Por que Equador declarou 'conflito armado interno' após múltiplos ataques de criminosos

Declaração de 'conflito armado interno' aproxima o Equador do que é popularmente conhecido como 'guerra civil', explica jornalista; há a expectativa de que Forças Armadas tenham maior protagonismo.

9 jan 2024 - 09h26
(atualizado em 10/1/2024 às 07h45)
Noboa disse que medida extrema é necessária para resolver crise prisional do Equador
Noboa disse que medida extrema é necessária para resolver crise prisional do Equador
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Em meio a uma onda de violência generalizada em presídios e múltiplos ataques de criminosos, incluindo a invasão de um canal de TV com transmissão ao vivo, o presidente do Equador, Daniel Noboa, decidiu decretar nesta terça-feira (9/1) a existência de um conflito armado interno no país, acionando as Forças Armadas para retomar o controle das ruas.

A decisão de Noboa acontece menos de 24 horas depois de ele declarar estado de emergência no Equador por 60 dias para tentar manter a ordem após a notícia do "desaparecimento" de Adolfo Macías, conhecido como "Fito", líder dos Los Choneros, uma das facções criminosas mais temidas do país.

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"Fito" estava na prisão onde cumpria uma pena de 34 anos. Logo após seu "sumiço", já na segunda-feira (8/1) ocorreram motins em pelo menos seis penitenciárias, com vários relatos de guardas feitos reféns.

Ao menos 10 pessoas foram mortas desde o início do estado de emergência na segunda-feira.

Além disso, atentados com explosivos aconteceram em diferentes locais do país e se noticiou o sequestro de vários policiais. Em meio à crescente tensão, criminosos tomaram nesta terça-feira o canal TC de Guayaquil, rendendo jornalistas com transmissão ao vivo.

Na segunda, Noboa, que foi empossado como presidente em novembro sob a promessa de restaurar a segurança no país, havia dito por meio das redes sociais: "Não vamos negociar com terroristas".

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'Desaparecimento' não explicado do traficante Fito de prisão no Equador motivou governo a declarar estado de emergência
Foto: Reuters / BBC News Brasil

"Esses grupos narcoterroristas pretendem nos intimidar e acreditam que cederemos às suas exigências. Dei ordens claras e precisas aos comandantes militares e policiais para intervirem no controle das prisões", disse ainda na segunda.

Com o estado de emergência, a polícia obteve o apoio das forças militares para manutenção da ordem e da segurança, inclusive dentro das prisões. Além disso, foi imposto um toque de recolher entre 23h e 5h para todas as cidades.

Na terça-feira, um novo decreto presidencial declarou como situação "adicional" ao estado de emergência um "conflito armado interno".

Após o ataque à rede de televisão em Guayaquil, que feriu dois funcionários, a polícia fez 13 prisões.

Em sua conta no X (antigo Twitter), Noboa citou nominalmente as facções criminosas que as Forças Armadas buscarão "neutralizar" e que ele classificou como "organizações terroristas e atores beligerantes não estatais".

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"Identifiquei os seguintes grupos do crime organizado transnacional como organizações terroristas e atores beligerantes não estatais: Águilas, ÁguilasKiller, Ak47, Caballeros Oscuros, ChoneKiller, Choneros, Covicheros, Cuartel de las Feas, Cubanos, Fatales, Gangster, Kater Piler, Lagartos, Latin Kings, Lobos, Los p.27, Los Tiburones, Mafia 18, Mafia Trébol, Patrones, R7, Tiguerones", disse o presidente.

Diante da violência, o governo do Peru, que faz fronteira com o Equador, ordenou o envio imediato de uma força policial para a divisa para evitar que qualquer instabilidade se espalhasse para o país.

Os governos da Argentina, Bolívia e Colômbia manifestaram publicamente seu apoio ao Equador e ofereceram ajuda ao país vizinho.

No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, devem debater o tema na manhã desta quarta-feira, segundo o G1.

'Degrau acima de estado de exceção'

O jornalista João Paulo Charleaux, especializado em conflitos internacionais e questões humanitárias, explica que "conflito armado interno" é um termo técnico previsto no direito internacional e popularmente conhecido como "guerra civil".

