Os filhos da escassez de anticoncepcionais na Venezuela

12 nov 2016 - 16h23
(atualizado às 16h48)
Paola González diz que teve o terceiro filho graças à falta de pílulas
Paola González diz que teve o terceiro filho graças à falta de pílulas
Foto: Elianah Jorge/ BBC Brasil

Em poucos dias Yarjelis Valera dará à luz. Ela acaba de completar 18 anos, mas se viu obrigada a adiar os planos de ser policial. Mãe de Antonela, de um ano, ela agora espera Marián.

Ambas são fruto de gestações não planejadas e, segundo ela, causadas pela falta de anticoncepcionais. O namorado de Yarjelis não gostava de usar camisinha, e ela "não encontrava as pílulas em lugar nenhum".

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A jovem é uma das mulheres venezuelanas que, sem ter acesso ao método contraceptivo, estão à espera de um bebê em plena época de escassez.

A ausência de números oficiais impede verificar se houve ou não um aumento na taxa de fertilidade. Nas ruas, porém, não é difícil encontrar gestantes nas filas para a compra controlada de produtos, que se tornaram uma incômoda realidade no país nos últimos anos.

Elas estão em todos os lugares, especialmente nas filas para comprar fraldas e fórmulas lácteas. Apesar do barrigão, é preciso apresentar no comércio a carteira de identidade, exames e uma declaração médica que comprovem a gestação para adquirir os produtos.

Os preços tabelados criaram um gargalo burocrático e estimularam aparecimento dos bachaqueros - os revendedores informais que inflam os preços dos itens.

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A BBC Brasil pediu entrevista com o setor do governo venezuelano responsável pelos temas abordados no decorrer desta reportagem, mas não houve resposta.

Aos 18 anos, Yarjelis Valera espera a segunda filha
Foto: Elianah Jorge/ BBC Brasil

Escassez crônica

Se alimentos e produtos industrializados desapareceram das prateleiras, é na área de medicamentos que as faltas se tornam mais dramáticas.

"A falta de remédios em geral chega a 85%. A escassez de contraconceptivos, porém, é de quase 100%, porque o governo não entrega os dólares preferenciais para podermos importá-los", disse à BBC Brasil o presidente da Federação de Farmacêuticos da Venezuela, Freddy Ceballos.

A falta de pílulas também atingiu Paola González, mãe do recém-nascido Adrián e de outras duas crianças.

Ela mora com os pais, dois irmãos e os três filhos em uma casa no bairro popular de La Vega, em Caracas. Desempregada, a jovem de 22 anos pensa em voltar ao trabalho "para comprar leite e fraldas".

"O pote de leite a preço regulado custa quase 5 mil bolívares e estão me oferecendo um salário mínimo mais benefícios para trabalhar durante a semana de 7h às 15h. Vou deixar o bebê com uma amiga enquanto isso", planeja.

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Hoje, o salário mínimo na Venezuela é de 27 mil bolívares (cerca de US$ 15 no mercado negro e de US$ 30 pela cotação do governo, ou seja, de R$ 51 e R$ 102, respectivamente). Os benefícios, pouco mais de 60 mil bolívares (US$ 33 no paralelo, ou R$ 112).

Uma criança chega a consumir uma lata de leite por semana. No caso das fraldas, o pacote tabelado custa cerca de 500 bolívares, mas pode chegar a 5 mil bolívares na revenda dos bachaqueros - no início de 2015, o mesmo pacote era vendido por 73 bolívares.

A casa onde Paola mora é mantida por seus pais e por um de seus irmãos, que compram a bolsa de alimentos de um Comitê Local de Abastecimento e Produção (CLAP).

Os comitês são organizados pelo governo e vendem produtos a preços regulados a cada 20 dias. A disponibilidade de itens, no entanto, varia a cada entrega e não é suficiente para todos.

