O que pensa a população da Groenlândia sobre plano de Trump de comprar o território

No povoado isolado de Kapisillit, os groenlandeses disseram à BBC que Donald Trump é bem-vindo para visitar — 'mas só isso'.

16 jan 2025 - 07h31
Nas últimas semanas, o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, reiterou seu interesse em assumir o controle da Groenlândia
Nas últimas semanas, o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, reiterou seu interesse em assumir o controle da Groenlândia
Foto: BBC News Brasil

O Sol está nascendo sobre as montanhas cobertas de gelo do fiorde de Nuuk, e estamos viajando por uma das últimas fronteiras selvagens do mundo.

Mas há sombras se formando aqui e no restante do território congelado da Groenlândia.

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Com Donald Trump prestes a tomar posse como presidente dos Estados Unidos, sua recusa em descartar o uso de força para assumir o controle da Groenlândia, está reverberando nas conversas por toda a ilha.

"Ele é bem-vindo para nos visitar, com certeza", diz o capitão do barco de pesca convertido que nos leva para o leste. Consciente de que precisa fazer negócios com pessoas de todas as vertentes políticas, ele pediu para não ser identificado, mas usou uma frase que ouço repetidamente aqui.

"A Groenlândia pertence aos groenlandeses. Então, Trump pode visitar, mas é isso."

As águas estão calmas quando chegamos ao povoado isolado de Kapisillit, com cerca de 40 habitantes, onde alguns caçadores estão se preparando para caçar focas.

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A temperatura é de -16 °C e, devido ao efeito do vento frio, a sensação é de -27 °C.

Mas perto do porto, encontro um líder da igreja local, Kaaleeraq Ringsted, de 73 anos, que está secando filés de bacalhau, capturados nas águas ricas em peixes da região, ao lado da sua porta principal.

Quando pergunto a ele sobre a possibilidade de Trump comprar ou invadir a Groenlândia, ele dá uma risadinha no início. Depois, adota um tom sério.

Kaaleeraq Ringsted diz que quer preservar seu modo de vida para os filhos e netos
Foto: BBC News Brasil

"Não é aceitável que ele diga isso. A Groenlândia não está à venda."

Em seguida, ele me conta como aprendeu a pescar e caçar aqui com seu pai e avô — e como deseja preservar esse estilo de vida para seus filhos e netos.

Ao cruzar a baía, o barco passou pela superfície quebrada do gelo. Duas águias pousaram em uma rocha, procurando peixes nas águas claras.

Estávamos indo para a fazenda de Angutimmarik Hansen, que cria ovelhas, além de caçar focas, aves selvagens e coelhos.

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Toda a ração de inverno para as ovelhas precisa ser importada da Dinamarca, um lembrete de como o clima rigoroso define as possibilidades de vida aqui.

Na porta de entrada da casa, há uma prateleira para rifles de caça. Ele percebe que estou olhando para eles.

"São para o caso de haver uma invasão", ele brinca.

Angutimmarik Hansen (à direita) insiste que a Groenlândia não está à venda
Foto: BBC News Brasil

Mas sua atitude em relação à retórica bélica vinda de Mar-A-Lago está longe de ser tranquila.

"Que pessoa mais estúpida no mundo, o Trump", diz ele.

"Nunca vamos vender a Groenlândia."

Essa pequena fazenda fica a cerca de 4.828 quilômetros da Flórida, onde o presidente eleito dos EUA deu sua controversa coletiva de imprensa.

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"Mas Trump não é os EUA. Podemos trabalhar com o povo dos EUA", acrescenta Hansen.

O efeito Trump ganhou força com a visita de Donald Trump Jr. à Groenlândia, logo após as declarações do pai. Ele embarcou para a capital, Nuuk, no jato 757 da família — o Trump Force One —, e permaneceu lá por quatro horas e trinta e três minutos, encontrando alguns moradores locais e fazendo apenas comentários educados.

"Foi extremamente agradável conhecer pessoas, e as pessoas ficaram muito felizes em nos encontrar", disse ele, após almoçar em um hotel local.

"Papai vai ter que vir aqui."

Depois, ele voltou para o clima ensolarado da Flórida.

Donald Trump Jr. visitou Nuuk por algumas horas na semana passada
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Trump Jr, foi recebido pelo empresário local Jorgen Boassen, que já fez campanha para o presidente eleito.

Ele disse à imprensa local que era o "maior fã" de Trump, e que "é claro que eles estão interessados em nosso país, e são bem-vindos para vir e ver como é o nosso país. Também se trata de abertura para o comércio e cooperação".

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A cidade de Nuuk é a capital mais ao norte do mundo. Tem uma sociedade civil próspera, e uma imprensa robusta. E há uma certa satisfação aqui pelo fato de as declarações de Trump terem projetado o debate sobre a independência da Groenlândia no cenário internacional.

Deve haver uma Groenlândia que não seja colônia de ninguém, dizem ativistas como Kuno Fencker, parlamentar da coalizão governista e membro do Comitê de Relações Exteriores e Segurança do parlamento local.

Nós nos encontramos no porto, sob a estátua de bronze de Hans Egede, o missionário do século 18 que é visto amplamente aqui como o homem que abriu o caminho para a colonização.

