O xadrez nos EUA envolvendo a decisão de Trump de atacar general do Irã

Morte de civil americano, ataque à embaixada, promessas de campanha, estilo pessoal, o que está em jogo nas ações militares do presidente americano no Oriente Médio.

5 jan 2020 - 06h46
(atualizado em 6/1/2020 às 04h09)
Ataque aéreo em aeroporto de Bagdá que culminou na morte de general iraniano foi ordenado pessoalmente pelo presidente americano Donald Trump
Ataque aéreo em aeroporto de Bagdá que culminou na morte de general iraniano foi ordenado pessoalmente pelo presidente americano Donald Trump
Foto: EPA/CRISTOBAL HERRERA / BBC News Brasil

"Para ser eleito, Barack Obama vai iniciar uma guerra contra o Irã". O comentário foi postado via Twitter por Donald Trump em novembro de 2011, cinco anos antes que o empresário de Nova York se convertesse no 45º presidente dos Estados Unidos, e oito anos antes que ele mesmo se visse diante de uma acusação semelhante.

A 10 meses de disputar a reeleição para o posto de presidente dos Estados Unidos e diante de um processo de impeachment no Congresso — no qual é acusado de ter usado o aparato diplomático americano para benefício pessoal e político —, Donald Trump tomou pessoalmente a decisão de levar a cabo um ataque aéreo ao Aeroporto Internacional de Bagdá, no Iraque, que levou à morte do general iraniano Qasem Soleimani, chefe da Força de inteligência Quds, na última quinta (2/1).

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Com o ato, Trump deu uma guinada na política externa de sua gestão, até então marcada por sanções econômicas e ataques cibernéticos ao país dos aiatolás.

"Acredito que a partir de agora veremos os Estados Unidos agirem de maneira mais e mais agressiva em relação ao Irã. Provavelmente (o assassinato de Soleimani) é um sinal de que as negociações falharam e que os iranianos não estão dispostos a ceder. Os americanos concluíram que terão que aumentar a força e que, no Oriente Médio, para ser levado a sério, você deve usar violência. Trump estava usando apenas a pressão econômica, e com isso apenas não ia ser bem-sucedido. Agora, ele está usando pressão econômica e violência, com pouca, mas alguma chance de sucesso", resume Faris Modad, diretor para o Oriente Médio da consultoria IHS Markit.

Promessas de campanha

A política externa americana é uma das áreas de maior prioridade do presidente. Ao longo dos últimos 3 anos, Trump tentou deixar uma marca própria ao se engajar em uma guerra comercial com a China, tentar reestabelecer relações diplomáticas com a Coreia do Norte, refazer o acordo de livre comércio com México e Canadá. Seus movimentos são uma tentativa de demonstrar que ele põe em prática o o lema de sua campanha "America First", americanos primeiro, em contraposição ao que considerou ser um estilo complacente do antecessor democrata Barack Obama.

Isso também é verdade em relação ao Oriente Médio. Ao longo da disputa eleitoral de 2016, Trump fez duras críticas ao que chamou de "guerras sem fim", em relação às ações americanas em países como Afeganistão, Iraque e Síria. Ele defendeu a retirada das tropas americanas dessas áreas. Essa promessa foi cumprida apenas parcialmente ao longo dos últimos três anos: houve redução no contingente militar americano nesses países.

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Mas, em vez de satisfazer a audiência interna meramente, a estratégia pode ter sido importante para levar os americanos a novos problemas.

A retirada de soldados americanos de postos no Oriente Médio, de acordo com críticos, acabou levando a vazios de poder nos territórios, mais tarde ocupados por inimigos dos americanos, como a rede de inteligência iraniana de Soleimani.

"Para ser eleito, Barack Obama vai iniciar uma guerra contra o Irã". O comentário foi postado via Twitter por Donald Trump em novembro de 2011, cinco anos antes que o empresário de Nova York se convertesse no 45º presidente dos Estados Unidos, e oito anos antes que ele mesmo se visse diante de uma acusação semelhante.

Outra das promessas de campanha de Trump era a retirada dos Estados Unidos do acordo nuclear firmado entre Barack Obama e o presidente iraniano Hassan Rohani, em que o Irã se comprometia a reduzir o beneficiamento de urânio em troca do alívio de sanções financeiras ao país. Em maio de 2018, Trump cumpriu sua palavra: qualificou o Irã como "Estado patrocinador de terrorismo", deixou o acordo e retomou as medidas restritivas sobre a economia do país. O plano era enfraquecer o Irã com o cerco financeiro de modo que a negociação diplomática avançasse a contento para os americanos. Não foi bem isso o que aconteceu, no entanto.

