Ele é "o outro Iraque". É, ou era, até recentemente, a região mais estável em um país instável. O sonho de independência existe há décadas e alguns dizem que agora estão mais perto do que nunca de alcançá-lo. O Curdistão iraquiano é considerado um caso de sucesso no Oriente Médio, mas está ameaçado pelo avanço do grupo jihadista Estado Islâmico.
Cerca de 6 milhões de curdos, um grupo étnico com sua própria língua e cultura, diferentes das populações árabe, persa e turca predominantes na região, vivem nesta área autônoma de cerca de 40 mil km2 no norte do país.
Somam 15% da população iraquiana e são em sua maioria muçulmanos sunitas, mas têm uma interpretação menos conservadora da fé, que lhes rendeu a rejeição de grupos islâmicos extremistas.
"Por enquanto, ou até recentemente, era a única região estável e segura do Oriente Médio", disse Marianna Charountaki, autora de Os curdos e Política Externa dos Estados Unidos.
Enquanto os Estados Unidos estavam no Iraque, entre 2003 e 2011, nem um único soldado do país morreu no Curdistão iraquiano.
E o medo de ele submergir ao caos do Iraque é tamanho que leva os EUA a voltarem "militarmente" à região quase três anos depois da retirada das suas tropas.
Devido a sua riqueza em petróleo (tem reservas de 45 bilhões de barris), sua estabilidade e sua localização estratégica (rodeado pelos curdos na Síria, Irã e Turquia), o atual conflito com o extremismo islâmico e sua eventual independência, a situação no Curdistão iraquiano é seguida de perto e levou os Estados Unidos a iniciar bombardeios contra os insurgentes na região.
"Falando como militar e como ex-presidente do Comitê da Otan (aliança militar ocidental), podemos dizer, pragmaticamente, que, se você olhar para o mapa do mundo e para a Turquia e a Europa, esta pequena parte do Curdistão é, de fato, a fronteira sudeste da Otan", disse à BBC Tom Hardie-Forstyth, assessor do Governo Regional do Curdistão (KRG).
O milagre econômico
A economia curda tem vivido um boom nos últimos anos. Com facilidades para o investimento estrangeiro, em sua capital, Erbil, brilha um novo aeroporto internacional e o maior shopping do país.
Estima-se que, de todo o investimento que o Iraque recebe, pouco mais da metade seja destinada ao Curdistão iraquiano.
O ponto de inflexão econômica para a região foi uma lei de atração de investimentos aprovada em 2006.
"Houve muitos incentivos, até mesmo para investidores locais", disse à BBC Anaid Anwar, economista da Universidade do Curdistão-Hewler, em Erbil.
"Um período de isenção de impostos de 5 a 10 anos, repatriação de lucros, poder contratar trabalhadores estrangeiros e outros fatores, incluindo projetos estratégicos para dar terra de graça. Não vi isso acontecer em outras partes do mundo", acrescentou.
Para as autoridades, o objetivo nunca foi copiar modelos, mas usar as experiências dos outros.
Eles aproveitaram exemplos de Dubai, Arábia Saudita, Malásia e Europa, explicou à BBC Herish Muharam, membro do Conselho de Investimento do Governo Regional do Curdistão, e "considerando o ambiente, a cultura, a forma como essa sociedade tinha sofrido e a necessidade de reconstrução, tentamos criar um modelo de investimento que se encaixasse na região".
Base de empresas estrangeiras e organizações internacionais, Erbil tem sido considerada há anos uma das cidades mais seguras e modernas do país. A menos de 400 quilômetros de distância de Bagdá, é um mundo à parte.
Avanço islâmico
Com o avanço dos insurgentes do Estado Islâmico - antes conhecido como ISIS -, que chegaram a dezenas de quilômetros de Bagdá, no sul, e de Erbil, os curdos responderam militarmente para proteger seu território. E, com seus combatentes peshmerga, tomaram a disputada cidade de Kirkuk, um importante centro de petróleo abandonado pelas forças iraquianas ante o avanço islâmico.
