O texto entrou em vigor em junho de 2020, impondo sanções econômicas a qualquer agência governamental ou indivíduo que fizesse negócios com o governo da Síria.
Diversos relatórios indicam que os salários dos soldados do exército de Assad são baixos. Eles equivalem a cerca de US$ 15 a US$ 17 mensais (cerca de R$ 91 a R$ 103), um valor tão pequeno que "não dá nem para três dias", segundo um cidadão sírio.
O professor de relações internacionais Fawaz Gerges, da Universidade de Londres, declarou que a situação na Síria mudou drasticamente nos últimos três anos.
Um dos motivos, segundo ele, são "as sanções americanas, que empobreceram o povo sírio e os oficiais do exército".
"Segundo informações, os soldados não recebem alimentos suficientes, o que os deixa em estado psicológico difícil e à beira da inanição", segundo ele.
Na quarta-feira (4/12), Assad decretou um aumento salarial de 50% para os soldados, segundo a agência de notícias estatal síria. Aparentemente, o objetivo da medida foi levantar o moral da tropa, em meio ao avanço das forças da oposição.
Mas a decisão parece ter chegado tarde demais.
Abandonados pelos aliados
As notícias que davam conta da deserção dos soldados e oficiais - que facilitou o rápido avanço rebelde de Alepo até a capital, Damasco, passando pelas cidades de Hama e Homs - surpreenderam várias pessoas.
A correspondente da BBC em Damasco, Barbara Plett Usher, informou que oficiais na capital abandonaram seus veículos, armamentos e até seus uniformes, vestindo-se com roupas civis.
"O colapso do exército sírio se deve, quase totalmente, às políticas e práticas implementadas por Assad, desde que atingiu relativa superioridade sobre a oposição em 2016", afirma Yezid Sayigh, do Centro Carnegie para o Oriente Médio em Beirute, no Líbano. "Isso minou os pilares fundamentais que o mantinham no poder."
"Estas políticas afetaram o exército", prossegue o pesquisador.
"Dezenas de milhares de membros foram dispensados, ao lado da terrível deterioração dos níveis de vida, da corrupção galopante e da escassez de alimentos — até dentro das próprias forças armadas, que afastaram a comunidade alauíta [grupo étnico e religioso do Oriente Médio, principalmente da Síria], que domina os estratos superiores da hierarquia militar."
"O moral do exército sírio também foi gravemente abalado pela perda da ajuda militar direta do Irã, do Hezbollah e da Rússia, que não conseguem mais intervir adequadamente — ou não conseguem intervir de maneira nenhuma."
Sayigh acredita que "sem esperança de ajuda externa urgente, o exército perdeu a vontade de lutar".
Já o especialista militar britânico Michael Clarke, professor do Departamento de Estudos da Guerra do King's College de Londres, declarou à BBC que a enorme ajuda militar estrangeira fez com que o governo de Assad ficasse dependente, descuidando do seu próprio exército.
"Seu treinamento se deteriorou significativamente e o desempenho de liderança dos seus oficiais se tornou medíocre", explicou ele.
"Quando suas unidades enfrentaram os ataques do Hayat Tahrir al-Sham, muitos oficiais aparentemente se retiraram e outros fugiram. Quando os oficiais não conseguem demonstrar sua capacidade efetiva de liderança, não é de se estranhar que os soldados fujam."
Já Sayigh descarta que a retirada do apoio militar do Irã, Hezbollah e Rússia tenha sido intencional.
"No passado, a Síria dependia, em grande parte, do Hezbollah para apoio em terra", explica ele. "Mas, depois das perdas sofridas pelo partido-milícia no Líbano, ele não pôde mais oferecer este apoio."
"Houve também uma redução constante de oficiais e assessores iranianos na Síria, em consequência dos ataques israelenses durante a última década. E não foi mais possível enviar grandes reforços por terra ou pelo ar, já que Israel e os Estados Unidos controlam a maior parte do espaço aéreo sírio."
"Ao mesmo tempo, o governo iraquiano e as milícias pró-iranianas decidiram se manter à margem dos combates — o que pode ter ocorrido, em parte, porque o Irã percebeu que passou a ser impossível salvar Assad", explica Sayigh.
Por outro lado, a Rússia retirou uma grande quantidade dos seus aviões e forças da sua base em Latakia, devido à invasão da Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022.
Gerges concorda que a retirada do apoio militar por parte do Irã, Hezbollah e Rússia "foi uma das razões fundamentais que levaram à queda tão rápida das cidades sírias".
"Desta vez, o exército sírio não lutou, nem defendeu o regime", explica ele. "Ele decidiu se retirar das batalhas e baixar as armas."
"Isso indica que o apoio russo e iraniano à doutrina de combate do Hezbollah foi um fator importante para ajudar Assad a permanecer no poder, especialmente depois de 2015."
Oposição fortalecida
Paralelamente à frágil situação do exército sírio, muitos observadores resumem o ocorrido nos últimos dias à unificação das facções armadas da oposição sob um posto de comando único, bem como à sua boa preparação para esta batalha e ao desenvolvimento das suas capacidades militares.
O discurso dos rebeldes, especialmente as mensagens tranquilizadoras enviadas aos civis sobre as crenças e promessas de liberdade religiosa, ajudou a obter rápidos avanços sobre as forças do governo de Assad, segundo os especialistas.
Todos estes fatores, aparentemente, contribuíram para o rápido colapso do exército sírio e a posterior queda do regime de Assad. Para Fawaz Gerges, foi algo "muito similar ao colapso do regime do xá do Irã em 1979".
"A oposição síria, com suas alas islâmicas e nacionalistas, foi capaz de destruir o regime em menos de duas semanas... O regime de Assad estava com seu tempo esgotado e, quando chegou o ataque de surpresa da oposição, o exército caiu e o regime se desmantelou, como se fosse um castelo de cartas", concluiu Gerges.