Em resposta, os iranianos são acusados de orquestrar ataques militares cirúrgicos contra alvos americanos ou aliados. As digitais de Soleimani, considerado o estrategista por trás de tais ações, estavam quase sempre encobertas pela ação em campo de milícias xiitas iraquianas e sírias, rebeldes iemênitas, além do grupo libanês Hezbollah, todos treinados e equipados pela Força Quds.

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"Se você olhar para o padrão (da relação do Irã com os EUA) nos últimos meses, o fato de que eles realizaram ou foram acusados de realizar esses diferentes incidentes sem uma resposta enérgica, uma resposta militar e armada, pode ter encorajado os iranianos a ver até onde poderiam ir", afirma Naysan Rafati, especialista em Irã da organização internacional de prevenção de conflito Crisis Group.

Ele se refere, por exemplo, ao ataque de drones, em meados de setembro, que destruíram duas das principais instalações petrolíferas da Arábia Saudita, a maior exportador de petróleo do mundo. O ato foi atribuído pelos americanos e seus aliados ao Irã, o que o o governo do país sempre negou.

Há uma semana, no entanto, um desses ataques acabou matando um civil americano em uma base militar na província iraquiana de Kirkuk — em resposta, os Estados Unidos detonaram ataques aéreos que mataram 25 milicianos iraquianos e feriram mais de 50. No último dia 31, xiitas iraquianos invadiram a embaixada americana no Iraque.

"O Irã será totalmente responsabilizado por vidas perdidas ou danos sofridos em qualquer uma de nossas instalações. Eles vão pagar um preço muito grande! Isso não é um aviso, é uma ameaça. Feliz Ano Novo!", tuitou Trump na tarde do dia 31, cerca de 48 horas antes de ordenar o ataque que matou Soleimani.

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"Tem havido uma espécie de fervura constante nos últimos meses. Mas, nos últimos dias, pela primeira vez, um cidadão dos EUA foi morto em um dos ataques. E então tivemos o tumulto na embaixada. A situação assumiu uma nova dinâmica e os EUA decidiram responder não mais apenas com sanções e ataques cibernéticos. Mas indo diretamente atrás de altos oficiais militares iranianos. E, no que diz respeito às altas autoridades iranianas, provavelmente não há ninguém tão significativo quanto Soleimani. Sua morte é para os iranianos um ato de guerra", argumenta Rafati.

Para Modad, o fato de o Irã ter matado um civil americano e ameaçado o corpo diplomático do país permitiu ao presidente Trump ambiente político doméstico para subir alguns graus na relação e adotar uma ação militar contra Soleimani, um velho conhecido das forças militares e de inteligência dos americanos. De acordo com os analistas, os americanos já tiveram próximos a executá-lo em uma série de ataques anteriores, mas sempre desistiam diante do cálculo de que os riscos superavam os benefícios da medida. Não mais.

"Eles mataram um funcionário terceirizado americano e tentaram invadir a embaixada dos EUA. Portanto, tornou-se politicamente aceitável para os cidadãos americanos, que se sentiram atacados, que o governo atacasse para defendê-los", diz Modad.

A Casa Branca, em Washington; histórico dos EUA em conflitos externos tem trajetória por vezes relacionada com disputas eleitorais internas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Unir os americanos em torno do conflito

"Uma ação defensiva decisiva", definiu o Pentágono. "O mundo é um lugar muito mais seguro hoje, após o desaparecimento de Qasem Soleimani", defendeu o secretário de Estado Mike Pompeo.

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As declarações são parte da narrativa de Trump para justificar e convencer a opinião pública americana do acerto de sua decisão, motivada, segundo ele, pela proteção inegociável das vidas e dos interesses americanos. E, uma oportunidade para que ele marque diferenças claras em relação a si mesmo e a última gestão democrata em situações de ameaça a americanos no exterior.

"Ainda bem que o presidente é você e não a Hillary Clinton, senão teríamos um novo Bengazi", escreveu uma apoiadora de Trump em resposta à mensagem do líder em que criticava o ataque às instalações diplomáticas americanas no Iraque.

A eleitora americana se refere ao assassinato do embaixador americano Christopher Stevens na Líbia, em 2012, após um ataque a bomba ao consulado. O episódio gerou uma crise no governo Obama, acusado de se omitir na proteção aos funcionários do país no exterior, e terminou com a então secretária de Estado Hillary Clinton admitindo a culpa pelas falhas de segurança no local. O assunto retornou na campanha em que Hillary acabou derrotada por Trump.

"Acho que o presidente não está procurando brigas no exterior para o consumo político doméstico. O que vimos foi uma ameaça legítima para nós, a embaixada foi atacada. E Bengazi ainda está nas mentes dos eleitores, Trump foi um grande crítico (de Hillary Clinton na campanha) e não poderia agora dar uma resposta insuficiente", afirmou à BBC News Brasil o analista político Michael Johns, um dos autores de discursos presidenciais durante a gestão republicana de Bush.