É um coquetel complexo e explosivo em que insurgentes sunitas buscam eliminar a fronteira entre o Iraque e a Síria e formar um califado islâmico, enquanto os curdos querem mais autonomia e estabelecer seu próprio Estado.
A violência no sul do Iraque e o descontentamento da minoria sunita, encorajadas pelas políticas pouco inclusivas do governo xiita em Bagdá, deram força ao avanço do extremismo do Estado Islâmico.
A ambição curda talvez possa ir mais longe para unir minorias de quatro países vizinhos (Síria, Iraque, Turquia e Irã) que, com 20 milhões de pessoas, podem ser considerados o maior povo sem Estado.
Muitos sonham com a criação do Curdistão. Mas os curdos iraquianos veem uma oportunidade.
No começo do mês, o presidente do KRG, Massoud Barzani, disse à BBC que "a independência é um direito natural do povo do Curdistão. (...) As condições estão maduras, o Iraque na realidade já está partido. (...) Vamos realizar um referendo, nós respeitamos e estamos vinculados à decisão do nosso povo. "
Essa consulta, segundo ele, poderia ser realizada dentro de meses, e o Parlamento curdo já pediu a definição de uma data.
Mas será que eles podem conseguir um Estado próprio?
O correspondente da BBC em Erbil, Jim Muir, diz que os líderes curdos acreditam estar mais perto do que nunca disso, depois de terem lutado para dar estabilidade ao Iraque e ao governo central em Bagdá.
"Agora que o resto do Iraque está se despedaçando, eles acham justo seguir seu próprio caminho. Mas não é um caminho fácil", explica Muir. "O governo curdo tem pouco dinheiro, pouca infraestrutura para aumentar suas exportações de petróleo e não tem saída para o mar. Além disso, os vizinhos Irã, Iraque, Turquia e Síria nunca viram sua independência com bons olhos. No momento estão ocupados com outros problemas, mas não para sempre."
História
Após o fim do Império Otomano, decorrente da Primeira Guerra Mundial, os curdos foram incorporados ao Iraque pelos britânicos e acabaram se espalhando pelos países vizinhos.
Sofreram repressão de sucessivos regimes nacionalistas árabes, sobretudo sob Saddam Hussein - que lançou ataque químico sobre a população curda, em 1988, deixando 5 mil mortos.
Após a queda de Saddam, conquistaram autonomia inédita e começaram a tecer alianças internacionais distintas das de Bagdá, cooperaram com o Irã e se aproximaram da Turquia e dos EUA. Em 1992, estabeleceu-se o Governo Regional do Curdistão, que tem um presidente (Massoud Barzani), um premiê (seu sobrinho, Nechirvan Idris Barzani), um Parlamento unicameral e mais de 20 ministérios.
Esse governo regional controla três províncias de maioria curda no Iraque (Dohuk, Erbil e Sulaymaniyah), com aval da Constituição iraquiana de 2005.
Mas esse acordo nunca determinou com precisão as fronteiras curdas, nem sua autonomia para exportar petróleo - temas em disputa com Bagdá, que tem o petróleo como ponto essencial de sua economia.
Segundo a Constituição, o governo curdo deveria receber 17% da renda do petróleo do governo federal, mas alega receber menos do que isso.
Nas últimas semanas, os curdos abandonaram o governo iraquiano, no qual tinham três ministérios. O premiê Nuri al-Maliki os acusou de "terrorismo".
A atual crise iraquiana amplia as incertezas quanto ao futuro do Curdistão iraquiano. Não está claro o que acontecerá com o referendo de independência, nem o efeito da ameaça do Estado Islâmico.
Mas os curdos apostam em "um momento histórico", explicou em seminário recente da BBC Gala Riani, diretora de análises de Oriente Médio da consultoria Control Risks.
"Os curdos percebem que se prepararam, se organizaram, fizeram acordos políticos, para estar em condições de obter mais concessões, autonomia ou independência caso um momento como este sugisse."
No mesmo seminário, William Patey, embaixador britânico no Iraque entre 2005 e 2006, afirmou que as "chances de (os curdos) se unirem ao Iraque são menores do que nunca; os curdos esperam seu momento para declarar independência".