Com os níveis do oceano se elevando em todo o mundo, a cidade de Miami, no Estado norte-americano da Flórida, enfrenta a necessidade urgente de se adaptar.
Enquanto os investidores em imóveis voltam seus olhares terra adentro, longe das exclusivas áreas baixas da praia, moradores de um bairro pobre, localizado mais acima do nível do mar, afirmam que o aumento dos aluguéis está fazendo com que eles se mudem de suas residências.
"É um lugar bonito e os incorporadores estão vendendo esse estilo de vida tropical", contra a ativista Renita Holmes, do setor de habitação. "Por isso, eles constroem, todos se mudam para Miami e nós temos que nos mudar."
Holmes mora em Little Haiti, um bairro situado longe do mar, a 8 km da luxuosa Miami Beach.
Andando pelas ruas coloridas da região, é possível ouvir pessoas falando em crioulo e sentir os ricos aromas da cozinha caribenha.
"Eu adoro Little Haiti porque ainda tem essa aparência pantanosa, ainda tem árvores e vinhas", ela conta. "A comunidade e a cultura haitiana são vibrantes. Vi pessoas bonitas, talentosas e de bom gosto. E, agora, também é minha casa e eu adoro."
Gentrificação
A taxa de pobreza de Little Haiti é mais alta do que a média da cidade de Miami e a renda familiar, de forma geral, está bem abaixo da média.
As leis de segregação racial da primeira metade do século 20 e o reassentamento forçado de algumas minorias transformaram bairros como Little Haiti em refúgios para comunidades pobres e diversas.
Mas a proximidade dos bares e restaurantes da moda do Distrito Design e do bairro de Wynwood, agora, atraem o interesse dos construtores sobre o bairro.
O empresário Tony Cho, que construiu partes de Wynwood, voltou sua atenção para Little Haiti. Ele criou um projeto de arranha-céus no valor total de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 4,9 bilhões) chamado Magic City, em pouco mais de sete hectares de terreno. O empreendimento foi autorizado em 2019.
Os moradores contam que logo sentiram o efeito no bolso.
Reina Cartagena, dona do Adelita's Café, em uma das principais ruas de Little Haiti, afirma que seu aluguel dobrou em menos de um ano.
Ela conta que muitos dos seus clientes se mudaram para diversas partes dos Estados Unidos e ela pensa em fazer o mesmo movimento. Vários outros negócios na mesma rua já fecharam.
"Sinto que vou ser deslocada", afirma ela. "O aluguel é realmente muito alto e não estou conseguindo fechar as contas."
Renita Holmes conta que seu aluguel mensal também subiu de US$ 1,2 mil para US$ 1,8 mil (cerca de R$ 5,9 mil para R$ 8,9 mil) nos últimos três anos.
"As incorporadoras chegam, as pessoas saem", segundo ela. "O importante é sempre o dinheiro. Comprar barato para vender caro. E isso causa a nossa gentrificação [a substituição da população local por moradores de renda mais alta]."
Um fundo de US$ 31 milhões (cerca de R$ 153 milhões) do empreendimento Magic City está sendo destinado ao financiamento de moradias de baixo custo e outros benefícios públicos em Little Haiti, mas muitos moradores ainda se opõem aos planos de construção de arranha-céus em um bairro onde a maioria das construções tem, no máximo, dois andares.
Questão de altitude
Outro possível fator de atração em Little Haiti é sua localização em uma colina de calcário, cerca de 5,5 m acima do nível do mar.
Com isso, o bairro é mais de quatro vezes mais alto que Miami Beach, que corre o risco de afundar se o nível do mar continuar aumentando e não forem tomadas medidas para impedir a invasão da água.
O Centro Climático da Flórida calcula que o nível do mar em Miami subiu 15 cm nos últimos 31 anos. Ele indica "projeções de cenários de alta" que preveem aumentos similares nos próximos 15 anos. Outros pesquisadores falam em um possível aumento de cerca de dois metros até 2100.