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Normalmente, um conflito do tipo envolve a força estatal combatendo um ou mais grupos armados internos — diferente de um conflito armado internacional, que envolve dois ou mais Estados.

"[O novo decreto no Equador] Amplia em muito a possibilidade de uso da força pelo Estado, então o Estado vai poder fazer uso da força de perfil militar, não mais policial", afirma Charleaux, autor do livro Ser estrangeiro: Migração, asilo e refúgio ao longo da história.

"É um degrau acima da GLO [Garantia da Lei e da Ordem], como a gente chama no Brasil, quando o militar faz papel de polícia. É um degrau acima do estado de sítio, um degrau acima do estado de exceção: é um degrau de conflito, é um degrau de guerra."

"Então é mais parecido com o que a gente tem na Colômbia, onde tem 50 anos dessa situação, do que do que a gente tem no Brasil, onde eventualmente tem GLO."

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Charleaux indica algumas características de grupos armados que justificam a declaração de um conflito interno, como uma organização com cadeia de transmissão de ordem; armas e estratégias de perfil militar; além do controle de parte do território por esse grupo.

O decreto do presidente equatoriano desta terça-feira ordena "as Forças Armadas a executar operações militares, sob o direito internacional humanitário e respeitando os diretos humanos, para neutralizar os grupos [...]".

'Sumiço' de Fito no domingo (7) levou à mobilização de 3 mil membros da polícia e das Forças Armadas
Foto: Reuters / BBC News Brasil

O jornalista explica que, ao evocar a situação de conflito armado interno, o governo equatoriano fica atrelado a normas do direito internacional que tratam especificamente desse tipo de conflito, como o Protocolo Adicional II de 1977 às Convenções de Genebra de 1949 e o artigo 3º das Convenções de Genebra.

"Esse artigo proíbe a tortura, os maus tratos, e tratamentos desumanos e degradantes contra pessoas capturadas", diz Charleaux, dando como exemplos de condutas proibidas as execuções sumárias e desaparecimentos forçados.

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"Um combatente — essa palavra já passa a ser usada — que esteja portando arma de fogo, que pertença a um dos grupos armados que estão contidos no decreto, é um alvo legítimo."

Segundo as normas internacionais, civis devem ser poupados do conflito, mas o jornalista lembra que os direitos de uma forma mais ampla são afetados em uma situação como essa.

"Outros direitos que claramente são restringidos: liberdade de expressão, liberdade de associação, liberdade de manifestação. Porque você vai ter decretação do estado de sítio, decretação de toque de recolher, lei marcial", enumera o jornalista e escritor.

Invasão da TV, outros ataques e notícias falsas

Nesta terça-feira, um grupo de homens armados invadiu um estúdio de televisão no Equador e ameaçou funcionários que estavam trabalhando na transmissão ao vivo.

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A programação da emissora TC, da cidade de Guayaquil, foi interrompida pelo grupo, cujos membros usavam capuz e estavam armados.

A equipe foi forçada a se deitar no chão antes da transmissão ser interrompida.

Os homens encapuzados foram vistos saindo dos estúdios da emissora TC. A polícia foi vista entrando no estúdio cerca de 30 minutos depois que os homens armados apareceram pela primeira vez.

Horas depois, a polícia afirmou ter retomado o controle do canal e ter prendido os invasores.

Nos últimos dias, também foram reportados o sequestro de pelo menos sete policiais e várias explosões nas províncias de Esmeraldas e Los Rios, de acordo com a agência Reuters.

Os meios de comunicação locais também registraram explosões em Loja e Machala.

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Além disso, cerca de 40 presos fugiram de uma prisão na cidade de Riobamba no início da terça-feira.

Na terça, representantes da Empresa Pública Municipal para Gestão de Riscos e Controle de Segurança de Guayaquil afirmaram em uma entrevista coletiva que foram recebidas denúncias de ataques criminosos em cinco hospitais da região, mas que esses relatos não foram confirmados.

Segundo a polícia equatoriana, várias notícias falsas sobre supostos ataques estão sendo divulgadas, como a de que teria ocorrido um tiroteio ao lado do Palácio do Governo ou a de que pessoas em uma estação do metrô em Quito teriam sido sequestradas.