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"Às vezes vem uma quantidade, às vezes outras, e assim nos adaptamos. Proteína aparece de vez em quando e fazemos só para as crianças, que precisam se alimentar melhor", explica Carmen Sosa, de 55 anos, a mãe de Paola.

De acordo com o Instituto Datanálisis, a inflação no mercado informal do país chega a 2.375%. O Fundo Monetário Internacional (FMI) diz que a Venezuela deve fechar o ano com uma inflação superior a 480%.

Diante dessa realidade, algumas mães não sabem se trabalham ou se é melhor economizar dinheiro amamentando.

"Vou aproveitar o período do aleitamento, assim não gasto tanto com o bebê e posso ficar um pouco mais com ele", diz María Delgado Gutierrez, uma delas.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística, a pobreza atingia 33,1% da população venezuelana no primeiro trimestre de 2015.

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Deste total, 9,3% das famílias estão em pobreza extrema, um aumento em relação ao resultado anterior, que foi de 8,4%.

"Esse é um ciclo perverso, fruto da má administração de recursos e da redução de arrecadação do Estado. Isso (a falta de anticoncepcionais) inevitavelmente aumenta a reprodução da pobreza diante da falta de planejamento familiar, sobretudo em um setor vulnerável. A consequência lógica é o aumento da pobreza", diz o psicólogo social Nicmer Evans.

Aumento das esterilizações

Uma das principais referências em planejamento familiar em Caracas, a associação civil Plafam é um dos locais onde tanto homens como mulheres vão em busca de orientação e métodos anticoncepcionais.

Segundo o urologista Alessandri Espinoza, que atua na organização, um dos efeitos da escassez foi o aumento na procura pelas esterilizações nos últimos anos.

"Por causa da falta de anticoncepcionais para as mulheres, agora os homens estão fazendo vasectomias, que é mais rápido e muito mais barato que a histerectomia", diz.

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Só na sede da associação em Las Acácias, zona oeste de Caracas, foram realizadas 48 vasectomias em 2014. Até agosto deste ano, haviam sido 46.

Outro fator que favorece a esterilização masculina é o preço. Uma histerectomia na Plafam, onde os preços são populares, custa 45 mil bolívares (quase dois salários mínimos no país), enquanto a vasectomia sai por 12 mil bolívares.

"Temos três filhos pequenos e chegamos aqui buscando soluções. Meu marido decidiu fazer a vasectomia pela questão financeira, é mais barato e mais rápido que para mim", afirmou no local a dona de casa Yajaira Morantes, de 32 anos, acompanhada do marido Carlos Flores, de 33 anos, que fará o procedimento dentro de uma semana.

Gravidez na adolescência

Na porta da Maternidade Santa Ana, em Caracas, a adolescente Yuleicy Castillho, de 15 anos, carrega Edin Gravier como se fosse um boneco.

O bebê, de três semanas, dorme enquanto a mãe sorri feliz, mas sem saber se continua os estudos ou se terá que trabalhar para mantê-lo.

"Quero aproveitar meu filho, que chegou de repente. É tudo o que tenho. Minha mãe é quem me ajuda."

Além da atual falta de pílulas anticoncepcionais, a Venezuela enfrenta outro problema: o país lidera o ranking regional de gravidez na adolescência. São 101 gestações para cada mil habitantes, de acordo com o Fundo de População das Nações Unidas.

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No país não há campanhas de prevenção à gravidez entre jovens.

Segundo a ginecologista Eugenia Seckler, trata-se de um problema socioeconômico, que ultrapassa o aspecto da saúde.

"As adolescentes veem como um progresso ter filho, se sentem importantes e reconhecidas. Se em casa não há orientação, elas acabam buscando atenção ou mudança de status com a gravidez."

Como exemplo, a médica citou um dos casos que mais lhe impactou: o de uma mãe que, durante a consulta, perguntou se a filha, de 15 anos, tinha algum problema.

O motivo: a menina ainda não havia ficado grávida.

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