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Aliados do presidente criticaram as ações que levaram à morte de Soleimani, dizendo que elas escapavam ao discurso de Trump de não intervenção dos americanos em assuntos regionais que não lhes dissessem respeito. "Quem está realmente se beneficiando disso?", questionou o comentarista da Fox News Tucker Carlson, um dos mais contundentes apoiadores de Trump.

O questionamento remonta a acusação que o próprio Trump fez a Obama sobre se engajar em uma guerra em busca de votos (o que, de fato, não aconteceu). A relação entre guerras e votos mobiliza o imaginário político do país. Observadores de política americana argumentam que a reeleição do republicano George H.W. Bush em 2004 se deveu menos a seus feitos administrativos e mais a sua imagem de líder no esforço de "guerra contra o Terror", com as invasões no Afeganistão e no Iraque pós ataques de 11 de setembro de 2001.

Antes dele, em meio ao processo de impeachment pelo escândalo sexual na Casa Branca, o democrata Bill Clinton ordenou o bombardeio de Belgrado, na Sérvia, como uma ação humanitária em favor da etnia albanesa, sob ataque do governo sérvio. A operação matou centenas de civis. Críticos dizem que a ação visava melhorar a imagem pública do democrata.

Num passado mais distante, em 1864, a condução da guerra civil americana foi primordial para que Abraham Lincoln se tornasse o primeiro presidente dos EUA a ser reeleito. Já Franklin Roosevelt obteve quatro mandatos presidenciais por conseguir conduzir os Estados Unidos a uma onda de prosperidade concomitante à Segunda Guerra Mundial.

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Solemani era uma das figuras mais importantes do regime iraniano
Foto: AFP/Getty / BBC News Brasil

Mas há também exemplos em que o envolvimento em conflitos levou ao fracasso político do presidente. É o caso de Richard Nixon com a Guerra do Vietnã, considerada uma derrota histórica para as tropas americanas, com quase 60 mil soldados mortos.

"Uma aventura militar, se a observarmos historicamente, tem a mesma probabilidade de arruinar sua vida política ou de promovê-la. Se você se lança e fracassa, está acabado", diz Modad, para quem esse tipo de raciocínio sobre a atual decisão de Trump é "especulação boba de esquerda".

Para o correligionário de Trump, Michael Johns, o presidente terá apoio dos eleitores em sua medida militar, mas não terá ganho político com a ação.

"A relação entre conflitos e eleição tem sido mista. A Guerra do Vietnã obviamente não foi útil para Richard Nixon porque foi percebida como mal conduzida. Não fomos vistos como vencedores. Mesmo a Guerra do Iraque com Bush deixou os americanos impacientes. Culturalmente, não são do agrado dos eleitores essas ocupações prolongadas. Por outro lado, o antiterrorismo é prioridade e deve ser tratado assim pelo comandante do país. Então, acho que o presidente fez será apoiado. Mas a medida é sempre controversa, porque nunca é a última de uma série de jogadas de xadrez", diz Johns.

Efeito Iêmen

A maior preocupação de aliados de Trump é que a tensão e os ataques esporádicos possam se converter em um longo e arrastado conflito entre os dois países, com ocupação territorial, aos moldes do que se viu no Afeganistão. Isso poderia causar dano na imagem de Trump junto aos eleitores. E, de acordo com os especialistas em Irã, é exatamente esse tipo de tática em que os iranianos são experts.

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"Em caso de guerra, não há garantia de que os Estados Unidos vençam. Claramente, o Irã não pode derrotar os Estados Unidos de uma maneira convencional, no sentido militar. Mas pode fazer uma guerra tão longa e tão cara, que os americanos não poderão vencê-la politicamente", afirma Modad.

Para ele, o melhor exemplo desse tipo de situação é o Iemên. Sofrendo com uma guerra civil alimentada pela Arábia Saudita e pelo Irã há quase 5 anos, o país segue sendo uma frente de confronto aberto que tem desgastado sobretudo aos sauditas. "Os iranianos têm muita paciência e estratégia para alongar um conflito desses", diz Modad.

Os analistas consideram certo que haverá uma retaliação iraniana: aos aliados ou aos americanos diretamente, de seu próprio exército ou de algum dos grupos milicianos que eles patrocinam. E do ponto de vista político e militar, o Irã é visto como um país mais estruturado e perigoso do que o Afeganistão ou a Coreia do Norte.

"Os iranianos já têm dito que estão sitiados por causa de sanções. As autoridades iranianas vêm mencionando há meses uma guerra econômica. Para eles, essas provocações e escaladas são partes de não se render às demandas dos EUA na campanha de pressão máxima de Trump. Eles têm recursos bélicos e pouco a perder, o que torna a situação potencialmente explosiva", diz Rafati.

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