Estas previsões geraram acusações de que os moradores de Little Haiti são vítimas de "gentrificação climática" - um processo pelo qual pessoas ricas deslocam pessoas mais pobres de regiões mais preparadas para suportar os impactos das mudanças climáticas.
Para Renita Holmes, é exatamente isso que está acontecendo.
"Eles viram como a terra por aqui é alta - e, agora, querem morar aqui para que os condomínios não fiquem surfando nas ondas", explica ela.
O professor William Butler, da Universidade Estadual da Flórida, afirma que o terreno mais alto, antes, era mais barato porque "era o lugar menos desejável para se morar".
"Agora, existe uma certa ironia, pois esses lugares podem se tornar muito mais procurados", segundo ele. "Isso oferece um nível a mais para os promotores do deslocamento das pessoas de renda mais baixa, que já são as mais atingidas no contexto das mudanças climáticas."
Na sua opinião, é muito cedo para dizer se as mudanças climáticas são um fator importante para a gentrificação de Little Haiti, mas ele afirma que os moradores locais contam terem visto anúncios de novos imóveis descritos como "mais seguros contra inundações, tempestades e o aumento do nível do mar".
O pedido de autorização para o empreendimento Magic City também destacou que a altitude o protegeria contra os impactos das mudanças climáticas.
Rocha porosa
Tony Cho não está mais envolvido no empreendimento, mas ainda trabalha na região. Ele conta que muito poucas pessoas o procuram dizendo que querem investir em Little Haiti, porque a região fica 5,5 metros acima do nível do mar.
"Se você for um investidor, sua motivação é conseguir retorno para o seu investimento. Por isso, as pessoas investem onde elas acreditam que o valor será mais alto que o que elas investiram", explica ele.
Cho também destaca outra característica da geologia de Miami. Da mesma forma que Miami Beach, Little Haiti fica sobre um leito de calcário poroso, de forma que a rocha irá ficar mais úmida nos dois locais.
"Eu não levo em consideração que Little Haiti esteja em uma montanha e Miami Beach no nível do mar", afirma ele. "O que as pessoas precisam entender é que, quando o nível do mar aumenta, ele vem do fundo, não apenas dos lados."
Cho não nega que Little Haiti está sofrendo gentrificação e que alguns moradores estão sendo deslocados. Mas, para ele, essa transformação não é exclusiva daquela região e está acontecendo em "todas as grandes áreas urbanas", em todo o mundo.
Renita Holmes afirma que vem observando problemas com o aumento da umidade. É por esta razão que ela mudou de casa quatro vezes nos últimos três anos, procurando imóveis mais baratos e com melhor manutenção.
"É um lugar bonito, mas algo está diferente embaixo do solo", explica ela. "O nível de toxicidade, o mofo, a umidade, não há drenagem. Minha saúde mudou. Eles não construíram as coisas de forma resiliente."
'O nível do mar é problema meu'
Em uma tentativa de proteger sua comunidade, Holmes se associou ao Instituto Cleo, uma ONG sediada na Flórida, e ao programa Empowering Women, criado pelo instituto para pessoas na linha de frente da crise climática.
"Eles me deram o conhecimento, a terminologia e, então, eu descobri que o aumento do nível do mar é problema meu", ela conta.
Renita Holmes foi incluída na lista das 100 mulheres inspiradoras da BBC para 2023, pelo seu trabalho para promover o direito à moradia das comunidades marginalizadas. Ela se dedica a educar seus amigos e vizinhos e defender a proteção do que ela considera a beleza e a identidade de Little Haiti.
"Se não contarmos nossas histórias, não as expusermos, eles irão simplesmente construir em cima de nós e criar uma cidade de concreto", segundo ela.
"É traumatizante a ansiedade de não saber como você irá viver? Como você irá respirar? Você conseguirá pagar? Você conseguirá cuidar dos seus filhos?"
"Sou resiliente, sou empoderada e, enquanto eu tiver empoderamento, resiliência e minha voz, irei morar aqui", conclui Renita Holmes.
* Com colaboração de Cecilia Barría.