Enquanto isso, o Itamaraty acompanha a denúncia não confirmada de que um cidadão brasileiro teria sido sequestrado no Equador.

"O Ministério das Relações Exteriores, por meio da Embaixada em Quito, acompanha com atenção denúncia de sequestro de cidadão brasileiro no Equador, mantém contato com seus familiares e busca apurar as circunstâncias do ocorrido junto às autoridades locais", afirmou o órgão brasileiro em nota.

Após relatos não confirmados de que a instituição teria sido alvo de ataques por criminosos, o que gerou pânico e correria de estudantes e funcionários, a Universidade de Guayaquil suspendeu suas aulas presenciais por tempo indeterminado, migrando para aulas virtuais.

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Outras instituições de ensino adotaram a mesma medida.

O Ministério do Trabalho também recomendou que os setores público e privado adotem o teletrabalho por questões de segurança.

Fuga de 'Fito'

Antes da declaração do estado de emergência e de "conflito armado interno", o presidente havia anunciado a mobilização de pelo menos 3 mil agentes da polícia e das Forças Armadas para recapturar Adolfo Macías, conhecido como "Fito" — o líder dos Los Choneros.

Macías foi condenado a 34 anos de prisão em 2011.

Desde que foi preso, ele se tornou um dos protagonistas de episódios de violência nas penitenciárias do Equador.

Segundo o jornal equatoriano Expreso, quando Macías soube que as facções de Los Lobos e Los Tiguerones haviam planejado um ataque contra ele, organizou o que ficou conhecido como o incidente mais violento já registrado no sistema prisional do Equador: a execução de 79 presos em diferentes prisões do país, em 2021.

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O ministro de comunicação do Equador, Roberto Izurieta, disse que o governo planejava transferir Macías para um presídio de segurança máxima e, por causa disso, o traficante decidiu fugir.

Fito é suspeito de ter tramado o assassinato no ano passado do candidato à presidência do Equador Fernando Villavicencio, a quem havia enviado ameaças de morte.

A polícia disse que registrou seu desaparecimento da prisão na manhã de domingo (7/1) e não conseguiu verificar seu paradeiro.

Fito frequentemente desafia as autoridades — recentemente, lançou um videoclipe em que glorifica suas façanhas criminosas.

A gravação foi feita parcialmente dentro da prisão.

O vídeo mostra a dupla Mariachi Bravo cantando ao lado da filha de Fito, conhecida como Rainha Michelle, e elogiando-o como "homem de honra".

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"Tiro o chapéu para você, Fito, meu pai", canta Michelle, afirmando que "em suas veias corre bom sangue".

O vídeo também mostra Fito acariciando um galo de rinha e conversando com outros presidiários.

O fato de as imagens terem sido gravadas dentro da prisão sugere que o traficante tem acesso a dispositivos eletrônicos, uma violação da lei equatoriana.

Ainda não está claro se Fito conseguiu sair do complexo penitenciário ou se está escondido em algum lugar em seu interior.

Um comandante da polícia disse que "não confirma nem nega" se houve mesmo uma fuga.

Ele disse que centenas de agentes estão vasculhando a prisão.

Essa não é a primeira fuga de Fito da prisão.

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Em 2013, ele e outros 17 presos escaparam de La Roca e fugiram em barcos no rio Daule, ao lado do complexo penitenciário.

Quatro meses depois, Fito foi capturado junto de seu irmão, também membro dos Los Choneros, na casa da mãe deles, na cidade de Manta.

Crise penitenciária

Equador deu início a operações para retomar controle das prisões após motins
Foto: EPA / BBC News Brasil

Governos anteriores do Equador também declararam estado de emergência visando resolver a crise do sistema penitenciário, mas sem sucesso.

Em agosto de 2023, o então presidente Guillermo Lasso ordenou a transferência de Macías para o Centro Penitenciário La Roca, medida que foi revertida algumas semanas depois por um juiz.

O plano de segurança de Noboa inclui a criação de uma nova unidade de inteligência, armas táticas para aplicação da lei e segurança e um plano para manter temporariamente prisioneiros perigosos em navios-prisão.

Desde 2021, mais de 400 mortes foram registradas nas prisões do Equador devido a confrontos entre facções rivais.

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