Kuno Fencker quer que a Gronelândia negocie diretamente com os EUA, em vez de por intermédio da Dinamarca
Foto: BBC News Brasil

"Donald Trump é um político", diz Fencker.

"Ele é um homem de negócios ferrenho, e conhecemos sua retórica, e essa retórica é algo a que nos acostumamos desde 2019, e é apenas uma questão de conversar com um colega, um aliado, sobre como podemos resolver as coisas aqui no Ártico e também na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)."

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Fencker apresenta o argumento central dos ativistas a favor da independência.

"O que é necessário aqui é que a Groenlândia, como um Estado soberano, negocie diretamente com os Estados Unidos, e não que a Dinamarca faça isso por nós."

A independência da Dinamarca pode ter um custo financeiro significativo.

A Groenlândia recebe subsídios de Copenhague no valor de aproximadamente um quinto de seu Produto Interno Bruto (PIB) todos os anos. Fencker sugere, assim como outras figuras importantes do país, que a ilha negocie com os Estados Unidos e a Dinamarca para obter apoio.

"Não somos ingênuos em relação a isso. Precisamos de apoio nas áreas de defesa, de segurança e também de desenvolvimento econômico. Queremos uma economia sustentável e autossuficiente."

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O editor do jornal local Sermitsiaq, Maasana Egede, admite que ficou preocupado com a ameaça implícita de uso de força por parte de Trump, mas quer ver como a realidade corresponde à retórica.

Em relação à independência, Egede ficou frustrado com o que ele vê como um debate polarizado na mídia — local e internacional.

"Estamos contando essa história de que tem que ser sobre independência ou não independência. Mas há toda essa história que está no meio, de que as pessoas querem independência, mas não a qualquer custo. Há um padrão de vida que precisa ser mantido. Há um comércio que precisa ser mantido. Há modos de vida que precisam ser mantidos."

Há uma expectativa de que em algum momento — não em um futuro imediato — haverá uma votação a favor, e a Dinamarca aceitará o resultado.

O primeiro-ministro da ilha, Mute Egede, deu uma entrevista coletiva de imprensa conjunta com a primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, após as últimas declarações de Trump.

"Não queremos ser dinamarqueses, não queremos ser americanos, queremos ser groenlandeses", ele afirmou.

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A primeira-ministra dinamarquesa teve o cuidado de não ofender ninguém, muito menos o presidente eleito dos EUA.

"O debate sobre a independência da Groenlândia e os últimos anúncios dos EUA nos mostram o grande interesse na Groenlândia", ela disse.

"Eventos que desencadearam vários pensamentos e sentimentos em muitos na Groenlândia e na Dinamarca."

O primeiro-ministro da Groenlândia, Mute Egede (à esquerda), participou de entrevista coletiva ao lado da primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Frederiksen sabe muito bem como os sentimentos na Groenlândia são arraigados. As lembranças de injustiça e racismo permanecem frescas na memória dos povos indígenas inuítes.

Escândalos como a campanha para colocar DIU (dispositivo intrauterino) em milhares de mulheres e meninas inuítes nas décadas de 1960 e 1970, para controle de natalidade, assombram o relacionamento entre a Groenlândia e a Dinamarca.

Não se sabe quantos destes procedimentos foram realizados sem o consentimento das pessoas envolvidas, mas os números são consideráveis. O objetivo era reduzir a população groenlandesa.

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Maliina Abelsen é ex-ministra das Finanças do governo da Groenlândia, e atualmente é consultora de empresas e organizações que trabalham na ilha. Ela também trabalhou para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) na Dinamarca e para empresas líderes da Groenlândia, como o grupo de pesca Royal Greenland.

Abelsen acredita que muito mais precisa ser feito para lidar com as injustiças do passado.

Maliina Abelsen diz que o sofrimento do passado deve ser totalmente reconhecido para que os groenlandeses possam se curar
Foto: BBC News Brasil

"Acho que muitas pessoas estão dizendo, talvez o governo e o Estado dinamarquês também tenham dito: 'Ah, você sabe que isso aconteceu no passado. Isso foi há muitos anos. Como vamos nos responsabilizar por isso? É hora de seguir em frente'."

"Mas você não pode seguir em frente se não tiver sido curado, e se você não tiver sido reconhecido pelo que aconteceu com você. Esse é um trabalho que temos que fazer junto à Dinamarca, não é algo que a Groenlândia possa fazer sozinha."

E, apesar de seu destaque na sociedade civil e nos negócios, Maliina Abelsen diz que, quando se trata de racismo — por exemplo, piadas sobre o povo inuíte —, ela "pode falar pela maioria dos groenlandeses, que todos nós já passamos por isso em nossas vidas".

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Os princípios da autodeterminação dos povos e do enfrentamento do passado estão intimamente interligados.

Agora, a intervenção de Donald Trump colocou ambos diante dos olhos do mundo.

Mas a mensagem que ouvimos — nos povoados remotos e até na capital, Nuuk — é que o destino da Groenlândia deve ser decidido aqui, entre pessoas cujas vozes foram ignoradas por muito tempo.

Reportagem adicional de Adrienne Murray e Kostas Kallergis.

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