As tentativas apressadas de se desenvolver uma vacina contra o novo coronavírus criaram uma espécie de "corrida espacial" do século 21.
Se em meados do século passado as grandes potências tinham como objetivo chegar ao espaço, agora a meta é encontrar uma solução para acabar com a pandemia de covid-19.
E, assim como na corrida espacial, a Rússia se apressa para deixar a concorrência para trás. Na semana passada, o Kremlin anunciou que iniciaria em outubro um projeto de vacinação em massa contra o coronavírus com uma injeção.
Mas sabe-se muito pouco sobre a eficácia dessa vacina e ela vem sendo questionada por especialistas internacionais.
Segundo informou o ministro da Saúde, Mijail Murahkko, depois de completar "ensaios clínicos", o país realizará registros e começará a produção da dose para iniciar em dois meses a vacinação em massa.
"A primeira vacina contra o coronavírus, desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, completou seus ensaios clínicos e agora estão sendo preparados os documentos para o procedimento de registro", indicou Murashko.
De acordo com o ministro, o país também está testando outras vacinas que serão submetidas a ensaios clínicos nos próximos meses.
A Rússia não é o primeiro país a testar vacinas contra o coronavírus e anunciar resultados promissores (a Coreia do Norte fez o mesmo no fim de semana), mas é o primeiro país a anunciar vacinação em massa da população.
A eficiência da vacina, no entanto, é colocada sob suspeita.
Dados não divulgados
A Rússia não publicou nenhum estudo ou dado científico sobre os testes que realizou, e também não se conhecem os detalhes sobre as fases do processo que geralmente devem ser cumpridas antes de se aprovar e lançar no mercado uma vacina.
Na sexta-feira, em uma audiência no Congresso americano, Anthony Fauci, que é o principal especialista do governo dos Estados Unidos para doenças infecciosas, questionou se os métodos usados na Rússia e na China para testar vacinas foram corretos, pela rapidez com que se completaram.
"Nós também poderíamos ter uma vacina amanhã. Não seria segura ou eficaz, mas poderíamos ter uma vacina amanhã", disse.
Na segunda-feira, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que, apesar de haver várias vacinas na fase final de testes, a eficiência destas ainda está para ser demonstrada e que, provavelmente, não haverá uma "solução imediata".
"Várias vacinas se encontram agora em ensaios clínicos de fase três, e todos esperamos ter várias eficazes que possam ajudar a prevenir a infecção nas pessoas. No entanto, não há uma solução imediata neste momento e pode ser que nunca haja", disse o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
A fase três seria a última das etapas de aprovação de uma vacina, e também a mais decisiva, pois é quando se produzem as evidências reais sobre o seu uso contínuo.
Na terça-feira, um porta-voz da OMS reforçou os pedidos de cautela. "Às vezes, pesquisadores afirmam que encontraram algo. Isso é, obviamente, uma boa notícia", disse Christian Lindmeier. "Mas há uma grande diferença entre descobrir, ou ter uma pista, de uma vacina que funcione e passar por todas as fases (de testes)", acrescentou.
O que se sabe sobre a vacina russa?
Segundo o serviço da BBC em língua russa, a primeira vacina do país contra o coronavírus foi desenvolvida por cientistas do Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e Microbiologia (Gamaleya) junto ao Ministério da Defesa.
Em meados de junho, este último informou sobre a conclusão "bem-sucedida" de testes em voluntários no hospital militar Burdenko, mas não publicou nenhum tipo de evidência científica.
"No momento da alta, todos os voluntários sem exceção que receberam imunidade contra o coronavírus se sentiram bem. Portanto a primeira vacina doméstica contra a nova infecção por coronavírus está pronta", disse o vice-ministro de Defesa, Ruslan Tsalikov.
O Ministério da Defesa enfatizou que os resultados até agora mostram "de forma inequívoca" o desenvolvimento de "uma resposta imune em todos os voluntários, sem efeitos colaterais, complicações ou reações indesejadas".
Não se informou quantas pessoas foram submetidas ao teste, detalhes sobre elas, informações sobre quanto duraria a resposta imune ou o tipo de imunidade que a vacina oferece.
O anúncio da campanha de vacinação em massa foi feito quando a vacina ainda se encontrava "na etapa fina da segunda fase", segundo a agência estatal russa de notícias Itar-Tass.
O que se sabe sobre a campanha de vacinação na Rússia?
Segundo indicou o Ministério da Saúde, após o registro e a produção, a vacinação deve começar em outubro de forma gratuita.
Inicialmente, de acordo com as autoridades sanitárias, serão vacinados grupos especiais da população: médicos, professores e aqueles que estão constantemente em contato com grandes grupos de pessoas.
Segundo a vice-primeira-ministra russa, Tatiana Golikova, a vacina, que é "uma das mais promissoras" em teste atualmente no país, será submetida a um ensaio clínico maior neste mês.
"Em agosto de 2020, planejamos testá-la sob outras condições, ou seja, depois do registro se planeja outro ensaio clínico com 1,6 mil pessoas. Esperamos o lançamento para produção industrial em setembro de 2020", disse.
Nesta segunda-feira, em entrevista à Itar-Tass, o ministro da Indústria e Comércio, Denis Manturov, indicou que no próximo mês três empresas russas vão começar a produção comercial.
Por que a vacina desperta suspeitas e dúvidas?
O serviço em russo da BBC afirma que tanto dentro como fora da Rússia vários especialistas têm expressado temores de que os ensaios clínicos teriam sido insuficientes, já que houve um grande esforço do Kremlin para ganhar a corrida mundial por uma vacina.
O presidente russo, Vladimir Putin, instruiu o governo em abril a tomar decisões destinadas a simplificar e encurtar o prazo para os ensaios clínicos e pré-clínicos.
Em maio, a Associação de Organizadores de Pesquisas Clínicas criticou a Rússia logo que se descobriu que os cientistas do Instituto Gamaleya haviam se inoculado com algumas doses quando a vacina ainda estava em fase de testes em animais.
No entanto, o diretor do Instituto, Alexander Gintsburg, explicou que alguns pesquisadores tomaram um medicamento experimental "para continuar desenvolvendo (a vacina) sem riscos de infecção durante a pandemia" e sublinhou o fato de que nenhum cientista teve efeitos colaterais.
O serviço russo da BBC diz que recentemente houve relatos de integrantes da elite russa que tiveram acesso em abril à vacina contra coronavírus do Instituto Gamaleya. Mas o Ministério da Saúde negou a informação.
Vários especialistas internacionais, incluindo Fauci, também questionaram a pressa da Rússia, a possível eficácia da vacina e o anúncio da campanha de vacinação sem que tenham sido concluídos os testes em maior escala.
"Qualquer um pode dizer que tem uma vacina e fabricá-la, mas é preciso demonstrar que ela é segura e eficaz, o que duvido que tenham demonstrado", disse Fauci na semana passada em entrevista nos Estados Unidos.
"É preciso ter cuidado com quem diz ter agora uma vacina."
Outra dúvida que ainda persiste é sobre a capacidade da Rússia de conseguir produzir em tão curto tempo uma vacina para tantas pessoas.