O anúncio surpresa do estabelecimento de um califado por jihadistas acusados de cometer as piores atrocidade na Síria e no Iraque provocou mais indignação do que admiração entre os grupos islamitas, que aspiram a edificação de um Estado fundado de acordo com a sharia.
A proclamação do restabelecimento de um regime político desaparecido há quase um século e que, no espírito coletivo dos árabes e muçulmanos representa sua era de ouro, corre o risco de agir como um imã atraindo fanáticos para a região.
"Todos os grupos islâmicos querem o califado", afirma Mathieu Guidère, professor de Islã na universidade de Toulouse. Mas o Estado Islâmico (EI), que anunciou a criação do califado, "é assimilado ao terrorismo, a massacres", explica à AFP.
Por meio de decapitações e crucificações, cujas imagens foram amplamente difundidas na internet, "o grupo transmite uma imagem muito ruim do islã e mancha este projeto, que é um ideal para os islamitas".
Tomando todos de surpresa, a designação do líder do EI, Abu Bakr al-Baghdadi, como "califa" - sucessor do profeta Maomé como líder dos muçulmanos - tem sido rejeitada pela maioria dos islamitas e até mesmo pelos jihadistas.
Na Arábia Saudita, reduto do Islã sunita, o jornal Al-Riyadh, muitas vezes expressando um ponto de vista das autoridades, considerou que este califado se "reduz a uma pessoa à frente de uma organização terrorista".
Apelando para que o Estado Islâmico não seja "subestimado", o jornal afirma, no entanto, que seria "um erro exagerar sua iniciativa, imaginando que irá eliminar as fronteiras (...) para um grande califado islâmico".
O grupo jihadista lidera há três semanas uma ofensiva relâmpago no Iraque, tomando vastas áreas no norte e no oeste, e controlando grandes áreas no leste e no norte da Síria.
Os rebeldes da Síria, que combatem tanto o regime de Bashar al-Assad quando o EI, descreveu o anúncio do califado de "nulo e sem efeito".
Mesmo o ramo sírio da Al-Qaeda expressou sua insatisfação. O teórico religioso da Frente Al-Nosra, Abu Maryam al-Qahtani, acusou os jihadistas do IE de "excesso de zelo", considerando que eles eram um desastre para a "nação islâmica".
No Iraque, a influente associação dos Ulemás (teólogos do Islã) observou que o IE "não consultou o povo do Iraque, nem o da Síria."
Um dos principais ideólogos jihadistas, Isam Barqawi, ou Abu Mohamed al Makdesi, denunciou a proclamação do califado.
"Será que todos os muçulmanos vão achar refúgio neste califado? Que se trata de um sabre afiado contra todos os opositores?", questionou.
"Não creiam que podem calar a voz da justiça gritando, proferindo ameaças e cometendo agressões", afirmou Makdesi dirigindo-se ao EI.
"Reformem-se, arrependam-se e deixem de matar muçulmanos e de desvirtuar a religião", declarou, condenando todos "os muçulmanos que matam outros muçulmanos".
E para o Jamaa Islamiya, do Líbano, próximo da ideologia da Irmandade Muçulmana, o anúncio é simplesmente uma "heresia", e os atos do EI "distorcem o Islã e enojam as pessoas da religião".
Mesmo os grupos salafistas preferiram manter certo distanciamento.
"Somos a favor de um califado, que é o centro de nossa ideologia. Mas tal Estado deve ser baseado em critérios que não são atendidos no momento", disse à AFP Daii Islam al-Chahhal, fundador do movimento salafista no Líbano.
"Esta organização impõe (o projeto de califado) pela força (...) e queima as etapas", acrescentou o xeque Nabil Rahim, da associação de ulemas do Líbano.O Estado Islâmico, que reúne em suas fileiras milhares de combatentes bem armados, incluindo muitos jihadistas estrangeiros, prega a aniquilação de todos aqueles que não juram fidelidade a ele.
"Eles consideram que apenas eles são muçulmanos", explica Radwan al-Sayyed, professor de estudos islâmicos na Universidade Libanesa. E, prevê, "eles podem durar meses, graças à sua capacidade destrutiva".
O califado durou continuamente por 14 séculos, até ser abolido por Ataturk em 1924.
Para muitos árabes, é sinônimo de lendário califas, como Harun al-Rashid, o desenvolvimento da ciência, do comércio, de ilustres poetas como Abu Nawas, o "poeta do vinho", ou Alhambra, o monumento árabe de Andaluzia.
Árabes e muçulmanos, no entanto, não sonham com um retorno ao califado, cuja memória, distante de fotografias históricas, "foi abolido depois de um século de colonialismo e nacionalismo árabe. Enquanto os ocidentais, conhecem apenas as 1001 noites ", observa Guidère.
Mas o projeto do Estado islâmico não para de atrair os jihadistas árabes ou da Europa.
"A utopia atrai. O projeto jihadista seduz pessoas que desafiam o sistema, como foi o caso com o comunismo na década de 60", diz o professor.
A menos que pare em sua dinâmica, o IE deve ganhar em poder e, quanto mais destaque, " mais vão atrair inimigos", ressalta Sayyed. Mas eles só desaparecerão "depois de massacres terríveis e destruição."